O livro O
Balneário - Memória de Setúbal, de Francisco Borba (Setúbal: ed. Autor,
2017), pode (e deve) ser lido tendo em consideração diversos ângulos: o da
história local, o do jogo que os documentos fazem com o tempo, o do contributo
dos arquivos familiares para a memória colectiva.
Na primeira abordagem, a da história local, não restam
dúvidas da intenção do autor, que fez questão de, em subtítulo, deixar
registado tratar-se de uma “Memória de Setúbal”. Lermos sobre o Balneário
Doutor Paula Borba neste registo de memória exige o contar a história, bem como
implica a preservação do espaço edificado. E a história da construção cruza-se
com a narrativa da saúde pública em Setúbal: a falta de cuidados de higiene
gerava, antes da existência do balneário, uma sarna atenuada, por aqui
designada como “pica-pica”, impossível de ser debelada porque faltava o
antídoto essencial - o banho.
O pretexto para ajudar à resolução do problema surgiu
pelo contexto histórico. Desde 1898 que o Dr. Paula Borba exercia clínica em
Setúbal, frequentemente ajudando os mais necessitados, o que lhe valeu o título
de “pai dos pobres de Setúbal”, como os autores Rodrigues Marques e Manuel
Marques registaram na sua obra Subsídios
para a História dos Hospitais de Setúbal (Setúbal: ed. Autores, 1984) e
como Rogério Claro referiu na biografia que, dois anos depois, fez sobre este
médico, sadino de adopção, mas açoriano por nascimento (Dr. Francisco de Paula Borba - 1º Cidadão Honorário de Setúbal.
Setúbal: ed. Autor, 1986).
Em Agosto de 1917, tempo da Grande Guerra, em que
Portugal lutava nas frentes africanas de Angola e de Moçambique e na frente
europeia, na Flandres, o médico Paula Borba era notificado para ser incorporado
no exército português como alferes médico miliciano. A reacção da Santa Casa da
Misericórdia, detentora do hospital que então existia, e a atitude dos
setubalenses, que consideravam a obra e o papel deste clínico indispensáveis
para a cidade, não se fizeram esperar e uma comissão foi criada para ir junto
dos ministérios, a Lisboa, pedir a revogação da decisão. Certo foi que, seis
dias depois da convocatória, em 29 de Agosto, Setúbal recebia a notícia da
desconvocação do seu benfeitor e logo uma manifestação popular tomou a rua para
se congratular com a decisão. Tal alegria iria ainda ser selada por uma
subscrição pública com o objectivo de ser oferecida ao Dr. Borba uma obra de
arte como sinal de agradecimento. Mas o homenageado tomou a dianteira e, ao
conhecer o espírito da iniciativa, pediu que o valor da subscrição pública
fosse encaminhado para a construção de um balneário nas imediações do Hospital
da Misericórdia.
A Comissão informou a população sobre esta intenção e,
no início de Fevereiro de 1918, decidiu avançar com a construção do dito
balneário, que teve colocação da primeira pedra em 4 de Maio de 1919.
Dificuldades financeiras levaram a que a obra fosse entregue à Santa Casa da
Misericórdia de Setúbal e a que houvesse interrupção nas obras, antes da
chegada do dia 31 de Maio de 1926, data de inauguração do balneário, que
previamente fora definido dever receber o nome do médico como patrono, decisão
que foi comunicada à Misericórdia como tendo validade perpétua.
Esse final de Maio foi data festiva pela concretização
da obra, com direito a publicação de um número único do jornal O Balneário, visando contar a epopeia da
construção, fazer a memória descritiva do edifício e da sua importância e
enaltecer o seu patrono, a comunidade e os trabalhadores e benfeitores que
contribuíram para que o sonho se transformasse em realidade.
Sobre qual foi a importância do balneário para a
cidade bem a pode testemunhar a estatística que Francisco Borba apresenta,
relativa à frequência entre 1926 e 1952, período em que cumpriu a função a que
se destinava - das 6343 utilizações em 1926 até às 10490 em 1952, com os anos
de 1946 a 1950 a terem utilizações anuais acima das 12400 (o ano em que a
frequência bateu o record foi o de 1948, que atingiu as 13383 utilizações). Em
26 anos de funcionamento, o total de utilizações foi superior às 240 mil
(241196, mais precisamente).
