quarta-feira, 22 de junho de 2016

Sobre "Pedro, Pescador de baleias", de Kingston



Data de 1851 a publicação de Pedro, pescador de baleias, do inglês William Henry Gilles Kingston (1814-1880), que chegou a viver em Portugal, no Porto, onde seu pai era comerciante, que escreveu sobre Portugal (Lusitanian sketches of the pen and pencil, 1845) e obteve reconhecimento por parte do governo português. Cerca de um século depois da edição do livro, a colecção “Biblioteca dos Rapazes”, criada pela editora Portugália, era enriquecida com este título (nº 7), em tradução devida a Ricardo A. Fernandes, ainda que com a indicação de não se tratar da edição integral.

O título da colecção (em que surgiram clássicos como Cervantes, Cooper, Defoe, Gautier, Melville, Stevenson, Swift ou Twain) é significativo da época (década de 1940), mas o conjunto das obras dadas a conhecer é também elucidativo quanto ao género de livros divulgados – narrativas em que a aventura era a condição necessária e em que o herói se impunha.

Assim acontece com a personagem Pedro, jovem que, por ter sido apanhado a caçar em propriedade privada, é obrigado a partir para o estrangeiro, forma de o crime lhe ser perdoado. Neste primeiro episódio da caça percebe o leitor que o protagonista, que também é narrador das suas façanhas, é amante do risco (“seduzia-me a ideia do perigo”) e, depois, quando o castigo de partir para a América lhe é imposto, aceita-o com uma justificação de todo aventureira – “A vida de marinheiro, se é certo o que dela tenho ouvido, deve agradar-me.” Obviamente, não era uma vida fácil.

Fica, no entanto, como marca menos positiva, o sofrimento devido ao afastamento da família, registo que servirá para acentuar também o tom moralista que povoa a história, vivida “por longos e penosos anos” – “Escrevo para uma maioria feliz dos meus leitores; alguns serão menos afortunados e merecem de facto a simpatia de todos os outros. Enquanto puderdes, acarinhai o vosso lar; vereis como, à distância, nas horas de saudade, a simples recordação da vossa casa será como um oásis verdejante no árido deserto da vida, porque, como diz a velha canção, não há lugar de maior encanto do que o nosso lar…”.

Filho de clérigo que exercia a sua função no sul da Irlanda, Pedro parte para Dublin e dali para Liverpool, âncora de onde sairá para o mundo e para a aventura que compõe o livro. A sua vida vai ser, sobretudo, de marinheiro a bordo de vários navios: o “Cisne Preto”, onde começa a prender a arte de marear, que se incendiará na viagem rumo à América; o “Mary”, que o resgata, pertencente ao capitão Dean, pai da rapariga que dá o nome ao barco e por quem Pedro se apaixona; o “Espuma”, barco de piratas, marinhagem com quem Pedro tem de conviver e cujo estatuto tem de adquirir para sobreviver; o “Neptuno”, da marinha americana, que luta contra a pirataria e o socorre; o “Pocahuntas”, corveta que naufragará contra um icebergue; o “Shetland Maid”, baleeiro que o salva mas que acaba por perder numa caça à baleia, tendo sido Pedro e alguns dos seus companheiros dados como mortos; o “St. Jean”, que o recupera na safra seguinte e o traz de volta à Irlanda.

No decurso de um trajecto que demorou anos, Pedro circulou pela América e pelas terras do Árctico, conviveu com vários grupos de marinheiros e viveu durante uma temporada longa com esquimós, tendo-se adaptado a diversos ambientes, em todos eles sendo protagonista, contando sempre com um grupo reduzido de amigos, que se foi tornando mais pequeno à medida que os acidentes foram ocorrendo.

Evidente para o leitor é a simpatia de Pedro por valores humanistas como a solidariedade, a amizade, o respeito pelo outro, assim como se torna visível a sua repulsa por algo que contrarie estes mesmos valores – prova máxima desta rejeição é verificada no tempo em que tem de conviver e participar no barco de piratas, ambiente que suporta por sobrevivência, mas que não perfilha e que acaba por ajudar a destruir, onde encontrará um João Pinto, “português de nascimento, se bem que afirmasse ser americano e falasse bem o inglês”, amante de bebida, que Pedro acabará por embriagar para tentar salvar o capitão Dean e a sua filha, Mary, cujo barco fora assaltado pelos corsários.

