De Timor
dizia o Livro de Leitura da 4ª Classe,
com aprovação oficial e de seguimento universal, que era “a mais distante
província portuguesa”, entrando por indicações curtas sobre a paisagem, a
agricultura, o clima e as produções, tudo lavrado em meia página. Esta ideia da
distância pretendia afirmar a extensão geográfica do que era o Portugal de
então, bem para fora dos seus limites europeus da actualidade, passando por
África e pela Ásia, uma distância que Camões, dirigindo-se ao rei,
perifrasticamente registou como o tamanho de um “império” que “o Sol, logo em
nascendo, vê primeiro”.
Estas duas
dimensões, da distância e da poesia, afloraram logo que vi o título da obra de
José António Cabrita que aqui nos traz hoje - Na Lonjura de Timor (Díli: Crocodilo Azul, 2016). Contudo, a ideia
da “lonjura” como distância foi a que se impôs, ainda que eivada de travos de
sonho, que foi o ingrediente que continuou a animar muitas das personagens que
povoam este livro, independentemente das circunstâncias que as contornaram.
A distância,
que pode ser medida por aquilo que há para percorrer, foi conveniente para as
situações relatadas nesta obra - porque a lonjura é meio caminho andado para o
afastamento e o esquecimento, porque a lonjura foi usada como castigo imposto
por quaisquer deuses, muitas vezes ignorando-se o porquê da pena.
Do que trata
o livro é-nos dito pelo seu autor logo na abertura - “Este texto é sobre certos
acontecimentos passados na lonjura de Timor. É sobre uma parte dolorosa dessa
maneira de ser e de fazer que, em sons lusos espalhados por esse mundo, se
expressa. É sobre desterros de pessoas.” Umas frases adiante, alinha-se o
método e confirma-se o assunto, dizendo-se que este livro é o conjunto de “umas
tantas nótulas inacabadas, para certas cogitações sobre um tempo que foi de
deportados em Timor, quando colónia portuguesa”.
“Nótulas”,
diz o autor, usando um termo que vai repetir ao longo das duas centenas de
páginas, como a lembrar ao leitor que se está perante um trabalho aberto, em
curso. “Nótulas”, que vão dando conta de uma investigação, materializada em
procura aturada, com recurso a jornais, escritos memorialísticos, estudos,
arquivos, testemunhos orais e também conjecturas, numa tentativa de estabelecer
caminhos e de resolver o jogo de descoberta e de lembrança de protagonistas que
foram heróis das suas vidas e, em vários casos, referências para os outros.
E, quanto ao
assunto, lá está a afirmação e a conveniência da distância - Timor como terra
de deportados, lá bem longe, recolhendo aqueles a quem as ordens mandaram que
saíssem do seu porto, do seu círculo de convivência e de vida, lá bem longe, em
terra pouco conhecida e mesmo desamparada, fosse pelo desconhecimento dela, fosse
pela distância.
Recua José
António Cabrita até meados do século XIX, quando, em 1857, o governador de
Timor Luís Augusto de Almeida Macedo enviou ao reino uma “relação dos
degredados” que ali cumpriam sentença, pouco mais de uma dúzia, condenados com
o argumento de serem ladrões ou vadios ou “resistentes a uma escolta”, de
vários não se sabendo “a culpa que lhes fora imputada”. Eram estes homens
provenientes maioritariamente de Portugal (uns condenados em Macau, outros em
Goa), outros de Macau, um “africano”, um de Timor, sendo que de vários não
consta a origem. O mesmo governador oficiaria ainda achando a “terra imprópria
para degredados, uma vez que se mostravam muito fáceis os caminhos de fuga”.
Este mais
recuado caso referido alimenta logo o estatuto colado ao deportado: alguém
indesejado, alguém a ser proscrito da sociedade, alguém a quem não deve ser
dada hipótese de regresso, um prisioneiro da distância e do isolamento, afinal.
Por Timor
foram estando degredados militares, degredados de oposição ao poder e uma série
de indesejados. Por lá passaram companheiros de Gungunhana, “índios ingleses”
que se tinham revoltado contra o governo das Índias e outros revoltosos da
Índia. Por Timor foram estando sobretudo opositores aos governos, pessoas que
pensavam diferente - em 1896, uma lei da responsabilidade de João Franco
estabelecia a deportação para as colónias para os “acusados de professar
doutrinas de anarquismo conducentes à prática desses actos”.
E é por
histórias da vida de algumas destas personagens que o livro de José António
Cabrita se deixa levar. Ao mesmo tempo que o leitor vai tendo a noção dos
exageros da decisão de deportação, vai-se também confrontando com as histórias
de homens proibidos dentro de uma história maior que foi a da censura e do
controlo das ideias, independentemente da cor do poder.
De alguns
desses homens, pelo que significaram, este livro avança com percursos
biográficos feitos palmo a palmo, muito numa prática de reconstituição assumida
como difícil por falta de meios, seja por escassez de informações de pormenor,
seja por desaparecimento ou destruição de arquivos, seja por desgaste da
memória, ausências que dificultam o trabalho do investigador.
