quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Imigrantes portugueses em França e Grande Guerra, com Laurent Dornel e Joana Carvalho Fernandes



A imigração em França é fenómeno acentuado desde finais do século XIX, mas a Primeira Guerra Mundial, na medida em que muitos homens ali apareceram para combater e para trabalhar, deu contributo importante para essa imagem, em que os portugueses são também protagonistas. Dois livros nos falam dessa epopeia migratória: um, de Laurent Dornel, conta a história da imigração relacionada com a Grande Guerra; outro, de Joana Carvalho Fernandes, narra vidas de protagonistas portugueses que desde a Grande Guerra se têm aventurado em terras de França.
O estudo de Laurent Dornel intitulado Les étrangers dans la Grande Guerre (Col. “La Documentation Française”. Paris: Musée de l’Histoire de l’Immigration, 2014) conta a relação da Grande Guerra com a imigração em França, mesmo porque, na altura, a presença de estrangeiros naquele país podia também ser considerada uma presença inimiga (não esquecendo que, pelos censos de 1911, dos mais de um milhão de imigrantes, cem mil eram alemães e quinze mil eram austríacos) ou indesejada, como bem o testemunhou Aquilino Ribeiro no diário É a guerra (1934), em que regista a efervescência vivida em Paris no período entre 1 de Agosto e 26 de Setembro de 1914.
Durante a Guerra, em França havia cerca de meio milhão de trabalhadores estrangeiros, provenientes dos países limítrofes (Portugal incluído) e do norte de África e Indochina, além de cerca de 37 mil chineses. Mas a Guerra levou também a França uns milhares de estrangeiros (por implicação de outros países na Guerra ou por adesão voluntária de cidadãos ao exército francês – “la Légion étrangère compta autour de 30000 à 40000 hommes représentant une cinquantaine de nationalités”) e de naturais das colónias francesas. Parte significativa dos trabalhadores estrangeiros estava ligada ao campo e à indústria do armamento e havia programas de inserção dos imigrantes, que passavam pela aprendizagem da língua e pela ligação dos imigrados aos seus países de origem – por exemplo, em termos de alimentação, era pensada a necessidade de “morue séchée pour les ouvriers portugais”. Contudo, a partir de 1917, nem sempre os trabalhadores imigrantes foram bem vistos, pois a população francesa pensava que “la présence de la main-d’oeuvre étrangère permettait le maintien et l’envoi accru des hommes français au front”.
A questão do peso que os estrangeiros ou os originários das colónias pudessem vir a ter no futuro do país levou ao estabelecimento de uma hierarquização quanto às características dos trabalhadores por nacionalidade, dizendo-se dos portugueses que “sont résistants”, que “ils ne réculent pas devant les besognes pénibles et dangereuses, mais ils ont un grave défaut, l’instabilité; le besoin de mouvement, de changement vient du caractère national, ondoyant, incapable de prendre une décision, de s’arrêter à un parti”. Em 1919, Joseph Lugand apresentaria uma tese que classificava a mão de obra estrangeira, na linha de uma ordenação relacionada com as raças, caracterizando os portugueses como “bonne main-d’oeuvre, dociles, aptes aux travaux de force”, forma de estereotipar as nacionalidades de acordo com trabalhos a serem cometidos. Depois da Guerra, a imigração em França continuou e houve políticas que defenderam a preferência pelos europeus, sobretudo originários de países que tivessem combatido ao lado dos franceses.
O estudo de Dornel é prático e de leitura rápida, compreendendo o leitor a turbulência social que foi receada por políticos e elites perante um fenómeno como o da imigração, sobretudo num país em situação de guerra e com forte afluência de cidadãos das regiões colonizadas pela própria França – pela primeira vez estes homens iam conhecer a sede do império e o relacionamento social poderia ter efeitos imprevisíveis, mesmo do ponto de vista político. A descolonização, que iria suceder anos mais tarde, terá fomentado a igualdade de oportunidades e a facilidade de relacionamento? Na conclusão, o autor não manifesta muito optimismo: “La décolonisation a évidemment rendu impossible le maintien du vocabulaire colonial; mais indigène et colonial n’ont-ils pas été remplacés par Maghrébin, Subsaharien et même, tout simplement, par immigré? Dans le même temps, la construction d’un espace politique européen, en faisant émerger une citoyenneté européenne, a confirmé, dans la pratique comme dans les discours, la partition entre d’un côté, une immigration européenne blanche, libre d’aller et venir à sa guise, et, de l’autre, identifiée à l’immigration postcoloniale et de moins en moins désirable, une immigration officiellement extra-européenne, appellation qui maintient l’euphémisation ancienne de la couleur et le non-dit de la blanchité.”
