Este
poema de Alexandre Castanheira (Nascemos para amar. Laranjeiro: Junta de Freguesia do Laranjeiro, 2013) corre sobre três partes, construídas sobre a
estrutura de uma carta, longa carta, dirigida a Manuel Maria, “sem aviso de
recepção”, qual missiva a um herói, por quem se confessa a admiração, o espanto
e a identificação logo na frase inaugural – “foste meu herói na juventude”. O
leitor entende desde início esse apego, não só porque a juventude é tempo de
dedicação a heróis, mas também porque ela mesma é uma forma de heroísmo.
Manuel
Maria, o destinatário, outro não é senão Bocage. E o facto de o poeta
seleccionar esta figura é uma forma de metaforizar um percurso de vida, de
anunciar, de imediato, que a navegação foi constante nas inconstâncias, apesar
de não ter perdido nunca o rumo da liberdade. Por aqui passam as marés da vida
como resposta a uma pergunta curta, mas eficaz, sobre a aventura que se escreve,
tentando aproximar os trilhos seguidos – “Foste meu herói na juventude. Vida
heróica?” A questão é também ponto de partida para retrospectiva, para balanço,
necessariamente com implicações autobiográficas, porque a vida só é sujeita a
balanço escrito justamente na dimensão do registo autobiográfico. A vida é,
assim, apresentada mais nos seus resultados, em que cada ciclo se compôs de
miscelânea de esplendor, dor, delação e traição, quatro partes como as das
fases da lua ou das estações do ano, sugerindo repetições e contínuos
caminhares e aprendizagens, recomeços e passagens pelos mesmos itinerários.
Da
adolescência fica o aventureirismo bocagiano, o fascínio pela inconstância e
pela incontinência da contínua descoberta, inclusivo a de que a paisagem
configurada pelo Tejo e pelo Sado foi comum ao poeta de outrora e ao poeta de
agora. Mas também o retrato dos desejos e do pensar foi semelhante: as
deidades, a liberdade, a prisão… a corrida em decalque que fez dos dois poetas
companheiros, afinal.
Esta
reflexão leva a que sejam deixadas interrogações sobre a fortuna bocagiana e a
forma como a memória a tratou – “Como foi possível?” –, outros tantos pontos de
partida para que o poeta de hoje construa o compromisso com o conhecimento do
vate, com o respeito por essa memória, no fim de contas outra forma de impor o
respeito pela memória do seu próprio percurso, dois seres dotados de
singularidade e de sonhos – “obriguei-me a lutar publicamente pela tua memória”
e “espalhei por toda a parte o que outros escondiam” constituem versos de
verdades compromissivas, reflectidas num trabalho militante, de tal forma
comprometido que as palavras deste ícone da juventude do poeta foram “tão fácil
e profundamente” memorizadas que acabaram por condicionar os “insignificantes
versos pessoais” do poeta de agora. Diria Camões, ainda que num outro plano de
emoções, que se transformou o amador na coisa amada…
As
expressões de Bocage povoam, por isso, o final desta “carta” (e alimentarão
todos os poemas), confessando que tais palavras, o estro de Elmano,
constituíram código para preconização do futuro e denúncia de um presente, que
foi o percurso sofrido, revoltado e cívico do poeta. E o mestre acaba por ouvir
a genial confissão e fulgurante verdade: “percebes agora por que te desvendo
alguns poemas!”, justificando-se de imediato com a devoção que orientou o que
poderia ser um atrevimento: “Só queria fazer reviver a tua genial Poesia!”
Assim
Alexandre Castanheira justifica o seu encetar na peregrinação poética deste Nascemos para amar, título que, sendo na
primeira pessoa, pretende estabelecer, no uso do plural, um compromisso com a
vida, a ser assumido por cada leitor, por cada poeta, numa mensagem forte e
incondicionalmente resignada à fraternidade e a um destino que deve ser comum.
O título é, de resto, o eco da questão lavrada no final do livro, quando ao
leitor nada mais resta do que um desafio, enformado numa visão existencialista:
“Que fazemos no mundo?” E a solução parece ser, afinal, a verdade crucial que
veste o título, pois que, entre os dois poetas, correu o sentimento da
fraternidade, mesmo que apenas demandada – “Ambos amamos a liberdade e
lamentamos / a louca, cega, iludida Humanidade sem amor”.
Os
poemas que dão corpo à carta, uma espécie de autobiografia, são fortemente
caucionados por Manuel Maria, quer porque cada uma das duas partes toma para
título versos bocagianos – “Reconheço que há vontade e não destino” e
“Ludibrio, como tu, da sorte dura”, um e outro a deixarem a tónica sobre a
vontade, sobre o ser que se confronta com o mundo –, quer porque quase todos
eles são eivados de expressões ou versos do mesmo patrono, devidamente
assinalados. E a reconstituição do percurso avança sobre mapas que se desdobram
nos avanços e recuos, na esperança e no desespero, com momentos de afinco que
se alicerçam no(s) rio(s), sejam eles pátrios e próximos ou “aristocráticos” e
substituintes, símbolos de rotas e de esperanças. Os poemas cartografam a
procura da liberdade, a luta contra a distância, a busca da conformidade do
pensamento com a vida, até uma promissora manhã primaveril, “dia imortal” e
libertador, num percurso de onde não estão ausentes os registos da preocupação
cívica ou da voz que se levanta contra os despotismos, sejam eles ferrolhos das
ideias, dos poderes, do amor.
Não
tendo ficado tudo dito nos poemas que tecem o corpo desta carta, há lugar para
um “Post scriptum”, poema que reavalia os tempos, as similitudes dos percursos,
que assume o tom autobiográfico – “Aqui termino, caro Bocage, a invenção / de
fragmentos de uma vida, totalmente adição / de mil vidas sofridas que vi a meu
lado / e de outras tantas que a mim chegaram / relatadas a medo como se fossem
imaginadas.” O poema reconstitui a vida, escreve-a, quase a esteando, buscando
a reconstrução e alimentando a memória, levando-a aos leitores por um gesto de
partilha, não para impor uma ou outra versão do que a vida é ou foi, antes para
que o poeta se reveja numa unidade possível, mesmo que ela nos ocorra através
do espelho de Bocage. É esta reconstrução do monumento da vida que Alexandre
Castanheira nos propõe em Nascemos para
amar.
[Prefácio à obra Nascemos para amar, de Alexandre Castanheira,
apresentada em 1 de Março no Laranjeiro e,
em 2 de Março, em Setúbal, na Biblioteca Municipal]
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