quarta-feira, 30 de maio de 2012

Urbano Tavares Rodrigues homenageado

No final da tarde de hoje, houve uma homenagem a Urbano Tavares Rodrigues promovida pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Não estive lá, mas, ao saber a notícia, lembrei-me do professor e recordei uma homenagem que, em Setúbal, lhe foi feita na livraria Culsete, em Janeiro de 2003. O Manuel Medeiros fez questão que eu testemunhasse sobre Urbano Tavares Rodrigues, uma vez que tinha sido seu aluno. E fi-lo com muito gosto. É uma versão abreviada do meu testemunho lido nessa altura que aqui apresento. Em jeito de participação na homenagem que em Lisboa hoje lhe foi prestada.


Não sei de quando vem o meu contacto com Urbano Tavares Rodrigues, mas sei que vem de muito longe, desde quando ainda nem pensava que viria a licenciar-me em Letras, muito menos imaginando que o iria ter como professor. Também não sei qual foi o primeiro livro que dele li – talvez A Noite Roxa, que me lembro de me ter sido emprestado por um amigo e que, mais tarde, adquiri para nele reler uma interessantíssima narrativa como “Escombros”, quase retrato de uma geração, e para nele fazer uns sublinhados que me tinham impressionado nessa leitura sobre a vida e a arte... Talvez o primeiro livro que li de Urbano não tenha sido este, mas tenha sido uma recolha literária sobre Estremadura, nessa quase indispensável colecção que é a “Antologia da Terra Portuguesa”, testemunho da indispensabilidade que a literatura se torna para dizer a terra, para dizer o homem, antologia, aliás, onde creio que tive um dos primeiros contactos com Sebastião da Gama, que topou e mostrou a alma arrábida em toda a sua maravilha... Ou talvez a minha primeira leitura de Urbano Tavares Rodrigues tenha sido outra. Recordo, no entanto, estas duas como as mais antigas que dele conheço.
Em 1979, entrei para uma licenciatura na Faculdade de Letras, ingresso já tardio porque me era necessário trabalhar, mas atempado porque pôde ser no curso que queria e na Faculdade que me ficava mais à mão, em horário cumprido depois das 17 horas. Lembro-me de várias pessoas que tive como professores e pelas quais senti uma admiração grande desde logo.
Uma das coisas que me fascinou na minha licenciatura foi o facto de ter conhecido escritores enquanto professores, podendo assim usufruir da sua experiência enquanto artistas e criadores e do seu estatuto enquanto professores, intelectuais e cidadãos intervenientes, que eram vários. O professor Urbano Tavares Rodrigues não fugiu a este quadro. E, se foi apaixonante a forma como nos fez ouvir a solidariedade e o social presentes em Germinal, se foi suave a maneira como nos fez entrar nos domínios do erotismo de La Motocyclette, se foi a tocar o fascínio que nos falou de uma obra como Le Ravissement de Lol V. Stein, certo é que todos estes predicados se construíram como metáforas dele próprio, isto é, a delicadeza do discurso, a singeleza das práticas, a simpatia da disponibilidade, o aprofundar permanente no cruzamento da literatura estudada com as múltiplas e incansáveis referências advindas da sua experiência de escritor, o sorriso disponível numa atitude de quem parecia tudo oferecer fazendo passar o universo literário numa relação constante de tu-cá-tu-lá para um degrau de contínua admiração pela arte... enfim, tudo isto nos foi transmitindo, tudo isto foi partilhando, porque o todo das suas aulas se nos afigurava também como uma partilha de reflexões e de angústias da estética e do sentir.
A permanente abertura do professor Urbano Tavares Rodrigues nunca lhe deixou escorregar um “não”. Recordo que, mesmo perante trabalhos ou observações de qualidade menos desejada, a sua atitude era de tentar dar a volta de forma subtil, não negando a pouca pertinência do resultado (ou, muitas vezes, a sua impertinência) e incluindo no seu comentário as pistas de orientação que o estudante deveria aproveitar ou explorar.
Habituei-me, assim, a olhar o professor Urbano Tavares Rodrigues como uma personagem dedicada, disponível e atenta, como uma personagem participante (frequentemente trocando opinião connosco sobre posições públicas a propósito de questões culturais e de ensino), como alguém sempre pronto a incentivar os voos de quem quisesse ir mais longe ou de quem precisasse da sua ajuda. Recordo que, no último ano da licenciatura, estudei a autobiografia em José Gomes Ferreira, a propósito do seu livro A Memória das Palavras, para a cadeira de Teoria da Literatura, leccionada por Lucília Gonçalves Pires. Ser-me-ia útil falar com Gomes Ferreira, mas ele estava a passar um mau momento de saúde, pela sua debilidade de 80 anos. Foi, aliás, o professor Urbano que me pôs ao corrente do estado de saúde de Gomes Ferreira, mas, logo que soube das suas melhoras temporárias, falou-lhe e pôs-nos em contacto, assim me tendo sido proporcionado um encontro de cerca de três horas com esse “poeta militante”, na sua casa da rua Rio de Janeiro, em que quase me limitei a ouvi-lo e em que grande parte da sua conversa não foi sobre poesia, mas foi poesia. Passadas cerca de duas semanas, o professor Urbano encontrou-me na Faculdade, perguntou-me pelo andamento do trabalho, tendo-lhe eu dito que o mesmo já tinha sido apresentado e avaliado. Quis vê-lo, porque, argumentou, “acho que tenho alguma responsabilidade nesse trabalho”. Dei-lhe uma cópia e, volvidos uns dias, propôs-me que o texto fosse publicado no “Suplemento Cultural” do Diário. Respondi que sim, meio sem jeito. Soube depois que era sua prática corrente incentivar os alunos à publicação de trabalhos e mesmo à edição.
Concluída a licenciatura, abandonei também o trabalho que tinha e passei para o ensino. Em 1985, estando em Beja – onde confesso que aprendi a gostar do Alentejo –, ao rebuscar numas prateleiras já esquecidas e poeirentas de uma livraria da cidade, encontrei um livro sobre Urbano Tavares Rodrigues, intitulado Escritor da Fraternidade, da autoria de Pires Campaniço. Já não contactava o professor havia cerca de dois anos, depois que saíra da Faculdade. Comprei o exemplar por uma bagatela e li as suas 130 páginas – fortemente ideologizadas – nesse mesmo dia, mais no sentido de ter um ponto de contacto com alguém que me impressionara fortemente. O livro lembrou-me o professor, sobretudo, e pareceu-me que o título escolhido, ao eleger a fraternidade para caracterizar o escritor, tinha acertado no ponto. Fraternidade, como quem diz solidariedade, como quem afirma disponibilidade... são lógicas de atributos que resultam bem se aplicados a Urbano Tavares Rodrigues.
Fui, entretanto, descobrindo também a sua faceta de ensaísta na área da literatura e de escritor de viagens, sempre encostando as obras abordadas a referentes culturais importantes ou as viagens a itinerários não menos sentidos (talvez sentimentais), como descobri num relato seu sobre Santiago de Compostela, publicado em 1949, verdadeira peregrinação no espaço e no eu, na busca de outras artes e do conhecimento do mundo.
Encontrámo-nos depois em diversas situações mais ligadas à literatura (por exemplo, na sua defesa da tese de doutoramento sobre Teixeira-Gomes, ou na apresentação de Violeta e a Noite aqui neste mesmo espaço da Culsete), sempre relembrando tempos da vida de estudante.
E o que nos tem unido? Para lá de tudo, o professor Urbano Tavares Rodrigues sempre me falou, de imediato, do tempo da Faculdade e da lembrança das suas aulas. Ao fim e ao cabo, um tempo marcante, de aprendizagem e também de conhecimento, lados ambos de uma mesma estrada. Mantenho o gosto por Urbano Tavares Rodrigues enquanto escritor múltiplo e multifacetado, mas quero preservar também esta recordação feliz de um Urbano Tavares Rodrigues professor e mestre, dedicado, sabedor, atento, delicado e prestável, fazendo da literatura uma forma de criação e do ensino uma via de reflexão... ou talvez, e sobretudo, conjugando os dois percursos no rumo da disponibilidade para uma vivência de transformar a arte em cidadania. Não resisto sem ler quatro linhas de um seu escrito de cunho autobiográfico, publicado sob o título de “Apontamentos e Confissões”, no livro de ensaios sobre O Tema da Morte: “Já na minha adolescência desejava ser escritor, embora outras profissões me seduzissem, tais a de médico e a de professor: no fundo, aquelas que me permitissem ancorar e sentir-me útil.” É uma justificação simples, claro. Mas testemunho que, na sua simplicidade, a senti. E vivo bem com essa lembrança e exemplo.

