A
imigração em França é fenómeno acentuado desde finais do século XIX, mas a
Primeira Guerra Mundial, na medida em que muitos homens ali apareceram para
combater e para trabalhar, deu contributo importante para essa imagem, em que
os portugueses são também protagonistas. Dois livros nos falam dessa epopeia
migratória: um, de Laurent Dornel, conta a história da imigração relacionada
com a Grande Guerra; outro, de Joana Carvalho Fernandes, narra vidas de
protagonistas portugueses que desde a Grande Guerra se têm aventurado em terras
de França.
O
estudo de Laurent Dornel intitulado Les
étrangers dans la Grande Guerre (Col. “La Documentation Française”. Paris:
Musée de l’Histoire de l’Immigration, 2014) conta a relação da Grande Guerra
com a imigração em França, mesmo porque, na altura, a presença de estrangeiros
naquele país podia também ser considerada uma presença inimiga (não esquecendo
que, pelos censos de 1911, dos mais de um milhão de imigrantes, cem mil eram
alemães e quinze mil eram austríacos) ou indesejada, como bem o testemunhou
Aquilino Ribeiro no diário É a guerra
(1934), em que regista a efervescência vivida em Paris no período entre 1 de
Agosto e 26 de Setembro de 1914.
Durante
a Guerra, em França havia cerca de meio milhão de trabalhadores estrangeiros,
provenientes dos países limítrofes (Portugal incluído) e do norte de África e
Indochina, além de cerca de 37 mil chineses. Mas a Guerra levou também a França
uns milhares de estrangeiros (por implicação de outros países na Guerra ou por
adesão voluntária de cidadãos ao exército francês – “la Légion étrangère compta
autour de 30000 à 40000 hommes représentant une cinquantaine de nationalités”) e
de naturais das colónias francesas. Parte significativa dos trabalhadores
estrangeiros estava ligada ao campo e à indústria do armamento e havia programas
de inserção dos imigrantes, que passavam pela aprendizagem da língua e pela
ligação dos imigrados aos seus países de origem – por exemplo, em termos de
alimentação, era pensada a necessidade de “morue séchée pour les ouvriers
portugais”. Contudo, a partir de 1917, nem sempre os trabalhadores imigrantes
foram bem vistos, pois a população francesa pensava que “la présence de la
main-d’oeuvre étrangère permettait le maintien et l’envoi accru des hommes
français au front”.
A
questão do peso que os estrangeiros ou os originários das colónias pudessem vir
a ter no futuro do país levou ao estabelecimento de uma hierarquização quanto
às características dos trabalhadores por nacionalidade, dizendo-se dos
portugueses que “sont résistants”, que “ils ne réculent pas devant les besognes
pénibles et dangereuses, mais ils ont un grave défaut, l’instabilité; le besoin
de mouvement, de changement vient du caractère national, ondoyant, incapable de
prendre une décision, de s’arrêter à un parti”. Em 1919, Joseph Lugand apresentaria
uma tese que classificava a mão de obra estrangeira, na linha de uma ordenação
relacionada com as raças, caracterizando os portugueses como “bonne
main-d’oeuvre, dociles, aptes aux travaux de force”, forma de estereotipar as
nacionalidades de acordo com trabalhos a serem cometidos. Depois da Guerra, a
imigração em França continuou e houve políticas que defenderam a preferência
pelos europeus, sobretudo originários de países que tivessem combatido ao lado
dos franceses.
O
estudo de Dornel é prático e de leitura rápida, compreendendo o leitor a
turbulência social que foi receada por políticos e elites perante um fenómeno
como o da imigração, sobretudo num país em situação de guerra e com forte
afluência de cidadãos das regiões colonizadas pela própria França – pela
primeira vez estes homens iam conhecer a sede do império e o relacionamento
social poderia ter efeitos imprevisíveis, mesmo do ponto de vista político. A
descolonização, que iria suceder anos mais tarde, terá fomentado a igualdade de
oportunidades e a facilidade de relacionamento? Na conclusão, o autor não
manifesta muito optimismo: “La décolonisation a évidemment rendu impossible le
maintien du vocabulaire colonial; mais indigène
et colonial n’ont-ils pas été
remplacés par Maghrébin, Subsaharien et même, tout simplement, par immigré? Dans le même temps, la
construction d’un espace politique européen, en faisant émerger une citoyenneté
européenne, a confirmé, dans la pratique comme dans les discours, la partition
entre d’un côté, une immigration européenne blanche, libre d’aller et venir à
sa guise, et, de l’autre, identifiée à l’immigration postcoloniale et de moins
en moins désirable, une immigration officiellement extra-européenne, appellation qui maintient l’euphémisation
ancienne de la couleur et le non-dit de la blanchité.”