A segunda perspectiva de leitura, a do jogo que os
documentos fazem com o tempo, é uma das vantagens deste livro. Se, num primeiro
momento, Francisco Borba conta partes da história, chamando a atenção para os
aspectos mais importantes do investimento, mostrando reproduções de vários
documentos (correspondência, contabilidade, auto da colocação da primeira
pedra, entre outros), já a segunda parte é constituída pelo conjunto
fac-similado de fontes importantes para o conhecimento da história do
Balneário, como: o prospecto de apresentação das intenções e da memória
descritiva do balneário, editado pela Comissão responsável pela construção em
1918 (assinado por Carlos Manito Torres); o número único do jornal O
Balneário; a reprodução dos oito postais comemorativos da inauguração desta
valência; finalmente, o acervo fotográfico de Carlos Manito Torres relativo ao
interior do edifício.
O leitor passa por estes documentos e experimenta o
contacto com as fontes que contam a narrativa do Balneário, quase como se lhe
fosse dado viver o momento, participar na obra colectiva, assistir à
construção.
O documento de 1918 justifica-se logo no início com a
intenção de “esclarecer os interessados acerca dos motivos” que impediam o
andamento célere da obra, historiando as tomadas de decisões e justificando a
insistência na vertente do auxílio público. Depois de apresentar as contas,
surge a “Memória Descritiva e Justificativa” que advoga a simplicidade da
construção - “Nenhum género de edifício, mais do que o destinado a um
balneário, se presta à exibição de pompas e grandezas arquitectónicas”, diz
Manito Torres, justificando com a fama dos balneários da antiguidade clássica.
Contudo, a opção seguida foi diferente da que a tradição dessa antiguidade nos fez
chegar, como justifica o mesmo autor: “A obra que se projecta terá um cunho de
simplicidade e modéstia absolutas”, acrescentando que reduziu “tudo quanto, na
estrutura e na aparência do edifício, podia reduzir-se, sem prejuízo das suas
funções principais”. Poucas linhas adiante, esclarece que “as dimensões se
limitaram ao mínimo, o interior mostra uma modesta singeleza e a fachada foi
projectada com a máxima simplicidade”. Todos estes considerandos nos fazem hoje
compreender o ar espartano que o exterior do edifício apresenta... Se
associarmos a isto a impecável reprodução das fotografias feitas por Manito
Torres cerca de oito anos depois, a preto e branco, bem podemos verificar que a
intenção do projectista foi levada a bom termo...
O jornal de 1931, reunindo as colaborações de Carlos
Manito Torres, de Fernando Garcia (neto de Garcia Peres), de Eloy do Amaral, de
Manuel Gamito, de Edmundo Motrena e de Oscar Paxeco, visou enaltecer a
conclusão da obra e os seus heróis. Daí que não seja de espantar o tom
encomiástico e laudatório, em primeiro lugar para homenagear o Dr. Francisco
Paula Borba, mas também para enaltecer todos os obreiros envolvidos, desde os
membros da Comissão responsável até aos trabalhadores e respectivas chefias de
especialidade. Do Dr. Paula Borba é reproduzido nesse jornal o fac-símile de
uma carta, datada desse Maio de 1926, dirigida ao engenheiro Manito Torres, a
escusar-se da responsabilidade de escrever sobre o balneário, desculpa que
apresenta num tom elevado e digno: “Devia, como pedes, escrever algumas
palavras para o número comemorativo O
Balneário, mas não tenho o temperamento necessário para enaltecer uma obra
que a generosidade de bons amigos apelidou com o meu modesto nome.” E, depois
de agradecer a todos os colaboradores, insiste, em tom de sublime modéstia: “Um
só defeito lhe encontramos: o apelido que lhe deram, porque, acima de um nome,
está a população de uma cidade.”