N'«O Setubalense» de hoje - José Luís Neto e a identidade pela arqueologia


«Depois desta provocação, comecemos então a discussão». Assim se conclui a obra Túbal te fez – Arqueologia, património e cultura periférica, de José Luís Neto, recentemente aparecida (Setúbal: Prima Folia, 2012), que, ao longo de uma introdução e de uma dúzia de capítulos, se passeia por questões da identidade sadina, num percurso que decorre entre 1721, registo de nascimento da Academia Problemática e Obscura de Setúbal, e 2007, data do aparecimento da Prima Folia.
O contributo para esta identidade ressalta do mundo da arqueologia, área e saber problematizado que ajuda a questionar verdades que foram deixando de o ser ao longo do tempo porque também na arqueologia há correntes, caminhos, modas.
José Luís Neto não esconde na nota introdutória a sobrevalorização da perspectiva arqueológica que dominará o livro, seja porque confessa analisar os arqueólogos que foram descobrindo Setúbal (e a sua obra), seja porque decide criar uma teia em que a arqueologia se emaranha com os poderes e com os cidadãos, seja porque segue o princípio de que esta área de investigação concilia dois tempos – o passado sobre que se investiga e o presente sob que se analisa.
Da junção de tais ingredientes ou princípios, só pode sair uma leitura airosa e arejada sobre o que em Setúbal tem feito história, questionando métodos, confrontando limites, passando os movimentos à lupa, destacando as figuras que têm tentado descobrir a identidade setubalense, insistindo na inscrição, necessária para que haja memória.
O título da obra parte, aliás, de uma tentativa de interpretação das origens – Túbal, a personagem bíblica, associada à arca e ao dilúvio. Não é que José Luís Neto vá por aí, mas é a associação de vários saberes que não podem ser confrontados no sentido de uns anularem os outros, antes de todos se complementarem. E pelo caminho vem também a história de Cetóbriga, acentuada, de resto, com as escavações do século XIX. Duas interpretações que não colidem, antes são apresentadas como sinais dos tempos em que foram geradas como sinais de leitura explorados à saciedade.
Compreender o que tem sido a história desta terra sadina ajuda a explicar os fenómenos de sucesso temporário, bem como os tempos de insucesso que se lhes seguem, uma rotina que não é de agora, que não é recente, que já polvilha as margens do Sado desde que é possível fazer história, aí se mesclando indústria, comércio, religião, política, internacionalizações, auges e declínios, algo que ajuda a compreender ainda a miscigenação de populações que têm construído Setúbal desde sempre, não faltando símbolos, sejam eles vultos da cultura local (Todi e Bocage são incontornáveis) ou marcas deixadas na pedra e no património construído (igualmente imprescindível é o Convento de Jesus, além de outros sítios como a Fonte Nova, a Anunciada, Fontainhas, entre outros).
Esta leitura é um passeio pelas formas de problematizar e fazer a história, algo que José Luís Neto só claramente diz quase no final, assumindo reflectir «sobre a história da arqueologia sadina», sobre «conceitos como o da identidade local», embora andando na companhia de nomes importantes na área da colecção de saberes ou da descoberta, como sejam os de Almeida Carvalho, Arronches Junqueiro, Marques da Costa, Tavares da Silva e muitos outros.
Túbal te fez é um contributo importante para se ler a história de Setúbal, obra a ser vista para que haja entendimento, não tanto certezas mas ligações das histórias em que Setúbal navega àquelas que fazem mover o mundo, apesar de uma apresentação gráfica que necessitaria de mais cuidado, de uma capa que pode induzir em leituras pouco consentâneas com a riqueza de pensamento que por esta centena de páginas se nos dá e de algumas informações que carecem de correcção ou, pelo menos, de explicação (o Centro de Estudos Bocageanos, CEB, não nasceu do MAEDS, Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, como é dado a entender, antes promoveu algumas das suas actividades no espaço daquele Museu; a LASA, Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, não pode ter nascido do Museu de Setúbal, como é dito, uma vez que a LASA foi criada em 1955 e o Museu de Setúbal foi instituído em 1961).

Os mega-agrupamentos, essa ideia peregrina...


