No final da tarde de hoje, houve uma homenagem a Urbano Tavares Rodrigues promovida pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Não estive lá, mas, ao saber a notícia, lembrei-me do professor e recordei uma homenagem que, em Setúbal, lhe foi feita na livraria Culsete, em Janeiro de 2003. O Manuel Medeiros fez questão que eu testemunhasse sobre Urbano Tavares Rodrigues, uma vez que tinha sido seu aluno. E fi-lo com muito gosto. É uma versão abreviada do meu testemunho lido nessa altura que aqui apresento. Em jeito de participação na homenagem que em Lisboa hoje lhe foi prestada.
Não sei de quando vem o meu contacto com Urbano
Tavares Rodrigues, mas sei que vem de muito longe, desde quando ainda nem
pensava que viria a licenciar-me em Letras, muito menos imaginando que o iria
ter como professor. Também não sei qual foi o primeiro livro que dele li –
talvez A Noite Roxa, que me lembro de
me ter sido emprestado por um amigo e que, mais tarde, adquiri para nele reler
uma interessantíssima narrativa como “Escombros”, quase retrato de uma geração,
e para nele fazer uns sublinhados que me tinham impressionado nessa leitura
sobre a vida e a arte... Talvez o primeiro livro que li de Urbano não tenha
sido este, mas tenha sido uma recolha literária sobre Estremadura, nessa quase indispensável colecção que é a “Antologia
da Terra Portuguesa”, testemunho da indispensabilidade que a literatura se
torna para dizer a terra, para dizer o homem, antologia, aliás, onde creio que
tive um dos primeiros contactos com Sebastião da Gama, que topou e mostrou a alma
arrábida em toda a sua maravilha... Ou talvez a minha primeira leitura de
Urbano Tavares Rodrigues tenha sido outra. Recordo, no entanto, estas duas como
as mais antigas que dele conheço.
Em 1979, entrei para uma
licenciatura na Faculdade de Letras, ingresso já tardio porque me era
necessário trabalhar, mas atempado porque pôde ser no curso que queria e na
Faculdade que me ficava mais à mão, em horário cumprido depois das 17 horas.
Lembro-me de várias pessoas que tive como professores e pelas quais senti uma
admiração grande desde logo.
Uma das coisas que me
fascinou na minha licenciatura foi o facto de ter conhecido escritores enquanto
professores, podendo assim usufruir da sua experiência enquanto artistas e
criadores e do seu estatuto enquanto professores, intelectuais e cidadãos
intervenientes, que eram vários. O professor Urbano Tavares Rodrigues não fugiu
a este quadro. E, se foi apaixonante a forma como nos fez ouvir a solidariedade
e o social presentes em Germinal, se foi suave a maneira como nos fez
entrar nos domínios do erotismo de La Motocyclette, se foi a tocar o
fascínio que nos falou de uma obra como Le Ravissement de Lol V. Stein,
certo é que todos estes predicados se construíram como metáforas dele próprio,
isto é, a delicadeza do discurso, a singeleza das práticas, a simpatia da
disponibilidade, o aprofundar permanente no cruzamento da literatura estudada
com as múltiplas e incansáveis referências advindas da sua experiência de
escritor, o sorriso disponível numa atitude de quem parecia tudo oferecer
fazendo passar o universo literário numa relação constante de tu-cá-tu-lá para
um degrau de contínua admiração pela arte... enfim, tudo isto nos foi
transmitindo, tudo isto foi partilhando, porque o todo das suas aulas se nos
afigurava também como uma partilha de reflexões e de angústias da estética e do
sentir.
A permanente abertura do
professor Urbano Tavares Rodrigues nunca lhe deixou escorregar um “não”.
Recordo que, mesmo perante trabalhos ou observações de qualidade menos
desejada, a sua atitude era de tentar dar a volta de forma subtil, não negando
a pouca pertinência do resultado (ou, muitas vezes, a sua impertinência) e
incluindo no seu comentário as pistas de orientação que o estudante deveria
aproveitar ou explorar.
