Rui Canas Gaspar leva já uma dezena
de títulos publicados sobre a história local de Setúbal, tendo o mais recente
sido publicado há dias sob o título curto, mas nada lacónico, Sado (Setúbal: ed. Autor, 2017), obra
que conta histórias ligadas ao rio que em Setúbal bordeja a Arrábida e se
encontra com o Atlântico.
Se um rio não tem outra história
que não aquela que a Natureza lhe dá e permite, é em torno do rio que se
constrói um universo de histórias ligadas às gentes e às vidas. Desde a serra
da Vigia (em Ourique) até Setúbal, o Sado corre de sul para norte num percurso
de 180 quilómetros. E é a partir da nascente que as duas centenas de páginas
deste livro vão acompanhar um caudal forte e interessante de narrativas, umas
fazendo já parte da investigação histórica, outras resultantes de visitas,
conversas e contactos, muitas vezes enriquecidas com a cor etnográfica ou
regional.
À medida que vamos lendo os
textos, temos a noção de que eles foram construídos ao ritmo do apontamento ou
da crónica, abordando temáticas e histórias que têm o rio como denominador
comum. No livro, essa unidade é sublinhada pelo facto de a narração ser
atribuída a um “eu” que é a personificação do próprio rio e vai conduzindo uma
história maior em que o narrador se assume também como a personagem principal à
sombra da qual tudo vai acontecendo.
Os quadros que vão passando pela
biografia (chamemos-lhe assim) do rio cruzam-se no espaço e no tempo - se o
espaço é o da sua corrente, o do tempo parte dos fenícios, dos romanos e dos
mouros para chegar até ao século XXI, à nossa contemporaneidade. Passeia o
leitor pelo Alentejo (ou não viesse o rio desde Ourique e não passasse em
Alcácer do Sal), pelos planos de obras públicas que ao Sado estiveram ligados
(o célebre canal a ligá-lo ao Tejo, que nunca foi construído, mas foi planeado;
o sistema de irrigação e as barragens), pela vida selvagem que lhe está ligada,
pelas produções que dele resultam (o arroz, o sal, a pesca, a ostreicultura),
pela etnografia (portos palafíticos, construções típicas), pelo turismo
(Tróia), pelos moinhos de maré, pela agricultura (herdades de Gâmbia e do
Zambujal), até chegar ao Atlântico, pretexto para se mergulhar em Setúbal e em
realizações recentes ligadas ao Sado, como o monumento aos golfinhos
recentemente inaugurado ou o facto de o rio ter levado Setúbal a membro do
Clube das Mais Belas Baías do Mundo.
Por este caminho de histórias, há
momentos em que se enaltecem personalidades que tiveram algo a ver com aquilo
que é a identidade do Sado, como João Barbas (que recuperou galeões e os pôs ao
serviço do lazer e da pedagogia) ou José Viriato Soromenho Ramos (que foi o
obreiro da chegada de Setúbal ao Clube das Mais Belas Baías); há momentos em
que se revelam pormenores como aquela que terá sido a primeira homenagem ao
planetário Mourinho (caso do galeão “Zé Mário”, que deve o nome à criança
nascida em 1963, por iniciativa do pai, Félix Mourinho, membro da sociedade que
nessa altura adquiriu a embarcação) ou a iniciativa da Câmara de Alcácer de
recuperar o “Amendoeira”, um barco naufragado; há momentos em que é evidenciada
a experiência do autor (como, logo no início, no relato da chegada ao ponto
onde nasce o rio, pelas conversas com os locais); há momentos em que as
crónicas adquirem alguma cor local, quase em jeito de reportagem (como o
cacarejar das galinhas ou o miar da gataria testemunhados na visita à D.
Manuela, na Gâmbia); há momentos em que surge evidente o apelo à preservação do
ambiente (seja quando se fala dos mariscadores, seja quando é feita referência
aos cuidados a ter com os golfinhos).
Curiosamente, o livro inicia-se e
conclui-se com poesia em que o Sado é protagonista ou motivação: na abertura, é
o soneto de Bocage que rompe com o verso “Eu me ausento de ti, meu pátrio
Sado”; a fechar, é o poema que suporta a canção “Rio Azul”, da autoria de
Laureano Rocha e Mário Regalado. Se estas marcas validam a faceta poética do
rio e das emoções que lhe estão associadas, bem poderia ter sido trazido também
o poema do médico transmontano Cabral Adão que definitivamente baptizou o Sado
como o rio “azul”... e, já agora, por referências culturais às margens do Sado,
também poderiam ser lembrados os nomes de duas crianças que cresceram a ver o
rio e muito viriam a destacar-se na cultura portuguesa - Bernardim Ribeiro, no
Torrão, e Pedro Nunes, em Alcácer do Sal.
Esta obra de Rui Canas Gaspar
lê-se de um fôlego, sempre na procura de elementos novos ou de confirmação de
histórias. Dotado de uma escrita acessível, o seu estilo corre facilmente por
estar próximo dos contadores de histórias, muito mais preocupado com a passagem
de testemunhos a propósito do rio e das vidas que lhe estão ligadas do que com
a caução do documento histórico ou das fontes. Uma forma fácil de chamar a
atenção para a necessidade que todos temos de reparar no rio e no que ele nos
faz!