É duro, mas é verdade… 

terça-feira, 29 de maio de 2012

Memórias de António Manuel Couto Viana em conversa com Ricardo de Saavedra



António Manuel Couto Viana (1923-2010), nome para sempre ligado à poesia portuguesa e ao teatro, foi exímio memorialista dos outros, servindo-se de uma prodigiosa memória para contar sobre poetas e autores, lidos e conhecidos, sobre épocas e personagens que no seu caminho se cruzaram. Pena seria que a sua vida extremamente preenchida não desse origem a um volume de memórias, contando o seu trajecto sempre diversificado, absolutamente dominado por uma dinâmica que nunca lhe permitiu a paragem na escrita, tendo mesmo, na fase final da sua vida (a partir de 2004), encetado o caminho do conto. É assim de saudar o aparecimento da obra assinada por Ricardo de Saavedra, intitulada António Manuel Couto Viana – Memorial do coração (Conversa a quatro mãos), recentemente editada (Lisboa: Quetzal Editores, 2012).
O título informa-nos sobre a organização da obra: é, com efeito, uma entrevista, uma longa entrevista, edificada sobre onze capítulos e cerca de cinco centenas de páginas, resultante de um tempo de conversas de aproximadamente cinco anos (desde Março de 2005), tendo o entrevistado ainda tido a oportunidade de conhecer grande parte da versão escrita.
O que impressiona neste texto é a fidelidade de Ricardo de Saavedra ao tom de conversa de Couto Viana, quase sendo dada a possibilidade ao leitor de “assistir” a este diálogo entre os dois, viajando na memória, por vezes alterando a ordem cronológica, sempre contando histórias da vida ou a propósito dos momentos por que vai passando a revisitação. Bem marcante é o poder descritivo e a ordem narrativa de Couto Viana, conversador e nato contador de histórias, nunca deixando que a sua história ande apenas em redor de si, antes mostrando a sua vida na relação com os outros, na dedicação às artes – da literatura e da representação – e aos prazeres – gastronomia, leitura, viagens – e na luta pela sua independência e pelo seu caminho.
O nível de linguagem é sempre elevado, culto, com observações de uma nobreza de sentimentos e de saberes que impressionam, não só pela forma airosa como todo o seu trajecto é partilhado, como pela meticulosidade posta numa memória que deve ser um contributo para a história. São de ternura evidente as palavras que deixa sobre a sua “cidadezinha”, Viana do Castelo, e sobre o ambiente e experiências ali vividas, ponto de eterno retorno que sempre o chamou; são de realização assumida as entradas pela memória da sua vida dedicada ao teatro, enquanto actor, empresário, autor, cenógrafo, criador de companhias, num périplo que passa pelo Teatro-Estúdio do Salitre, Teatro da Mocidade, Teatro da Campanha Nacional de Educação de Adultos, Teatro do Gerifalto, Oficina de Teatro da Universidade de Coimbra, Grupo Português de Teatro (de Macau), entre outros, percebendo-se que a história do teatro português da segunda metade do século XX não estará completa se o nome de Couto Viana for omitido; são quase fílmicas as lembranças da chegada a Lisboa (em 1946) e os contactos com os escritores que sempre lera e de quem se ia tornando amigo ou com aqueles que, tal como ele, se iniciavam na aventura literária, atingindo especial elevação as referências àqueles que foram amigos de sempre, como David Mourão-Ferreira ou Fernando de Paços, por exemplo; é contributo para a história literária o seu esmiuçar pelas revistas e publicações em que participou ou a associação que faz de muitos momentos da vida a outros tantos instantes de poesia; é prestação para a história do teatro a dinamização a que procedeu no âmbito do teatro infantil, na “descoberta” de actores, no gesto de levar o teatro aos mais diversos recantos do país; é retrato de desolação a lembrança dos momentos menos bons provocados por uma remissão para o esquecimento a partir de 1974, com o consequente abandono por parte de muitos amigos, ou por um jogo de influências movido em Macau que lhe deixou feridas e desgosto, mesmo na apreciação destes casos não se vislumbrando linguagem menos nobre, antes exprimindo-se o lamento, ao mesmo tempo que a literatura se anuncia como contínua tábua de salvação.
António Manuel Couto Viana diz-se na alegria do reencontro com a sua obra, longa viagem que também o transportou ao oriente de Camões, deixando-se o leitor levar por um guia que entra na China e noutras orientais paisagens, vivamente descritas, quase se estando mais perante uma recriação literária do que na presença de algo que se diz de memória, de tal forma a riqueza das cores, das sensações, das emoções pulsa por estas páginas de reconstituição de uma vida, o mesmo se podendo dizer a propósito do pormenor na narração e na descrição do encontro com Savimbi na Jamba. O próprio entrevistador tem momentos em que interrompe a conversa para, apreciativamente, elogiar a memória do entrevistado, registo que se destinará também ao leitor, desta forma desperto – ou lembrado – quanto à realidade deste livro, que não é uma ficção, antes o retrato de uma vida.
Preocupações máximas de Couto Viana são a sua obra, os seus amigos e os seus lugares. Da obra vai falando enquanto mostra o regulador que ela foi da sua vida, com o verso sempre a renovar-se e o lirismo continuamente no seu caminho; dos amigos tem a preocupação de registar os nomes e os traços, às vezes em escassas referências, mas sempre querendo inscrevê-los no seu percurso e por vezes pedindo antecipadamente desculpa de qualquer omissão; os espaços, vai-os revisitando, com uma ternura particular sobre Viana do Castelo, berço da vida e da obra sobre o qual diz: “Viana influencia toda a minha obra! A infância marca, para sempre, a vida de um poeta e a minha foi toda passada em Viana, que continua a ser uma cidade sedutora. A timidez aguçou-me o sentido de observação e toda a minha meninice e juventude foi plena de motivos de interesse, rica de momentos inesquecíveis, vivida num ambiente familiar que muito contribuiu para estimular o meu crescente gosto pelas artes. Muitos dos meus escritos narram tudo isto, decorrem deste acumular de sensações e sentimentos, com raiz nos tempos em que cresci em Viana. E a raiz nasce no coração.”
O final do ciclo de conversas coincide com o termo da vida de Couto Viana, cujas últimas palavras para o entrevistador constituem um pedido para que o livro não esmoreça, para que o livro exista, para que a memória perdure. Um derradeiro capítulo mostra o sentimento de perda de um amigo que se tornará presente pela sua obra, extensa obra, de poeta, que António Manuel Couto Viana se chamava, nome que constitui “um decassílabo perfeito”, como Ricardo de Saavedra faz questão de lembrar logo na primeira frase do volume.
O leitor encontra ainda quarenta páginas, em dois cadernos, a constituírem um álbum fotográfico, disperso por geografias, por tempos e por amizades. E, no final, uma exaustiva lista de bibliografia activa ordenada por modos de escrita e por assuntos (poesia, teatro, contos, ensaios, memórias, gastronomia, traduções e adaptações, antologias, prefácios e apresentações), uma circunstanciada resenha da teatrologia e um índice onomástico (a que ainda poderia ter sido acrescentado um índice de títulos). A fechar, na lista dos “agradecimentos”, Ricardo de Saavedra relembra a construção do livro – desde a primeira reunião dos dois já velhos amigos, em 18 de Março de 2005, com a intenção de se contar esta vida, foi sendo construído “um livro nascido de conversas, registos avulsos e papéis dispersos, que cresce[u] ao sabor dos temas sem cuidar de cronologias, confiado quase exclusivamente na memória elefantina do interlocutor.”
Umas boas memórias de António Manuel Couto Viana. Num memorial também do coração!