Habituei-me, assim, a olhar
o professor Urbano Tavares Rodrigues como uma personagem dedicada, disponível e
atenta, como uma personagem participante (frequentemente trocando opinião
connosco sobre posições públicas a propósito de questões culturais e de
ensino), como alguém sempre pronto a incentivar os voos de quem quisesse ir
mais longe ou de quem precisasse da sua ajuda. Recordo que, no último ano da
licenciatura, estudei a autobiografia em José Gomes Ferreira, a propósito do
seu livro A Memória das Palavras, para a cadeira de Teoria da
Literatura, leccionada por Lucília Gonçalves Pires. Ser-me-ia útil falar com Gomes
Ferreira, mas ele estava a passar um mau momento de saúde, pela sua debilidade
de 80 anos. Foi, aliás, o professor Urbano que me pôs ao corrente do estado de
saúde de Gomes Ferreira, mas, logo que soube das suas melhoras temporárias,
falou-lhe e pôs-nos em contacto, assim me tendo sido proporcionado um encontro
de cerca de três horas com esse “poeta militante”, na sua casa da rua Rio de
Janeiro, em que quase me limitei a ouvi-lo e em que grande parte da sua
conversa não foi sobre poesia, mas foi poesia. Passadas cerca de duas semanas,
o professor Urbano encontrou-me na Faculdade, perguntou-me pelo andamento do
trabalho, tendo-lhe eu dito que o mesmo já tinha sido apresentado e avaliado.
Quis vê-lo, porque, argumentou, “acho que tenho alguma responsabilidade nesse
trabalho”. Dei-lhe uma cópia e, volvidos uns dias, propôs-me que o texto fosse
publicado no “Suplemento Cultural” do Diário. Respondi que sim, meio sem
jeito. Soube depois que era sua prática corrente incentivar os alunos à
publicação de trabalhos e mesmo à edição.
Concluída a licenciatura,
abandonei também o trabalho que tinha e passei para o ensino. Em 1985, estando
em Beja – onde confesso que aprendi a gostar do Alentejo –, ao rebuscar numas
prateleiras já esquecidas e poeirentas de uma livraria da cidade, encontrei um
livro sobre Urbano Tavares Rodrigues, intitulado Escritor da Fraternidade,
da autoria de Pires Campaniço. Já não contactava o professor havia cerca de
dois anos, depois que saíra da Faculdade. Comprei o exemplar por uma bagatela e
li as suas 130 páginas – fortemente ideologizadas – nesse mesmo dia, mais no
sentido de ter um ponto de contacto com alguém que me impressionara fortemente.
O livro lembrou-me o professor, sobretudo, e pareceu-me que o título escolhido,
ao eleger a fraternidade para caracterizar o escritor, tinha acertado no ponto.
Fraternidade, como quem diz solidariedade, como quem afirma disponibilidade...
são lógicas de atributos que resultam bem se aplicados a Urbano Tavares
Rodrigues.
Fui, entretanto, descobrindo
também a sua faceta de ensaísta na área da literatura e de escritor de viagens,
sempre encostando as obras abordadas a referentes culturais importantes ou as
viagens a itinerários não menos sentidos (talvez sentimentais), como descobri
num relato seu sobre Santiago de Compostela, publicado em 1949, verdadeira
peregrinação no espaço e no eu, na busca de outras artes e do conhecimento do
mundo.
Encontrámo-nos depois em
diversas situações mais ligadas à literatura (por exemplo, na sua defesa da
tese de doutoramento sobre Teixeira-Gomes, ou na apresentação de Violeta e a
Noite aqui neste mesmo espaço da Culsete), sempre relembrando tempos da vida
de estudante.
E o que nos tem unido? Para
lá de tudo, o professor Urbano Tavares Rodrigues sempre me falou, de imediato,
do tempo da Faculdade e da lembrança das suas aulas. Ao fim e ao cabo, um tempo
marcante, de aprendizagem e também de conhecimento, lados ambos de uma mesma
estrada. Mantenho o gosto por Urbano Tavares Rodrigues enquanto escritor
múltiplo e multifacetado, mas quero preservar também esta recordação feliz de
um Urbano Tavares Rodrigues professor e mestre, dedicado, sabedor, atento,
delicado e prestável, fazendo da literatura uma forma de criação e do ensino
uma via de reflexão... ou talvez, e sobretudo, conjugando os dois percursos no
rumo da disponibilidade para uma vivência de transformar a arte em cidadania.
Não resisto sem ler quatro linhas de um seu escrito de cunho autobiográfico,
publicado sob o título de “Apontamentos e Confissões”, no livro de ensaios
sobre O Tema da Morte: “Já na minha adolescência desejava ser escritor,
embora outras profissões me seduzissem, tais a de médico e a de professor: no
fundo, aquelas que me permitissem ancorar e sentir-me útil.” É uma justificação
simples, claro. Mas testemunho que, na sua simplicidade, a senti. E vivo bem
com essa lembrança e exemplo.