Em 31 de Março de 1897, o periódico setubalense O Elmano, em coluna necrológica,
noticiava que, dois dias antes, tinha falecido, “depois de prolongada doença”,
João Carlos de Almeida Carvalho. Logo nessa edição, o jornal não regateou
elogios à personalidade que acabava de desaparecer da cena sadina: “com a sua
morte, perde Setúbal um dos seus filhos mais ilustres e mais justamente
considerados”. Nesse mesmo dia, em sessão da Câmara de Setúbal, o presidente
“propôs e foi aprovado que se lançasse na acta um voto de sentimento pelo
falecimento” da mesma individualidade. Mas a edição seguinte, saída em 3 de
Abril, voltava a invocar Almeida Carvalho, pondo a tónica na sua obra, dizendo
tratar-se de “um investigador de rara persistência e notável erudição” e
fazendo considerações quanto ao destino a ser dado ao seu espólio – “Setúbal
tem uma Biblioteca Pública; nessa Biblioteca é que deve ser arquivada a
história que ele investigou e redigiu com tão crisolada dedicação. É aí que ela
se tornará um manancial de estudo, que poderá ser apreciada pelo mundo culto e
ficará livre que algum estranho egoísta a oculte um dia, roubando ao autor a
glória que lhe pertence”.
Pelo mesmo diapasão afinava outro jornal da cidade, O Districto, que, em 4 de Abril,
comentava sobre Almeida Carvalho: “dum escrúpulo inexcedível sobre a veracidade
e exactidão dos factos que se propunha narrar e comentar, prosseguia de
indagação em indagação, sendo-lhe difícil obter pleno convencimento a respeito
deles, circunstância esta que, a par doutras, concorreu para ficar inédita a
sua obra”.
Muitos anos iriam passar sem que à figura de Almeida
Carvalho fosse atribuída a importância que, de facto, merecia. Nota disso dava
Montalvão Machado em crónica assinada no jornal O Setubalense, de 8 de Junho de 1960, abordando o esquecimento e o
desrespeito pela memória desta figura do século XIX: “Vem a propósito dizer que
a injustiça dos homens ainda não cessou, visto ter-se entendido que a dívida a
tão ilustre filho de Setúbal e célebre plumitivo ficava saldada dando o seu
nome a uma pequena ruela do Alto do Viso”. Com efeito, o nome de Almeida
Carvalho fora atribuído a uma rua do Bairro Melo (ainda hoje existente, entre
as ruas do Baluarte de S.Amaro e do Clube Desportivo de Palhavã), na freguesia
da Anunciada, aquando da expansão da cidade para esses limites, pelo primeiro
quartel do século XX. Mas… além da placa toponímica, que inseria, a seguir ao
nome do homenageado, a legenda “Investigador da História de Setúbal”,
acrescentando-lhe o respectivo período de vida, nada mais tinha lembrado aquele
que foi o grande responsável pela recuperação de elementos sobre a
historiografia sadina, pelas escavações em Tróia e pela criação do primeiro
jornal em Setúbal, em Julho de 1855, O
Setubalense de seu nome.
homem de
cultura
O conhecimento da obra de Almeida Carvalho só viria a
acontecer por finais da década de 60, logo que o seu espólio passou para a
Junta Distrital de Setúbal e que alguns títulos foram publicados. A demora na
divulgação da sua obra encontra paralelo na dificuldade que a própria vida de
Almeida Carvalho foi, pelo menos a acreditar na narrativa autobiográfica que
nos legou.
Quando, por 1968, a Junta Distrital sadina resolveu
publicar os sete volumes da obra Acontecimentos,
Lendas e Tradições da Região Setubalense, anotada por Óscar Paxeco, as
“Memórias do Autor” constituíram o primeiro desses tomos, com cerca de 80
páginas. Trata-se de um relato de vida dorido, tal como se deixa adivinhar logo
pela primeira frase – “Faz-me bem ao coração reviver tanto as alegrias fugidias
que neste mundo gozei, e que desapareceram já, como as lágrimas que dos olhos
me caíram nos momentos mais angustiosos da existência”. Assim, Almeida Carvalho
regista a sua vida com o objectivo de reviver os momentos felizes e de exercer
a catarse sobre os tempos menos bons (sobretudo a morte de dois dos seus três
filhos e da esposa) e também para fazer valer a sua verdade e a explicação dos
factos em que se envolveu.
Nascido em 5 de Março de 1817, numa casa da então Rua da
Praia (hoje, Avenida Luísa Todi), filho de António Coelho de Carvalho e de Ana
Rita de Almeida e Silva de Carvalho, o jovem João Carlos seria baptizado dez
dias depois na igreja de S.Sebastião, tendo por padrinho o avô João Carlos de
Almeida Soares e por madrinha Nossa Senhora Mãe dos Homens, invocação que
assenta sobre imagem da Capela do Bonfim. A vida escolar de João Carlos foi
permanentemente contrariada, ora pelas personagens de aspecto duvidoso que ensinavam
e pelos métodos que usavam, ora pelo próprio pai, que estava mais interessado
numa aprendizagem acelerada do pequeno para que, o mais rapidamente possível,
começasse a trabalhar. Com efeito, se os jovens só podiam empregar-se em
serviço do reino com 25 anos, António Carvalho conseguiu o emprego para o filho
quando este tinha apenas 15 anos, como ajudante do escrivão da Correição da
Comarca de Setúbal, lugar que era ocupado pelo pai – “e comecei a trabalhar
como escrevente, para, com o produto do meu trabalho, me vestir e calçar”.