Para a agenda: Os 50 anos da Crise Académica de 1962 em Setúbal, na Culsete

Mais um evento Culsete para sábado, 2 de Junho, pelas 16h30. O cinquentenário da Crise Académica de 1962 vem a Setúbal pela voz e pelo testemunho de José Medeiros Ferreira e com as participações de Onésimo Teotónio Almeida e de Mário Mesquita. E com livros, que são registos de memória.
Serve de convite.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Máximas em mínimas (86) - Luiz Milhafre

Teias & organizações
“Quem nos salva dos homens, alguém me pode explicar? expliquem-me, quem nos salva de partidos e afins fundados por homens que escolhem outros homens por voto, a seguir vêm outros homens que votam neles, depois homens e homens e homens que votam nesses que já vêm votados, são esses mais tarde que fazem resoluções, leis, decretos-lei ou nem tanto, portarias e porcarias complicadas, que espanto, que admiração, há então os homens que julgam que sabem isso tudo, os que sabem isso tudo mas não dizem, outros que julgam os que julgam que sabem e os que sabem.”
(Luiz Milhafre. "Bus". Novos Talentos FNAC Literatura 2011. Lisboa: FNAC / Teodolito, 2011)

domingo, 27 de maio de 2012

Da presença de Urbano Bettencourt em Setúbal hoje



A livraria sadina Culsete brindou o seu público de hoje com uma excelente sessão a propósito do livro África frente e verso do escritor português e açoriano Urbano Bettencourt (Letras Lavadas, 2012).
Foi bom estar presente numa sessão como esta, onde se pôde ver e ouvir pessoas e manifestações tão interessantes como: o actor Fernando Guerreiro e a sua leitura emocionada; o actor José Nobre e a excelência da sua leitura dramatizada; o livreiro Manuel Medeiros e a sua comoção literária, açoriana e amiga; o muito bom texto de apresentação sobre o livro em discussão lido pela Fátima Medeiros; o bom dizer da açorianidade conjugado com a literatura portuguesa na voz de Olegário Paz; a simplicidade e espontaneidade certeira e madura na apreciação de Eduíno de Jesus; a singeleza e a força literária de Urbano Bettencourt; a presença da palavra escrita e genuína de Onésimo Teotónio Almeida, fisicamente ausente mas a sobrevoar com a sua argúcia e o seu humor no que à literatura e à vida diz respeito.
Muito bom ambiente, muito boa literatura, muito bom serviço à causa e ao fascínio literário foi este que o Manuel e a Fátima Medeiros prestaram através da Culsete!
E quanto a Urbano Bettencourt não há dúvidas de que se está perante um muito bom escritor, com excelente trabalho sobre o equilíbrio da palavra, a merecer destaque e reconhecimento indispensável a nível nacional. O livro apresentado é uma boa prova disso, sobretudo agora que passam quatro décadas sobre o início do percurso de escrita do autor, detentor de assinalável bibliografia, iniciada em Setúbal, na primavera de 1972, com Raiz de mágoa.
[na foto: Fátima Medeiros, Fernando Guerreiro, Urbano Bettencourt, Olegário Paz e José Nobre.]

Depois do prémio que Horácio deu...


Há poucas horas, a TVI apresentou curta reportagem a propósito do aluno português, António Gil, estudante na Escola Secundária Rodrigues de Freitas, que, em Itália, ganhou o concurso internacional “Certamen Horatianum”, que ocorreu em Venosa, terra natal do poeta Horácio. Interessante a sensibilidade e a humildade do jovem vencedor! Interessante a forma como ele, na reportagem, transformou o latim em língua falada, saudando e apresentando-se aos telespectadores! Jovem a felicitar, sem dúvida, sobretudo num país que se encarregou de abandonar o estudo do latim e de dar ao estudo das humanidades o pouco interesse que neste momento existe.
Justamente por estas razões é que fiquei triste com o desabafo do jovem no final da conversa: já tinha recebido felicitações de muita gente, mas do Ministério da Educação… não! Que dizer? Haverá provavelmente boas razões para que tal (não) tenha acontecido, mas aposto que se o latim se escrevesse com os pezinhos, se desse golos e tivesse gente da que aparece todos os dias a dizer coisas por vezes certas e por vezes duvidosas, se aprender latim fosse um jogo (fosse do que fosse)… não faltariam parabenizações e longas entrevistas e reportagens a propósito. Como terá registado Horácio, o patrono do concurso: “Quem não souber viver com pouco será sempre um escravo”. Ou, melhor ainda: “Nada é feliz sob todos os aspectos.”
Parabéns ao António Gil! E aos seus professores também!

sábado, 26 de maio de 2012

Rostos (175) - Urbano Bettencourt


Urbano Bettencourt, no "Passeio dos Poetas", em Praia da Vitória (Terceira, Açores), por Ramiro Botelho

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Para a agenda: Urbano Bettencourt em Setúbal


Na Culsete, em Setúbal, Urbano Bettencourt vem apresentar África frente e verso. É em 27 de Maio, domingo, pelas 16h00. Associe-se o feito dos 40 anos de escrita literária do poeta, que foram iniciados em Setúbal com a obra Raiz de mágoa (Setúbal: ed. Autor, 1972). Os actores Fernando Guerreiro e José Nobre vão ler textos.
É um convite...