A
questão da presença de portugueses em França desde a Primeira Grande Guerra acaba
de ser abordada por Joana Carvalho Fernandes, na obra A porteira, a ‘madame’ e outras histórias de portugueses em França
(Col. “Retratos da Fundação”. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos,
2015).
É
um conjunto de três partes – “Os históricos: a Primeira Guerra, o salto, a
reforma”, “Para lá do estereótipo: o humor, os negócios, o desporto, a
política” e “Novos emigrantes” – que totaliza catorze capítulos, cada um
dedicado à história de uma personagem. Os títulos das partes permitem desde
logo uma leitura condimentada pela história da emigração e pelas diversas fases
que a foram fazendo: desde os mais antigos emigrados que ficaram por França
graças à sua participação na Grande Guerra, passando pela ida “a salto” e pelos
casos de portugueses que se distinguiram (e são conhecidos) nas mais diversas
áreas (política, comércio, cultura, negócios – haja em vista nomes como os de
Carlos da Silva, que foi deputado e chegou a conselheiro do primeiro-ministro
francês Valls, de Manuel Domingues, proprietário de restaurante frequentado
pela família Le Pen, de Rogério do Carmo, co-fundador da rádio Alfa, ou de
Armando Pereira, co-fundador da Altice) até aos que recorreram à emigração como
forma de ultrapassar a crise recente.
Duas
histórias se relacionam com a Grande Guerra: a primeira, de João Assunção, que
combateu em La Lys e ajudou, em tempos de folga, uma família francesa no amanho
da terra, e se apaixonou por Mélanie, com quem casou em 1920, união de que
nasceram 15 filhos; a segunda, de Manuel de Sousa Dias, que chegou a 2º
sargento músico no Corpo Expedicionário Português e, em 1922, voltou a rumar a
França, desta vez levando a mulher e o filho.
Cada
uma das histórias tem os seus momentos de epopeia e de interesse. João Assunção,
da zona de Coimbra, foi mineiro a partir de 1919 e a indumentária usada no
trabalho era o uniforme de soldado e o capacete das trincheiras. Habilidoso,
acabou por abrir um ateliê de bicicletas. Falecido em 1975, com 80 anos, é à
sua filha, Felícia Pailleux, de 89 anos, que está atribuída a função de
porta-guião da Liga dos Combatentes em França, marcando presença nas
celebrações de Richebourg e de La Couture em memória dos portugueses caídos em
1917-1918. Sentindo a necessidade de preservar a História, Felícia passou a
mensagem à neta, Aurore Rouffelaers, de 36 anos, que “criou uma agência de
guias-intérpretes que organiza roteiros pelos grandes campos de batalha da
Primeira Guerra na Flandres francesa e pelas memórias das linhas das
trincheiras”.
Quanto
a Manuel Dias, da região de Arouca, viveu até 1929, ano em que faleceu em
consequência de um acidente. Mas o seu filho, António, nessa altura com 14
anos, que teve de ajudar os outros três irmãos a partir desse momento, casaria,
anos mais tarde, com Zoémie Bonville, da região de Champagne e que recebeu da
família vinhas e umas caves. Ainda antes de 1950 (o casamento foi em 1948), o
casal foi responsável pela introdução no mercado do champanhe com o rótulo “De
Sousa – Bonville”, o único champanhe com nome português.
Estas
são duas histórias de portugueses em França, que passaram pelas ligações à
Primeira Grande Guerra e fizeram parte do leque de imigrantes que começou a
alargar-se naquele país no pós-guerra: em 1921, havia 11 mil portugueses
recenseados em França, número bem maior do que os mil e trezentos registados em
1911.
A recolha de casos levada a cabo por Joana Carvalho
Fernandes torna-se um elemento interessante para o retrato da identidade dos
portugueses, escrito com vivacidade, em género de reportagem, dando
frequentemente a palavra aos seus protagonistas, contando um pouco do que tem
sido a narrativa dos portugueses pela França, percurso eivado também de
momentos menos felizes, com dificuldades de integração à mistura, mas também
com realizações elevadas, todos eles constituindo desafios à história da
imigração e encontrando ecos no estudo de Laurent Dornel.
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