Depois, mercê dos conflitos entre absolutistas e
liberais, e devido às responsabilidades do pai, a família esteve dividida,
porquanto o pai teve de andar fugido dos liberais e levou o filho mais velho,
João Carlos, para o acompanhar. Contudo, este jovem viraria liberal. De resto,
ao longo dos tempos, Almeida Carvalho teve várias oscilações no percurso
político, talvez pela instabilidade da época, talvez por alguma independência
quando a causa era a defesa da sua terra natal, sentimento muito arreigado, uma
vez que viveu entre Setúbal, Lisboa e Loures, num percurso também de incertezas
que ele próprio invoca no final da autobiografia como razão para o ostracismo a
que o votaram na sua vila.
Taquígrafo no Senado, onde foi vítima de várias
injustiças profissionais, sempre se esforçou por evoluir na área do saber,
sobretudo nos domínios da História e da Jurisprudência, num percurso
fundamentalmente autodidacta, permitido pelo que ganhava – “todos os meus
livros e propinas eram pagos com o meu ordenado, não sendo difícil assim
acreditar quanto me aplicaria, ávido de me instruir”. Da importância e
variedade do seu espólio bibliográfico se poderá fazer uma ideia através do
título dado, em Junho de 1936, por José Santos à lista de livros que a Livraria
Lusitana, de Lisboa, ia leiloar – Catálogo
de uma magnífica e valiosa colecção de livros verdadeiramente notáveis dos
séculos XVI a XX, a maioria dos quais pertenceram à importante biblioteca do
distinto advogado, proficiente taquígrafo e brilhante jornalista setubalense
Dr. João Carlos de Almeida Carvalho, rol que reunia cerca de mil e
seiscentos títulos.
Por Novembro de 1849, com outras figuras setubalenses,
designadamente Manuel da Gama Xaro e Domingos Garcia Peres, Almeida Carvalho,
sob protecção do Duque de Palmela, criava a Sociedade Arqueológica Lusitana,
instituição científica que tinha como objectivo proceder às escavações em Tróia
e fundar um museu em Setúbal. No entanto, por morte do Duque (cerca de um ano
depois), a Sociedade acabaria por se extinguir, passando o seu espólio para a
Academia de Belas Artes de Lisboa.
homem de
acção
A fundação do primeiro jornal setubalense, em 1855, não
terá sido estranha ao facto de, na margem sul do Tejo, se verificar que todos
os investimentos fomentistas tinham lugar na outra banda. Daí que, entre as
reivindicações apresentadas pelo jornal, cujo redactor-principal era Almeida
Carvalho, tenha estado o caminho de ferro para Setúbal, a exploração das
salinas, o progresso agrícola, a defesa da moralidade pública. Pela mesma
altura, esteve também na fundação da Associação das Classes Laboriosas de
Setúbal, uma organização de carácter mutualista, a que presidiu. No entanto,
este empenho trouxe-lhe alguns dissabores, sobretudo quando, na noite de 31 de
Agosto de 1855, se dirigia para casa e foi assaltado e esfaqueado por alguém
que se pôs logo em fuga, tendo Almeida Carvalho estado entre a vida e a morte
durante algum tempo. O patife acabaria por se confessar, mas teve a absolvição
da justiça. A autoria moral do crime estaria relacionada com ameaças recebidas
por Almeida Carvalho devido ao conteúdo do jornal… que tinha sido uma força
para o aparecimento da Associação.
Da sua colaboração em O
Setubalense registou Fran Paxeco que, “conquanto política, destinava-se
quase exclusivamente a pugnar pelos melhoramentos morais e materiais da cidade,
cujos interesses defendeu sempre”. A participação jornalística de Almeida
Carvalho estendeu-se ainda a títulos como Revolução
de Setembro, A Justiça, A Nação e Archivo Pittoresco, havendo sempre como pretexto Setúbal.
Do ponto de vista da investigação histórica, a busca
apurada e um cuidado perfeccionista levaram a que este homem muito pouco tenha
deixado publicado e muitíssimo mais tenha deixado recolhido. Foi autor dos
relatórios da Sociedade Arqueológica Lusitana (o primeiro foi publicado em
livro em 1851; o segundo, em jornal, em 1857), de Duas Palavras ao Autor do Esboço Histórico de José Estêvão (de
1863, constituindo uma reposição da verdade e uma refutação ao escrito de
Jacinto Augusto Freitas de Oliveira) e de A
Sociedade Arqueológica Lusitana (de 1896). Todo o restante trabalho era
reconhecido, mas não conhecido – Pinho Leal, em Portugal Antigo e Moderno, referia que a obra que Almeida Carvalho
estava a escrever sobre a história de Setúbal era “importantíssima” e desejava
que houvesse editor para ela…
Hoje, o seu espólio está disponível para consulta pública
no Arquivo Distrital de Setúbal, tendo, em 1996, sido publicado o índice das 144
caixas que o constituem, trabalho devido a Carlos Dinis Cosme, Maria Luísa Melo
e Luís Agostinho Neves.
Ao longo deste ano, vão acontecer diversas iniciativas para assinalar o
bicentenário do nascimento de Almeida Carvalho, conforme pode ser lido aqui.
Texto inicialmente publicado no Jornal da Região – Setúbal / Palmela (dir: Albérico Fernandes. Setúbal: nº 193, 15.Janeiro.2002, pg. 9) e republicado em Histórias da Região de Setúbal e Arrábida (Setúbal: Centro de Estudos Bocagens, 2003, vol. I, pp. 121-127). Foto a partir da página facebook da LASA.
Texto inicialmente publicado no Jornal da Região – Setúbal / Palmela (dir: Albérico Fernandes. Setúbal: nº 193, 15.Janeiro.2002, pg. 9) e republicado em Histórias da Região de Setúbal e Arrábida (Setúbal: Centro de Estudos Bocagens, 2003, vol. I, pp. 121-127). Foto a partir da página facebook da LASA.
Sem comentários:
Enviar um comentário