Para a agenda: Os "Grandes músicos" de António Laertes


Mais uma realização Synapsis. Desta vez sobre música. Por António Laertes. No Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, em 25 de Maio, sexta, pelas 21h30. Serve de convite...

terça-feira, 22 de maio de 2012

Máximas em mínimas (85) - Filipa Leal

Crescer - "Crescer [é] assim: deixar de caber no vocabulário das mães, no vocabulário da água. (...) Crescer [é] o silêncio do quarto da infância, mas já tão longe dos irmãos."
Mentir - "É na descoberta da fala que o princípio da mentira se inaugura. A descoberta da fala iniciou o grande distanciamento do homem, esta ordenada diplomacia. Ou não fosse a palavra o artifício que nos permite expressar exactamente o contrário do que pensamos."
Poesia - "A poesia, como o pensamento que não se partilha,  é a única que não mente, que não se distrai nessa diplomacia tonta, nessa vontade de frases. A poesia não mente porque não promete dizer a verdade, porque é rigorosamente impartilhável."
Filipa Leal. "Isabel". O prazer da leitura (5). Lisboa: FNAC / Teodolito, 2012

domingo, 20 de maio de 2012

José-António Chocolate: «Todos os afectos»


Quando completou 50 anos de vida literária, Aquilino Ribeiro discursou para os amigos reflectindo a partir de uma pergunta: afinal, quem lhe tinha encomendado o sermão, ou, por outras palavras, o que o levara a trilhar um caminho semeando palavras em vez de fazer outras coisas que lhe dariam igualmente prazer? E a justificação era apenas uma: o apelo das palavras, do dizer, qual sina que se lhe impusera.
José-António Chocolate perfaz agora os 30 anos sobre a sua actividade poética e brinda os amigos com uma antologia de afectos que sobrevoa sete livros (Todos os afectos. Setúbal: Estuário, 2012). E cabe-nos perguntar: antologiar-se porquê? Não são muitos os poetas que se antologiam, mas, chegados a este ponto, pretendem buscar os arquétipos da poesia que os enformou, talvez reescrever os fundamentos e os pretextos da sua própria arte poética, talvez apurar o essencial do essencial porque a palavra poética tem esse poder de síntese e de afirmação universal, forma suprema de dizer através do canto. Mas o poeta antologia-se porque se escolhe a si próprio, seleccionando o melhor, o mais dizível, o mais forte da mensagem, numa quase exposição das tábuas da poesia, numa quase chieira do que foi o seu percurso.
Conheci o José-António Chocolate devido à poesia. Não sei quando foi, mas foi há tempo bastante, porque me lembro do nome dele em antologias e só depois em livro. Dessa poesia lida passámos depois para a poesia falada e encontrámo-nos em vários momentos para apreciar poesia. E tem sido curioso que os dizeres de José-António Chocolate se refugiem na riqueza da construção literária, com apreciações aos momentos e à vida que ressaltam de imagens poéticas, do burilar as palavras.
Se assim tem sido na vida, mais intenso tem sido na escrita. Repare-se, de resto, no poema “Essencial a poesia”, com que nos presenteia no grupo de inéditos que integra esta antologia. A sequência do poema é lógica e circular. No início: “O poeta renova-se na construção do verso.” No terceto final: “É essencial que a poesia transfusa tome / lugar no corpo do poeta, / seja criadora e seja sua criação.” Os caminhos que esta quase arte poética percorre aproximam os sentidos daquilo que é um permanente dar forma, seja por acção da terra viva, seja por intervenção da humana mão. O poeta assemelha-se ao artífice que pode estar nas formas que o oleiro constrói, na “linha que se entrelaça no bailado da agulha” ou na terra que faz germinar depois de esventrada. São imagens de criação estas, associadas ao trabalho e ao tempo, ao amor à arte e aos segredos da Natureza que ecoam no homem, que o poeta edificam.
Lê-se este poema e fica-se sem saber quem primeiro nasceu: se o poeta se o poema. Mas este texto, edificado sobre apenas duas estrofes, lança-nos naquilo que é o essencial da poesia de José-António Chocolate: o dizer da felicidade, muito mais do que a felicidade do dizer. Este poeta canta o amor, divaga pelo prazer, baloiça entre os sentidos, afirma o “eu” e a peculiaridade da sua visão do mundo, olha a humana condição, mede-se com o tempo, preocupa-se com a morte, pinta o gosto e o sabor da vida, integra a paisagem. Sempre numa situação de natural equilíbrio, em que a liberdade de ser se completa com a liberdade de criar, com a demanda da palavra mais certa, mais laboriosamente escolhida para valorizar o dizer.
E, a propósito deste dizer, não pode passar ao lado o Alentejo, molde certeiro e cadinho em que o poeta se amalgamou, dando oportunidades a poemas que poderiam – deveriam – integrar qualquer antologia que sobre o Alentejo se faça. Profundo respeito pelas origens, mais profundo reconhecimento pelas teias que entretecem o poeta, que assinala raízes, sublinhando figuras tão importantes como a avó ou a neta, uma e outra motivos de poema, com afectos materializados na palavra.
Poesia feliz é esta em que José-António Chocolate se antologia. Para tal concluirmos, bastaria um poema como “Apontamento”, que toma para motivo algo aparentemente insignificante: dois riscos, sobre a toalha, ao canto da mesa. E a operação poética constrói-se a partir daí pela decifração do desenho possível – o lavrar de um arado, num revolver de terra, os gumes a sulcarem uma vida. E a suma revelação – com este desbravar, confessa o poeta: “sangra o corpo / e canta-me a alma / o tempo vivido.” Outra forma de justificar a poesia. Outra maneira de a poesia se afirmar como torno em que o barro é a vida e a palavra e o oleiro é o poeta.
Trinta anos de palavras que se cantam e que reconstroem o quadro do poema maior, aquele que surge da oficina feliz, aquele em que a linha se “entrelaça no bailado da agulha”.
E, para voltar ao início, porque uma antologia é também o círculo necessário… todos percebemos a razão pela qual Aquilino Ribeiro disse que esta necessidade de semear palavras era uma sina… Os 30 anos atestam-no e Todos os afectos também. Sigam esta sina, pois!
[Lido na apresentação pública da obra, em 19 de Maio, ocorrida em Setúbal, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal]

quarta-feira, 16 de maio de 2012

N'«O Setubalense» de hoje - Pelo feriado de 1 de Dezembro


A crónica de opinião publicada na edição d'O Setubalense de hoje, sob o título "Pelo feriado de 1 de Dezembro - Ribeiro e Castro e a afirmação da independência", pode ser lida aqui ou aqui.