A história é muito mais de acção do que de revelação dos mundos que vai conhecendo – “É meu objectivo descrever os factos que ocorreram na minha mocidade, mais do que as paisagens que meus olhos puderam admirar”, diz. Ainda assim, a vida que lhe merece mais longa descrição é a do tempo que passou com os esquimós, em que são descritos hábitos, formas de viver, maneiras de construir abrigo, tudo num ritmo que acompanha a própria aprendizagem que Pedro e os seus poucos companheiros tiveram de fazer para sobreviver no meio do gelo durante uns meses. Preocupação do narrador é o relato do que se passou no mar, com os pormenores dos acidentes, das dificuldades e da forma de as ultrapassar, percurso lento para a construção do herói, várias vezes dando nota ao leitor dessa sua preocupação – “Desculpem-me os leitores se fui breve na descrição dos factos passados em terra; mas lembrem-se de que estou a narrar as minhas aventuras marítimas”.

O herói regressa a casa, na Irlanda, passados anos, sob um ar tão miserável que nem as pessoas que lhe eram mais próximas o reconhecem, pois o davam como morto, acreditando que se tinha perdido “nos Mares do Norte havia cerca de um ano”. Tal como Ulisses, o herói será mais facilmente reconhecido pelos seus antigos cães do que pelas pessoas…

Contudo, o final é feliz e há o reencontro de Pedro com a família e com os seus amigos Dean e Mary. Está a história pronta para finalizar, pois o que poderia acontecer a seguir era óbvio e, por isso, o narrador dirá: “Não vale a pena enfastiar o leitor, contando-lhe o que foi a minha vida subsequente”. Há, no entanto, uma derradeira mensagem de teor moralista, quando Pedro diz ao pai: “Eu volto imensamente mais rico. Aprendi a temer a Deus, a venerá-lo nas suas obras e a confiar na sua infinita misericórdia. Também aprendi a conhecer-me a mim próprio e a seguir os conselhos de todos aqueles que me ensinam a praticar o bem.” Perante tal confissão e reconhecimento, a última intervenção no livro pertence ao pai de Pedro, que, como clérigo e habituado ao discurso em torno dos exemplos, exclama: “Nesse caso, sinto-me imensamente feliz com a tua riqueza espiritual e espero que os outros saibam extrair uma lição proveitosa das aventuras de Pedro, pescador de baleias.”

Económico na descrição, farto na acção e na forma de vencer o perigo que está sempre a rondar o herói, este Pedro, Pescador de baleias entusiasma por esse lado aventureiro em que a adversidade (mesmo aquela que é propositadamente provocada pelos homens) é continuamente vencida  pela tenacidade e pela crença na possibilidade que é o ser humano, sempre num equilíbrio com a Natureza e com os outros, sempre com um esgar que se debruça sobre a necessidade de aprender e sobre a fragilidade que a vida é, nunca fechando a porta aos outros.

 

Sublinhados

Destino – “As coisas acontecem pelo melhor, mesmo quando parecem resolver-se num pleno fiasco.”

Emigração – “Apesar das dificuldades, a emigração continuará a fluir; mas dependerá de todos nós o ser ela uma maldição ou uma bênção para aqueles que partem; de nós dependerá ainda o gravar-se para sempre, no coração dos emigrantes, um sentimento ou de aversão ou de amor pela pátria que abandonam.”

Esperança – “A esperança não deve ir ao ponto de nos ocultar a verdade dos factos.”

Mal – “Quando a gente procura razões para cometer uma acção má, os piores argumentos são muitas vezes utilizados para servir esse fim.”

Mal – “Quando não puderes remediar o teu mal, arreganha os dentes e suporta-o; mas, se podes safar-te dele, nesse caso atira-te corajosamente para diante até te libertares.”

Mulher – “Onde existe doença e miséria, aí encontraremos mãos delicadas de mulher a cuidar de quem sofre.”
Paisagem – “Não são os panoramas exteriores que dão satisfação e felicidade ao homem, mas sim o que reside dentro dele, a consciência e o sentimento.”

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