Num estilo publicista, dado pelo próprio título do seu
texto - “Pró-Setúbal” -, Eloy do Amaral enaltece a cidade e apela à
participação de todos para que a modernização de Setúbal passe pela preocupação
com o turismo, destacando algumas boas realizações já existentes na cidade
(casos, na cultura, da revista Cetóbriga
e do Clube Setubalense; no desporto, do Vitória Futebol Clube e do Clube Naval;
no empreendedorismo, de um hotel) para concluir com o encantamento que sentiu
ao visitar as instalações do balneário, “obra admirável” e um “relevantíssimo
serviço”.
O mesmo tom publicista usará Oscar Paxeco ao contar a
história da assistência e da prática caritativa em Setúbal e realçar que a
inauguração do balneário vinha “preencher uma falta que de há muito entre nós
se fazia sentir”.
Carlos Manito Torres, como autor do projecto, retoma
neste jornal a descrição da obra feita, salientando a qualidade da mesma e
acentuando a marca portuguesa: “Resta acrescentar”, diz a finalizar um dos seus
textos, “que, à excepção da caldeira, das tinas de ferro e de alguma tubagem,
tudo o mais pertence à indústria nacional. Mosaicos, azulejos, louças, tinas de
cimento e aparelhagem metálica, tudo isso é português”. O último texto de
Manito Torres é uma homenagem aos colaboradores do Balneário, mencionando os
mestres, o trabalhador do escritório, os mestres-operários, as empresas
colaboradoras e recordando que o mais antigo operário fora o Evaristo, mudo,
jovem de 16 anos adoptado pela Misericórdia, assumido como mascote do
empreendimento e que teve a honra de ser o seu primeiro utilizador e também o
seu primeiro divulgador experimentado - “no dia seguinte”, narra Manito Torres,
“solicitou novo duche e, tomado ele, de novo se dedicou, em plena cerca, à
propaganda da hidroterapia”.
Com o acesso a estes textos, o leitor percorre os
caminhos da investigação, sendo árbitro de um jogo que os documentos fazem com
o tempo.
Quanto ao contributo dos arquivos familiares para a
memória colectiva, a terceira abordagem que proponho, podemos fixar-nos na
curta “Introdução” com que Francisco Borba abre o livro, aí revelando que os
documentos que apresenta são oriundos da sua biblioteca e foram compilados por
seu avô, Francisco de Paula Borba, e por seu pai, João Botelho Moniz Borba,
tendo o primeiro sido o protagonista e criador do Balneário e tendo tido o
segundo um papel fulcral na história cultural setubalense.
Se esta indicação é também um gesto de homenagem (e
Francisco Borba já teve idêntica atitude quando, em 2010, publicou a obra Museu de Setúbal e o seu Fundador João
Botelho Moniz Borba), também o próprio acto de disponibilização dos fundos
arquivísticos se pauta por uma atitude de partilha com a comunidade, por uma
atitude de cumprimento e de oferta para a memória colectiva. E esta leitura,
porque nos ensina, porque nos lembra, não é menos importante do que qualquer
outra, sobretudo porque é ela que nos permite todas as outras e é ela que se
afirma como um contributo cívico para a identidade, com que nos devemos
congratular. Obrigados ficamos ao autor.
Mas esta possibilidade de leitura interpela-nos também
para um sentido de responsabilidade que vai além do gesto de partilhar: é que o
edifício foi construído para resolver um problema da população, com a ajuda e o
empenho dos setubalenses. Passados anos, passadas tantas voltas, seria bom que
se pudesse contar com a permanência deste marco de altruísmo, de generosidade e
de saúde e que, independentemente de outras finalidades que lhe possam ser
cometidas, ali fosse albergado um núcleo museológico sobre a prática da saúde e
da assistência em Setúbal, uma hipótese que Francisco Borba aflora quase em
sussurro no final do seu escrito. Seria uma boa forma de preservar a história,
de mostrar a importância que Setúbal teve neste plano e de cultivar a memória!
(Texto da apresentação do livro, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal, hoje)