Miguel de Castro - Três anos hoje

Passam hoje 3 anos sobre a morte de Miguel de Castro. A sua poesia mantém-se viva, como se quer que a poesia seja. Há poucos dias, em 27 de Abril, a Associação Cultural Sebastião da Gama promoveu, em Azeitão, uma sessão de poesia, pondo em diálogo poemas de Sebastião da Gama e de Miguel de Castro através da voz do actor Carlos Rodrigues (Manuel Bola), com histórias dos dois poetas pelo meio, evidenciando a qualidade da obra de ambos e o relacionamento que os chamou à poesia.
O resultado foi espantoso, com muita gente a querer conhecer mais de Miguel de Castro e das teias que o levaram a conviver com Sebastião da Gama, que eram apenas - ou sobretudo - poéticas!
Vale a pena dar um salto até aqui, onde uma curta antologia de Miguel de Castro brindou os leitores de hoje! A fotografia foi emprestada pelo "Chapéu e Bengala".

Para a agenda: Dia Internacional dos Museus, em Setúbal

O Dia Internacional dos Museus tem amplo catálogo em Setúbal, aqui se mostrando a programação dos Museus Municipais (Museu do Trabalho, Museu Sebastião da Gama, Museu de Setúbal e Casa Bocage) e do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal.



terça-feira, 15 de maio de 2012

Vasco Graça Moura apresenta "Os Lusíadas" a "gente nova"


Imaginemos a explicação da estrutura externa do poema épico de Camões apresentada da seguinte forma: “Para o fazer, Camões usou a oitava / Que é feita de oito versos a rimar. / Até ao sexto as rimas alternava, / Nos dois finais a rima vai a par. / Com oitavas assim, organizava / Essa história que tinha de contar / Em cantos que são dez e a nós, ao lê-los, / Espanta como pôde ele escrevê-los.” Fácil é ver que essa estrutura é explicada numa oitava, com versos decassílabos, seguindo o esquema rimático que nela explicado – os seis versos em rima alternada e os dois últimos em rima emparelhada. Mais acrescenta que a obra se apresenta em dez cantos, associando o espanto perante tal maravilha artística, operação estética de engenharia da palavra.
Quem apresenta Os Lusíadas desta maneira não pode ser poeta menor, sobretudo se se souber que, em centena e meia de páginas, ao longo de 383 estâncias, numa estrutura que compreende dez cantos e uma introdução, aquilo com que o leitor se confronta é com uma apresentação adaptada da epopeia camoniana. Seu autor é Vasco Graça Moura e a obra intitula-se ‘Os Lusíadas’ para gente nova (Lisboa: Gradiva, 2012).
Mais uma adaptação do épico? Sim, mais uma adaptação do épico, sem dúvida. Mas uma adaptação diferente, que dialoga com o poema camoniano permanentemente, que não esconde a voz do poeta renascentista nem se lhe sobrepõe, que não a distorce num exagero de simplificação, que não lhe retira nem belisca o ritmo em que o verso se embala, uma edição a pensar na “gente nova”, seja o destinatário definido pelo escalão etário ou por uma outra predisposição para embarcar na viagem a ver o que Camões dá.
Em nota introdutória, Vasco Graça Moura expõe as intenções, depois de dedicar o escrito aos netos: como motivação para este trabalho, “a confrangedora desvalorização dos clássicos”, “a impreparação de muitos professores”, a complexidade da “matéria verbal do poema”, a extensão da epopeia e uma certa “renitência enfadada” para com os autores portugueses; como trabalho sobre Camões, “a ideia de preparar ‘uns’ Lusíadas para os mais novos, reduzindo-lhes a extensão em cerca de dois terços, estruturando os episódios mais conhecidos em termos bastante simplificados, enfim procurando explicar, comentar, interpretar em termos muito acessíveis as passagens principais da epopeia, mas fazendo-o também em oitava rima de matriz camoniana, de modo a que os leitores mais novos, digamos entre os 12 e os 15 anos, possam ‘entrar’ mais fácil e amenamente na matéria do poema.”
Logo as primeiras dezoito estrofes, sob o título de “Sabemos muito pouco de Camões”, brotam como uma introdução ao poema e ao próprio poeta, abordando itens como a escassez biográfica de Camões e o destaque merecido pela sua obra, o conteúdo histórico do poema, o conceito de epopeia e de herói colectivo, a estrutura externa do poema, a apresentação das partes que constituem um poema épico, os planos narrativos, a contextualização histórica, a justificação do uso da mitologia, o contributo camoniano para o enriquecimento da língua portuguesa, as influências clássicas e o assunto que vai dominar o poema. Interessante é a aproximação feita aos tempos de hoje para se explicar o conceito de herói ou esse enlaçar entre os humanos e os deuses ou as ninfas – “Parece hoje uma banda desenhada / E afinal a gente não estranha / Que o Super-Homem voe, e nos agrada / O Senhor dos Anéis, o Homem-Aranha, / E tantos divertindo a criançada / Com repentina e mágica façanha, / Usando seus poderes sensacionais, / Batman, Harry Potter, muitos mais…” [Quando os meus alunos passearam nesta série das dezoito estrofes iniciais, o resultado foi interessante – afinal, em verso também se pode falar de coisas mais prosaicas, a linguagem é acessível, é preciso ser um grande artista para escrever isto! Palavras deles…]
Depois, o leitor entra nos cantos, oscilando esta adaptação entre versos e estrofes camonianos (impressos em itálico) e outros da lavra de Graça Moura, em redondo. Actualização e simplificação da linguagem, adequação da fraseologia, mas também explicação e remissões para outros saberes que associam a história e outras artes – repare-se na chamada de atenção para a descrição de Tritão, no canto sexto: “Notai como Camões logo o retrata / Juntando várias criaturas / Marinhas cujas formas ele engata, / Umas mais pegajosas, outras duras; / Arcimboldo, o pintor, andava à cata / Desse processo de pintar figuras, / E é nesse estilo que Camões desenha / Dando a Tritão uma aparência estranha.” Bastará ler a adaptação de Graça Moura, tomando palavras de Camões para a apresentação de Tritão nas estrofes que sucedem a esta ou, então, recorrer a Os Lusíadas (VI, 17-19) para se ver um retrato digno da pintura de Arcimboldo construído a partir da tela em que se oferecem as palavras de Camões!
Os versos de Graça Moura surgem frequentemente como a ponte para um acesso fácil à genialidade do épico – atente-se, por exemplo, nos sublinhados que surgem no final do episódio dos Doze de Inglaterra (onde até se recorre ao nascimento do futebol), afirmando-se que “Camões descreve a luta e dá-lhe cor, / E som, e movimento e um certo humor”, ou ao longo do episódio da tempestade, quando se diz que “São versos geniais: o movimento / Dos vagalhões e o rasgar das velas, / Os rugidos do mar, a chuva, o vento, / Os mastros a quebrar, mais as cautelas / Dos homens num esforço violento”; atente-se ainda no ambiente de sensualidade sugerido pelo episódio da Ilha dos Amores, convenientemente explicado como imaginado, onde as ninfas desfilam num jogo de atracções e de desnudamento, já que “Iam deixando então cair as suas / Roupagens pelo chão, aqui, ali, / E ao fazerem assim ficavam nuas / Ou quase, descuidando-se de si, / Maminhas a saltar duas a duas, / Belos rabinhos, bocas de rubi, / Cabelos de oiro, a pele como cetim / E grinaldas de rosas e jasmim.”
Da mesma forma que o início desta adaptação recorre às duas estrofes que abrem Os Lusíadas também os dois últimos versos desta adaptação são de Camões – “De sorte que Alexandre em vós se veja, / Sem à dita de Aquiles ter inveja.” Uma forma respeitosa de subordinar esta apresentação do épico à sua própria palavra, ao seu próprio dizer, dando-lhe a primazia na abertura e no encerramento do poema narrativo!
Mas o gesto de Vasco Graça Moura na admiração pelo pulsar da palavra camoniana vai mais longe ao ter escolhido este título para assinalar o seu 50º aniversário como autor (desde que, em 1963, publicou o volume de poesia Modo mudando), justa homenagem a um outro poeta, à obra maior da literatura portuguesa e à língua portuguesa. Se a adaptação d’Os Lusíadas feita por João de Barros nos anos 30 do século passado tem sido vista como a grande divulgadora da epopeia camoniana até hoje, não me custa admitir que este arranjo de Vasco Graça Moura alcance idêntico patamar, tal é o engenho com que foi concebido, tal é a sensibilidade que apresenta Camões como trunfo para o convívio com os leitores do século XXI!

