Algumas crónicas (quase uma centena) de José
Tolentino Mendonça que viram a luz no Expresso
ao longo dos anos de 2013 e de 2014 estão agora ao alcance do leitor sob o
título Que coisa são as nuvens
(Lisboa: “Expresso”, 2015). Não é experiência nova do autor, uma vez que já em
2010 dera à estampa a colecção O
Hipopótamo de Deus e outros textos (Lisboa: Assírio & Alvim), reunião
de crónicas saídas nos “media”, entre os quais se contava também o semanário Expresso.
De crónicas não se pode esperar o que vá além
de uma reflexão sobre algo do quotidiano; mas das crónicas se pode esperar tudo
isso que é a reflexão, uma maneira de olhar o mundo, de o sentir, de nele
reparar. O título da colectânea, vindo de uma filme de Pasolini (1967), alberga
pensamentos que foram “uma iniciação, mesmo que imprevisível, à arte do espanto”;
daí que o título do texto introdutório passe mesmo por essa virtude do olhar
reforçada com o verbo “reparar”: “Para quem não tiver reparado”.
As crónicas de Tolentino Mendonça passam por
esse espanto com as coisas do mundo e da vida, algo que nos surpreende e
cativa, que se constrói sobre a estética, venha ela da escrita ou das outras
artes, corra ela desde os sentimentos ou decorra dos acontecimentos, conflitue
ela com as nossas formas de vida ou
abra-nos caminhos de descoberta.
Tanto é merecedor da crónica o bolo de
bolacha como o bolo de arroz ou o chocolate, os prazeres experimentados como as
descobertas, o sentido poético como as grandes obras. E o leitor vai saltando
de Eugénio de Andrade para Ana Teresa Pereira, pensando sobre a morte ou sobre
a poesia ou sobre os avós, entrando na pedagogia de Ruben Alves ou no fascínio
de El Greco, convivendo com Van Gogh ou com José Saramago, ouvindo Rosenzweig
ou Cesariny, pensando com Sophia ou com Simone Weil (dois dos nomes que emergem
com mais frequência).
Estes pensares de Tolentino Mendonça vão ao
encontro de formas de ser e de viver o mundo e a vida, congregando a
espiritualidade inerente a cada gesto ou a cada momento, convidando a entradas
por reflexões de outros, povoadas por citações exemplares do lido e do
conhecido como se fossem ingrediente ou condimento. São textos curtos, que não vão
além das duas páginas mas que nos deixam à porta das descobertas, no limiar do
que é “reparar”, lá onde as nuvens mostram as suas diferenças e as suas
consistências.
Uma boa iniciativa do Expresso, numa luta contra a efemeridade, em prol de momentos de encontro do leitor com o pensamento e com o mundo!
Sublinhados
Abraço – “Um abraço é uma hipótese de equilíbrio
que a hospitalidade dos corpos é chamada a inventar. Qualquer abraço começará
por ser uma coreografia instável. Se calhar, a primeira forma do abraço é só um
agarrar-se para não cair. Pouco a pouco, o abraço deixa de ser uma coisa que tu
me dás ou que eu te dou e surge como um lugar novo, um lugar que não existia no
mundo e que juntos encontramos.”
Acabar – “O momento de viragem acontece quando
olhamos de outra forma para o inacabado, não apenas como indicador ou sintoma
de carência, mas condição irrecusável do próprio ser. Ser é habitar, em
criativa continuação, o seu próprio inacabado e o do mundo. O inacabado
liga-se, é verdade, com o vocabulário da vulnerabilidade, mas também com a
experiência de reversibilidade e de reciprocidade.”
Amigo – “A banalização da palavra amigo produz uma
incapacidade de compreender (e de viver) amizades verdadeiras.”
Arte – “Há três dimensões fundamentais (e esquecidas)
na arte, companhia que importa recordar: a gratuidade, a aceitação e a capacidade
de partilhar o silêncio.”