As biografias
de deportação constantes nesta obra assentam em figuras que acabaram por ser
emblemáticas pelo seu protagonismo, chegam recheadas de muitas outras pequenas
histórias, numa “escrita de volteios”, como, quase no final, qualifica o
investigador o seu trabalho. Mencionem-se então os casos: Antero Tavares de
Carvalho, de Côja (Arganil), deportado para Timor em 1896 “por anarquismo”, que
ascendeu a vários lugares da administração, tendo, quando findou o seu estatuto
de deportado, chegado a presidente da Câmara de Luanda e, depois, a
Governador-Geral interino de Angola (como nota de história local: um António
Tavares de Carvalho, irmão deste Antero, exerceu as funções de tabelião em
Lisboa, tendo sido, em 1909, aquele que certificou o testamento de José Maria
dos Santos, homem bem ligado a Pinhal Novo); Joaquim António Pereira, conhecido
como “Bela Kun”, de Sesimbra, várias vezes preso e acusado de envolvimento em
atentado contra Ferreira do Amaral, comandante da polícia, e de ser “anarquista
perigoso, comunista”, deportado para Guiné em 1925 e, dois anos depois, para
Timor, onde viria a morrer em 1929; António Augusto Dias Antunes (que fora
Governador da Província de Angola), Fernando Pais Teles de Utra Machado (que
fora Governador de Angola e participara na Primeira Grande Guerra e fora
Ministro das Colónias) e Helder Armando dos Santos Ribeiro (participante da
Primeira Grande Guerra, ministro em diversas ocasiões e deputado), três
militares acusados de envolvimento no movimento revolucionário de 26 de Agosto
de 1931, deportados para Timor no início de Setembro; Manuel Viegas
Carrascalão, de S. Brás de Alportel, tipógrafo, activista sindical, várias
vezes preso, deportado em 1927, vindo a tornar-se numa figura influente do
ponto de vista económico, social e político em Timor; Carlos Cal Brandão,
advogado portuense, preso por se ter recusado a pagar multa aplicada por ter
presidido a encontro das academias de três centros universitários, deportado em
1931 para Cabo Verde e, depois, para Timor, chegando a merecer prestígio mesmo
entre adeptos do Governo e participando contra a invasão japonesa de 1945; Mário
Lopes da Silva, são-tomense, opositor do regime, deportado em 1947, com
residência fixada em Ataúro, depois de também ter sido expulso da Guiné, vindo
a ser nome importante na economia timorense.
De todos os
deportados, são estes oito que mais páginas enchem neste Na Lonjura de Timor. E o leitor vai sendo conduzido no desvendar
dos passos destes protagonistas em avanço lento, cruzando histórias, em avanços
e recuos, com olhares para o lado (por onde passam a política, as relações
pessoais, a família, as tomadas de posição e intervenientes secundários). As
biografias traçadas suscitam a curiosidade porque são um desfiar de histórias,
numa reconstrução que o próprio investigador frequentes vezes assume como uma
ousadia, afinal outra forma de dar conta das dificuldades sentidas no processo
de investigação.
Por estas
páginas vão correndo momentos da história de Timor também, particularmente
quanto às formas de vida e a diversas etapas do seu desenvolvimento ou quanto à
acção japonesa sobre Timor em 1945, tempo de sofrimento, opressão e destruição.
Por estas páginas vai deslizando também uma corrente de afecto a Timor – o
narrador (que o investigador também é) revela-se assiduamente, chamando a
atenção ao leitor ou mostrando as suas dúvidas e descobertas, tornando-se
presente num diálogo com o tempo e com a história, não escondendo uma verdade
para si essencial, revelada a cerca de duas dezenas de páginas do final: a
existência de “uma espécie de elo de ligação que é próprio do fascínio das
coisas humanas, da construção e da reconstrução do espaço social onde essas
coisas se realizam”.
Também
podemos falar de ensinamentos colhidos nesta obra, como sejam: a reflexão sobre
a efemeridade do poder, sobretudo se assente em questões de arbitrariedade; a reflexão
sobre o poder em si próprio, não esquecendo a relação entre os pequenos poderes
e o poder acima dos outros poderes; a reflexão sobre a responsabilidade da
atribuição do castigo ou da pena, no caminho da separação de poderes e de
competências (a política e a justiça não se podem corromper mutuamente); a
reflexão sobre a liberdade de pensamento e sobre o contributo que a diversidade
de convicções e de ideias pode prestar para o espaço e tempo comuns. Este é um
livro que se aproxima também de um documento humano, mostrando a perfídia do
rancor, muitas vezes disfarçada de poder, mostrando que os heróis rapidamente
são transformados em vilões e vice-versa, mostrando o predomínio da vontade e a
capacidade do ser humano em se adaptar e em ser agente de transformação.
Todas estas
razões nos levam a considerar este Na
Lonjura de Timor como um bom mergulho na memória, pondo a descoberto razões
de fundo para uma tão percepcionada e tão presente imagem da distância em
relação a Timor e dando a descobrir momentos de uma história que poderá ajudar
a construir identidades e aproximações entre povos que têm vários elementos
comuns, a começar nesta língua que, como disse um poeta que nunca foi a Timor,
também é a nossa pátria.
(Na apresentação do livro, em Pinhal Novo, ontem,
data em que passaram 41 anos sobre a declaração de independência em Timor)
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