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Para a agenda: "Estranhões e Bizarrocos" em 6 sessões do TAS


Estranhões e Bizarrocos e outros seres sem exemplo...
O imaginário infantil e os prodígios todos que cabem nos sonhos das crianças, reunidos em estórias para adormecer anjos. De uma imensa beleza poética, a força das palavras de José Eduardo Agualusa constitui o suporte ideal para objectivar a necessidade que sentimos de apresentar teatro para os mais novos. É pleno de conteúdo imagético, original do ponto de vista das ideias e bastante interessante para aprofundar e desenvolver. Foi o que fizemos, juntámos uma série de pessoas criativas e inventámos, com Jácome, um universo de coisas impossíveis: formigas mecânicas, pássaros a vapor, sapatos voadores, aparelhos de produzir espirros, estranhões e bizarrocos. Inutensílios muito importantes.
Através de experiências espontâneas, dadas por impulsos e tensões interiores, associadas à exteriorização de movimentos e gestos encarados como linguagem, criámos uma espécie partitura formada pelos vínculos que se estabelecem entre o texto verbal e gestual, compreendendo a narrativa e o movimento coreográfico. O resultado desta sistematização abriu as perspectivas da linguagem dramática propriamente dita, numa adaptação que conjuga a essência do acto teatral na forma e no conteúdo, uma feliz aproximação ao modelo de teatro que pretendemos fazer evoluir no tempo e que se manifestou adequado à realidade presente.
FICHA TÉCNICA:
ESTREIA: 01/03/2008 – AUTOR: José Eduardo Agualusa – ADAPTAÇÃO E ENCENAÇÃO: Miguel Assis – DIRECÇÃO DE PROJECTO: Célia David – ACTORES: Isabel Ganilho, Maria Simões, Sónia Martins e Susana Brito – COREOGRAFIA: Iolanda Rodrigues – ILUSTRAÇÕES E FIGURINOS: Zé Nova – CENOGRAFIA: Mia Lucas e Zé Nova – CONSTRUÇÃO CENOGRÁFICA E CONTRA-REGRA: João Carlos – DESIGN GRÁFICO: Filipe Blanquet – SONOPLASTIA: José Santos – LUMINOTECNIA: António Rosa – FOTOGRAFIA: Rita Monteiro – SECRETARIADO: Ângela Rosa – AGRADECIMENTOS: Carlos Prado, Elsa Cara Nova, José Teófilo Duarte e Mercedes Lança
Sessões em: 20 e 27 de Maio e 3, 10, 17 e 24 de Junho, no auditório Charlot, em Setúbal
[Informação fornecida pelo TAS (Teatro Animação Setúbal)]

domingo, 13 de maio de 2012

Para a agenda: "O cerco de Leninegrado", pelo Teatro Estúdio Fontenova


Sinopse: Este espectáculo é uma criação baseada no olhar, na acção e nas memórias de duas mulheres que vivem encerradas num velho teatro, lutando e nunca se rendendo, contra a sua demolição anunciada. “Teatro” como metáfora para tudo o que se desmorona e que tem o fim anunciado por imposições tecnocratas e economicistas.
Ficha técnica e artística: Texto: José Sanchis Sinisterra | Encenação, Dramaturgia e Desenho de Luz: José Maria Dias| Interpretação: Graziela Dias e Sara Costa Banda Sonora: Hugo Moreira | Design Gráfico: Maria Ramos | Fotografia: Pedro Soares | Direcção de Produção: Graziela Dias | Montagem e Assistência Técnica: Júlio Mendão.
Estreia: 17 de Maio. Em cena até 27 de Maio (quinta a sábado, às 21h30, e domingo, às 16h30), no Espaço Fontenova | Rua Dr. Sousa Gomes nº11 Setúbal.
[informações fornecidas pelo Teatro Estúdio Fontenova]