Casa – “As casas são uma máquina de habitar e
desempenham um papel chave na construção da nossa experiência humana. Mas todas
as casas falam, pela presença ou pela ausência, de outra coisa que está para lá
delas. Falam disso que um humano é, matéria ao mesmo tempo sucinta e imensa, de
fazer espanto. Falam do conhecimento que só é verdadeiro se alojar em si a
consciência do que ignora hoje e ignorará até ao fim. Falam da luta pela
sobrevivência, com a sua rudeza, a sua dor e tumulto, mas também da excedência
que experimentamos, porque se a vida não transbordar não é vida. Falam da
intimidade, aquém e além da pele. Falam do silêncio e da palavra, que umas
vezes se contradizem e outras não. Falam do cumprido e do adiado, do sono e da
vigília, do fraterno e do oposto, da ferida e do júbilo, da vida e da morte.”
Desgraça
(íntima) – “A nossa cabeça de pessoas
crescidas é complicada. Descobrimos que há um prazer em listar achaques e
traições, e se a minha chaga puder ser maior do que a tua tanto melhor, isso
reforça o meu estatuto. A verdade é que, se não tomarmos atenção, a desgraça
íntima torna-se um escanzelado pódio onde nos blindamos.”
Dinheiro – “O dinheiro não se fica a orientar apenas
o ordenamento material da vida comum, mas contamina indelevelmente a dimensão
imaterial da vida, as suas aspirações mais profundas. (…) Quer dizer, passou a
ser um poderio, pois actua por si mesmo, detendo uma autonomia que só conhece
como lei a sua. O dinheiro só tem respeito pelo dinheiro: nas relações que
estabelece, tudo se compra e se vende, e é nessa espécie de delírio totalitário
que ele prefere viver.”
Futuro – “Embora nos pese toda a indefinição ou os
maus prognósticos, conservamos em relação ao futuro uma expectativa que nunca é
completamente fechada. Quem sabe? – insistimos nós.”
Lentidão – “A lentidão ensaia uma fuga ao
quadriculado; ousa transcender o meramente funcional e utilitário; escolhe mais
vezes conviver com a vida silenciosa; anota os pequenos tráficos de sentido, as
trocas de sabor e as suas fascinantes minúcias, o manuseamento diversificado e
tão íntimo que pode ter luz.”
Passado – “O passado é, em grande medida, um tempo
confortável, mesmo quando nos esmaga. Provoca-nos o alívio, (…) está num lugar
certo, mesmo se nos espaventa de tão completamente errado.”
Presente – “Do presente, da pressão do presente, da
sua irrefutável factualidade, desatamos facilmente a escapar.”
Reparar – “Reparar introuz-nos por si só numa
lentidão, porque aquilo a que alude não é um observar qualquer: é um ver
parado, um revisar porventura mais minucioso do que o mero relance; é uma visão
segunda, uma nova oportunidade concedida não apenas ao objecto, nem sequer
apenas ao olhar, mas à própria visibilidade. [Reparar] põe também em prática
uma reparação, um processo de restauro, de resgate, de justiça. Como se a
quantidade de meios-olhares e sobrevoos que dedicamos às coisas fosse lesivo
dessa ética que permanece em expectativa no encontro com cada olhar. Por isso,
de certa forma, só quando reparamos começamos a ver.”
Saber – “Reconhecer que ‘não se sabe’ pode trazer
desconforto, mas traz também saúde interior e criatividade.”
Silêncio – “Aquilo a que chamamos silêncio só se
torna real e efectivo através de um processo de despojamento interior, e de
nenhuma outra maneira.”
Simplicidade – “Nada nos pede mais trabalho e arte do que
a simplicidade.”
Vida – “A vida é completamente artesanal. Não é possível
reproduzi-la em série, nem encontra-la feita noutro lado. A vida requer a
paciência do oleiro, que, para fazer um vaso que o satisfaça, faz duzentos só a
treinar o gosto, a habilidade, a testar a sua ideia.”
Vida – “Privamo-nos a nós próprios
do tempo necessário para colher o sabor, o silêncio ou as cintilações que
temperam a vida. No atropelo ofegante a que nos entregamos há um crescente
alheamento de nós próprios. Não lhe damos o estatuto de patologia, mas esta
desertificação da vida interior disfarçada de eficácia o que é senão isso? As
nossas sociedades medem infelizmente o seu progresso esquecendo, quando não
obliterando, domínios da vida humana que não são mensuráveis e que têm a ver
com a interioridade, a criação, o dom, a alegria, o sentido.”
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