Comecemos
pelo título – Somos Setúbal. Duas
palavras apenas, mas fortes e intensas, a oporem-se àquilo que o filósofo José
Gil chamou o “medo de existir”, característica comum em Portugal, recanto que
foi de nevoeiro e de “não inscrição”. Duas palavras que afirmam e intensificam
a identidade – se, por um lado, remetem para os valores de uma cidade, de uma
comunidade, por outro, essas mesmas palavras assumem neste título que “ser
Setúbal” não é uma questão apenas dos outros, mas de um “nós”, em que entram,
não só as figuras que vão ser tratadas, mas também os leitores, mas também as
autoras, uma pela escrita, outra pelo desenho. Uma certeza: ambas se afirmam
como fazendo parte desse universo que é o de haver uma maneira de “formar
Setúbal”, isto é, uma marca colada a estas margens do Sado, que passa pelas
pessoas.
Na nota que abre o livro, assinada
pelas autoras, este pormenor da identidade não é esquecido, lá sendo dito que
se trata de um “modesto contributo para a memória futura da história desta
cidade”. Então, este é um livro de comemoração, em que são memoradas figuras
que se identificam com Setúbal, independentemente do tempo em que por cá
andaram ou do tempo que as continua a fazer estar entre nós.
E, quanto ao conteúdo, ele é feito de
imagens e de palavras. O traço é de Mariana Ricardo, fotografado por Paulo
Alexandre Ferreira, traço que se passeia pelos rostos de personagens desta
cidade, quase todos eles com um sorriso esboçado, muitos deles conotados com a
fotografia que conhecemos, com a imagem que temos. Visualizar as personagens é
uma forma de as actualizar, de lhes dar consistência, de as tornar presentes no
nosso tempo e nos nossos momentos, de as incorporar na nossa vida, com entradas
pelas janelas das páginas, a contemplarem as palavras, os retratos escritos que
delas são feitos, num jogo de espelhos – ora a imagem, ora a impressão dada
pela escrita.
As palavras são de Alexandrina Pereira,
autora bem conhecida em Setúbal, sempre dada a estas marcas de identidade e de
afecto à terra e às gentes, para o que põe ao serviço a sua veia poética. Como
referem as autoras na nota introdutória, trata-se de um livro “em que as
palavras organizadas poeticamente se entrelaçam com a imagem de cada pessoa
aqui incluída”, duas formas de arte e de expressão, ambas se congregando na
busca e no enlevo de uma maneira de “ser Setúbal”.
Entra o leitor por estas páginas e
encontra vinte nomes, vinte imagens, vinte poemas, vinte curtas biografias, constituindo
esses nomes o tema de cada um dos poemas e de cada um dos registos biográficos,
abrangendo os universos da música, do teatro, da poesia, da intervenção social
e cívica, do desporto e alguns que, pela sua singularidade, podem ser
entendidos como “únicos”. Falamos de um livro que é um itinerário de visita à
memória de catorze nomes e de convívio com meia dúzia de outras figuras do
nosso presente, que povoam o nosso quotidiano, todos alinhados por ordem
alfabética, de A a Z, qual chave que abre e fecha um universo de referências,
num horizonte temporal que viaja entre o século XVIII, protagonizado por Luísa
Todi e por Bocage, e se despenha sobre o século XXI, num encontro com Eugénio
da Fonseca (o de data de nascimento mais recente), Carlos Rodrigues, Fernando
Tomé, Georgete de Jesus, Manuel de Jesus e Odete Santos. O trilho é ainda
alicerçado em Álvaro Félix, António Maria Eusébio (o que alcançou maior
longevidade, com quase 92 anos), Carlos César, Fernando Guerreiro, Francisco
Finura, Mário Regalado, Sebastião da Gama (o que teve menos tempo de vida),
Xico da Cana, Xico Jorge, Zé dos Gatos, Zeca Afonso e Zeca Gregório.
Marcas fortes trazidas para todas estas
personagens são a capacidade de sonhar, a humildade e uma filosofia de vida. O
livro abre com uma expressão do universo do teatro, como se fosse um
espectáculo aquilo a que o leitor vai assistir – “Sobe o pano, entra o actor”,
uma forma de apresentar a personagem do poema, o actor Álvaro Félix, mas também
de partilhar o palco da escrita com esta assistência que somos nós, por ali
desfilando a história e as histórias, os afectos, os trabalhos, as recordações
de momentos, as pessoas.
Os poemas contêm aguarelas de
apreciação, que vão desde a personalidade à obra produzida, todos assentando
numa base que pretende ser também uma homenagem. Esta aspiração revela-se no
prazer de serem mostradas as características, usando marcas de proximidade e
mensagens que ligam a poesia à figura, muitas vezes se socorrendo de um
tratamento por “tu”, como se se tratasse de uma carta, de uma conversa a dois.
Nessas mensagens vão sendo apontados os indicadores das vidas, os traços de
personalidade, os efeitos das obras e dos percursos, a admiração partilhada.
Mas também flui o testemunho, veiculado pela memória de quem escreve ou desenha,
num vaivém entre o passado e o presente, entre as histórias contadas e as
revividas.
As escolhas que deram origem a este
livro vão sendo marcadas pela admiração e pela amizade, é certo, mas também
pelos princípios seguidos na vida, correspondendo os valores apontados também a
um perfilhar desses mesmos valores. Por esse facto, também aqui se joga no
tabuleiro dos princípios, naquilo que pode constituir um conjunto de
referências para a sociedade – o “não fazer mal a ninguém” (apanágio do poeta
Calafate), a busca e a luta pela liberdade (linhas de força em Bocage, Odete
Santos e Zeca Afonso), a ousadia e a determinação (como no caso de Carlos
César), a partilha de alegrias e de sonhos (relevado de Manel Bola), a solidariedade
contra o esquecimento e a pobreza (resultante de Eugénio da Fonseca), a capacidade
criativa para representar a vida (decorrente de Álvaro Félix e de Fernando
Guerreiro), a humildade (marca de Fernando Tomé), o assumir a diversidade e a afirmação
da diferença (presente em Francisco Finura e em Zé dos Gatos), o respeito pela
tradição (visível na paixão pelo fado apresentada em Georgete e Manuel de
Jesus), o trabalho necessário ao sucesso (pairando em Luísa Todi), o convívio e
o respeito pela inspiração (emergente em Mário Regalado), o afecto pela
Natureza (testemunhado em Sebastião da Gama), o culto de capacidades
(simbolizado em Xico da Cana e em Zeca Gregório), a felicidade no que se faz
(patente em Xico Jorge). Enfim, um programa de humanidade, uma multiplicidade
de caminhos que ajudam à afirmação da vida, de um povo.
Somos
Setúbal é, por isso, um espelho que reflecte imagens e exemplos
edificadores e edificantes de uma comunidade, de uma identidade. Assim haja
vontade para descobrir naqueles que nos rodeiam os dotes e as marcas que podem
ajudar a que uma sociedade se afirme, desde que esses traços se revistam em
favor da humanidade. Por isso… somos Setúbal!
[na apresentação da obra, em 13 de Fevereiro, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal]
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