Pelo feriado de 1 de Dezembro - Ribeiro e Castro e a afirmação da independência


A questão dos feriados a suprimir, definitiva ou temporariamente, anda na berra. E talvez não pelas melhores razões. Já sabemos que a crise tem as costas largas e a “troika” idem. Assim como sabemos que muitas decisões são tomadas a partir de impressões que, depois, não voltam atrás… Foi o caso com os feriados.
Em primeiro lugar, é duvidoso que a história dos feriados a suprimir ou a suspender integre o que seja uma revisão do código laboral. Verdade lapaliciana é que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa!... Ou seja: uma coisa é decidir se há folga nos feriados ou não; outra coisa é decidir que dias podem conter o estatuto de feriados. Creio que isto é nítido… Assim o não entende a política portuguesa, que mistura tudo para baralhar, recorrendo às costas largas já mencionadas.
José Ribeiro e Castro, do CDS, tem-me impressionado pelas posições que toma em defesa da cultura. Fê-lo enquanto eurodeputado; tem-no feito como deputado. Foi corajoso o seu acto de se opor à revisão do código de trabalho por causa da misturada feita, assim como foi corajoso o seu gesto de, em discurso e em livro, vir encetar uma luta pela identidade, a reposição da verdade do feriado do 1º de Dezembro.
Quando a polémica estalou, discutia com amigos a oportunidade do corte da lista dos feriados do 1º de Dezembro, dizendo um amigo meu, da área da História, que achava muito bem tal corte, porque era um dos feriados criados pelo regime fascista, etc., etc., etc. Erro, claro! Foi o primeiro feriado republicano, criado uma semana depois da implantação da República, logo em Outubro de 1910. Mais: o respeito por tal data teve o seu primeiro manifesto de defesa em 1861, assinado por nomes tão insuspeitos como Alexandre Herculano, Anselmo José Braamcamp, António da Silva Túlio, Inocêncio Francisco da Silva, Luís Augusto Rebelo da Silva ou Pedro de Brito Aranha, num conjunto de quatro dezenas de subscritores.
Lê-se o livro de José Ribeiro e Castro (1 de Dezembro – Dia de Portugal. Cascais: Principia, 2012) e não podemos ficar indiferentes. É uma machadada que está a ser dada na identidade portuguesa ao suprimir-se o feriado de 1 de Dezembro, que pode ser considerada a data refundadora da independência portuguesa. Sem dúvidas, apesar de, tenuemente, os políticos virem a dizer que, dentro de não sei quantos anos, esses feriados podem vir a ser repostos! Ridículo! Apenas ridículo!
Num regime republicano como o nosso, estranho é que as duas datas ligadas à independência e à criação do regime republicano caminhem para a supressão de feriado! Falta de poder de inscrição, falta de memória, falta de saber… chame-se-lhe o que se quiser.
Por falta de alternativas? Não, por certo. Porque não transpor outros feriados para domingos, por exemplo? Porque não abdicar dos feriados municipais e transformá-los nos dias do município a serem celebrados em fim de semana? Ou, mais corajoso ainda: porque não impedir as “pontes”, essas sim verdadeiras causas desta fúria anti-feriado, por vezes construídas com a conivência dos governos e aproveitadas numa operação meticulosa de cálculo para transformar o tempo de férias num calendário de mais cinquenta por cento?
Lamento que a memória portuguesa ande tão por baixo. Lamento que a memória esteja a ser tratada como se fosse a culpada pela situação para que nos atiraram. É triste que uma data como o 1º de Dezembro, não dependendo das vontades políticas da esquerda ou da direita ou de outras forças de pressão, acentuada pela ideia da independência, seja exactamente aquela que cai! Talvez para provar que não se pode ser independente… Memória pobre, triste memória!
E, voltando ao livro de Ribeiro e Castro (que deve ser lido para informação e visto como forma de intervenção e de partilha, recolhendo vários testemunhos e os diversos textos que o autor escreveu sobre esta questão), valeria a pena recomendar a leitura da sua “introdução”, verdadeira e forte declaração de interesses do que deve ser um político, do que deve ser a sua função, do que deve ser a aliança entre a sua consciência e a cultura. O mal é que a maioria dos políticos que temos não passam por estes crivos, infelizmente, como se tem visto desde há muito!

sábado, 12 de maio de 2012

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Memória: Fernando Lopes (1935-2012)


Recordo-lhe a delicadeza com que falava de cinema e a igual delicadeza das imagens. Relembro filmes como Uma abelha na chuva (1972), Crónica dos bons malandros (1984) ou O delfim (2002), todos adaptações da literatura, de Carlos de Oliveira, de Mário Zambujal ou de Cardoso Pires. E opto por ver um deles. Gesto frágil, é certo, mas em jeito de homenagem e de respeito.

terça-feira, 1 de maio de 2012

É isto normal?


O que levou o grupo Jerónimo Martins a promover as suas vendas da forma que o fez hoje, com 50% de desconto em compras iguais ou superiores a 100 euros? Só a empresa o saberá, mas o retrato - também por ser no dia de hoje - não é bonito…
Em primeiro lugar, o Pingo Doce não deu nada a ninguém; em segundo lugar, contribuiu para alguma inquietação social; em terceiro lugar, não podemos considerar que tenha sido seguido o princípio da formação do consumidor ou de um consumo responsável, como deveria ser apanágio deste tipo de distribuidores; em quarto lugar, é grave que, como dizem as notícias, as lojas tenham tido de encerrar mais cedo “por razões de segurança”.
Poder-se-á argumentar que foram a necessidade e a poupança que levaram a esta corrida todos os clientes… poderá, ainda que não fique provado que necessidade e poupança sejam irmãs gémeas das compras descontroladas, adquirindo-se aquilo de que se precisa e aquilo de que não se precisa…
Cada vez gosto menos de hipermercados. Os consumidores têm sido explorados até ao tutano por essas catedrais de consumo. Agora, que o tempo é o que é, apresentam-se como alguém que dá uma prenda aos carenciados que todos somos, levando já os primeiros (ou os últimos) euros do mês. Incongruências de um regime que agride continuamente cada pessoa…
Leia-se a reportagem surgida na edição online do Público e pense-se…
É isto normal?

Máximas em mínimas (84) - António Mota


Sonho – “Muitas vezes a imaginação é mais importante que a realidade. (…) Os sonhos, às vezes, ganham raízes dentro de nós.” (in “O violão”)
Natureza – “A Natureza ainda é a melhor amiga.” (in “Os melhores amigos”)
Idade – “Contar os anos é uma coisa muito complicada. Até dez, conta-se bem.  Entre dez e quinze demora muito tempo a contar. Mas depois é uma grande confusão.” (in “Como se fossem lenços de mão”)
António Mota. O lobisomem (1994)