A questão da presença de portugueses em França desde a Primeira Grande Guerra acaba de ser abordada por Joana Carvalho Fernandes, na obra A porteira, a ‘madame’ e outras histórias de portugueses em França (Col. “Retratos da Fundação”. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2015).
É um conjunto de três partes – “Os históricos: a Primeira Guerra, o salto, a reforma”, “Para lá do estereótipo: o humor, os negócios, o desporto, a política” e “Novos emigrantes” – que totaliza catorze capítulos, cada um dedicado à história de uma personagem. Os títulos das partes permitem desde logo uma leitura condimentada pela história da emigração e pelas diversas fases que a foram fazendo: desde os mais antigos emigrados que ficaram por França graças à sua participação na Grande Guerra, passando pela ida “a salto” e pelos casos de portugueses que se distinguiram (e são conhecidos) nas mais diversas áreas (política, comércio, cultura, negócios – haja em vista nomes como os de Carlos da Silva, que foi deputado e chegou a conselheiro do primeiro-ministro francês Valls, de Manuel Domingues, proprietário de restaurante frequentado pela família Le Pen, de Rogério do Carmo, co-fundador da rádio Alfa, ou de Armando Pereira, co-fundador da Altice) até aos que recorreram à emigração como forma de ultrapassar a crise recente.
Duas histórias se relacionam com a Grande Guerra: a primeira, de João Assunção, que combateu em La Lys e ajudou, em tempos de folga, uma família francesa no amanho da terra, e se apaixonou por Mélanie, com quem casou em 1920, união de que nasceram 15 filhos; a segunda, de Manuel de Sousa Dias, que chegou a 2º sargento músico no Corpo Expedicionário Português e, em 1922, voltou a rumar a França, desta vez levando a mulher e o filho.
Cada uma das histórias tem os seus momentos de epopeia e de interesse. João Assunção, da zona de Coimbra, foi mineiro a partir de 1919 e a indumentária usada no trabalho era o uniforme de soldado e o capacete das trincheiras. Habilidoso, acabou por abrir um ateliê de bicicletas. Falecido em 1975, com 80 anos, é à sua filha, Felícia Pailleux, de 89 anos, que está atribuída a função de porta-guião da Liga dos Combatentes em França, marcando presença nas celebrações de Richebourg e de La Couture em memória dos portugueses caídos em 1917-1918. Sentindo a necessidade de preservar a História, Felícia passou a mensagem à neta, Aurore Rouffelaers, de 36 anos, que “criou uma agência de guias-intérpretes que organiza roteiros pelos grandes campos de batalha da Primeira Guerra na Flandres francesa e pelas memórias das linhas das trincheiras”.
Quanto a Manuel Dias, da região de Arouca, viveu até 1929, ano em que faleceu em consequência de um acidente. Mas o seu filho, António, nessa altura com 14 anos, que teve de ajudar os outros três irmãos a partir desse momento, casaria, anos mais tarde, com Zoémie Bonville, da região de Champagne e que recebeu da família vinhas e umas caves. Ainda antes de 1950 (o casamento foi em 1948), o casal foi responsável pela introdução no mercado do champanhe com o rótulo “De Sousa – Bonville”, o único champanhe com nome português.
Estas são duas histórias de portugueses em França, que passaram pelas ligações à Primeira Grande Guerra e fizeram parte do leque de imigrantes que começou a alargar-se naquele país no pós-guerra: em 1921, havia 11 mil portugueses recenseados em França, número bem maior do que os mil e trezentos registados em 1911.
A recolha de casos levada a cabo por Joana Carvalho Fernandes torna-se um elemento interessante para o retrato da identidade dos portugueses, escrito com vivacidade, em género de reportagem, dando frequentemente a palavra aos seus protagonistas, contando um pouco do que tem sido a narrativa dos portugueses pela França, percurso eivado também de momentos menos felizes, com dificuldades de integração à mistura, mas também com realizações elevadas, todos eles constituindo desafios à história da imigração e encontrando ecos no estudo de Laurent Dornel.

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