quinta-feira, 29 de julho de 2010

Máximas em mínimas (60)

Entre a ganância e a preservação da ética
"Si nuestros antepasados pensaban como seres humanos, como individuos, por mantener una armonía entre ellos y sus familias, si mimaban la naturaleza de donde comían y trabajaban para su futuro, hoy el nuevo Ser Superior (el dinero y la avaricia), está representado por una desquiciante carrera sin descanso de la avaricia por el dinero. Aprovechemos pues las vacaciones para recuperar las enseñanzas de nuestros antepasados, el respeto por nuestros mayores y nuestros conceptos morales y éticos. Ellos son nuestro patrimonio personal."
Antonio Corbalán. “Una nueva religión”. El Pais: 29.Julho.2010.

domingo, 25 de julho de 2010

Máximas em mínimas (59)

Lágrimas
"As lágrimas são um mapa pleno de significação e de leituras. Temos muitas maneiras de chorar e o modo como o fazemos revela não só a temperatura dos sentimentos, mas a natureza da própria sensibilidade. Ao chorar, mesmo na solidão mais estrita, dirigimo-nos a alguém: esforçamo-nos para que ninguém veja que choramos, mas choramos sempre para um outro ver. As lágrimas emprestam um realismo único, irresistível à dramática expressão de nós próprios. São um traço tão pessoal como o olhar ou o mover-se ou o amar."
José Tolentino Mendonça. "A sintaxe das lágrimas". O hipopótamo de Deus e outros textos.
Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, pg. 22.

sábado, 24 de julho de 2010

Ainda a propósito da concorrência...

"Debería haber margen para evitar que los oligopolios de la distribución propicien que el campo quede desierto y las manufacturas se conviertan en museos, al menos hasta que la economía del conocimiento aporte tanta riqueza al país que podamos permitirnos el lujo de abandonar las manufacturas."
Adrià Serra. "Olvidar la manufactura?". La Vanguardia. Barcelona: 8.Abril.2010

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Os Domingos da concorrência...

Os hipermercados vão poder estar abertos até à meia-noite de domingo, segundo decisão do Conselho de Ministros. Distribuidoras houve que já se pronunciaram, com argumentos fantásticos: criação de mais emprego e mais liberdade para as famílias. Veremos se uma e outra razão não serão falácias…
As catedrais chegaram a dominar os domingos como tempo de meditação e de reflexão; depois, as catedrais estenderam-se aos lugares de espectáculo e os domingos tiveram as suas catedrais do futebol; a seguir, as catedrais deslocaram-se para o consumo dos centros comerciais; agora, as catedrais do consumo alargam-se para… serem amigas das famílias.
E continuaremos a ser muito rápidos a encher os carros de compras no hipermercado, mas muito demorados nas filas de pagamento nos mesmos hipermercados…em nome do consumo e da catedral, não vá o cliente ter-se esquecido de alguma coisinha e, enquanto espera, compra mais...
O que me molesta é a desfaçatez dos argumentos. Só. É assim como usar as estatísticas para as ideias que queremos defender – servem para dizer que sim e para dizer que não às mesmas coisas, para defender orientações e desorientações, para leituras diferentes e sempre com aparente razão.
Entretanto, o pequeno comércio, que não significa tão pouco como isso…
Entretanto também, as autarquias vão ter uma palavra a dizer nestas aberturas. Veremos quais os argumentos usados para autorizarem ou para não autorizarem tais aberturas…
Mas tudo será em nome da concorrência (o deus mercantil)… que nunca dos consensos!

terça-feira, 20 de julho de 2010

Anatole France segundo Aquilino Ribeiro


Na tarde de 5 de Abril de 1923, Aquilino Ribeiro foi autor de uma palestra no Teatro Nacional, versando a personalidade de Anatole France. A sessão integrava-se num programa em benefício da publicação de uma antologia luso-brasileira na Alemanha. A apresentação do conferencista esteve a cargo de Cardoso de Oliveira, embaixador do Brasil, que não poupou elogios ao jovem escritor português, então com 38 anos e tendo já publicado títulos como Jardim das Tormentas (1913), A Via Sinuosa (1918), Terras do Demo (1919) e Malhadinhas (1922).
Logo desde início da palestra, Aquilino não esconde o seu fascínio pelo autor francês (que viria a morrer no ano seguinte), considerando-o “o génio mais representativo da latinidade” e um “sobrevivente da era que expirou”, isto é, da fase anterior à Grande Guerra (1914-1918). A adesão de Aquilino a Anatole France advém não apenas do conhecimento que detém da sua obra, mas também do facto de o ter visto duas vezes em Paris: uma, no cais do Sena, folheando livros nos alfarrabistas (elemento que serve de identificação entre as duas personalidades); outra, na Casa dos Estudantes, defendendo a utopia e convidando o público a “arquitectar repúblicas imaginárias como Platão, Tomás Morus, Campanella, Fénelon”.
Depois de relatar estes dois encontros, Aquilino aprecia a formação e descreve a obra do mestre, fazendo ressaltar a sua “personalidade pensante e artística”, com o afecto ao saber e à leitura e uma cultura profundamente humanista, percurso que levará o autor português a desprezar aqueles que, por esses tempos, em França, tentavam minimizar a obra de Anatole.
No final da conferência, Aquilino cita longamente um dos então mais recentes livros do seu mestre francês – La vie en fleur (de 1922) – com o objectivo de apresentar o retrato traçado do homem seu contemporâneo, com a ideia ainda no que fora o grande conflito vivido na Primeira Grande Guerra (feito a cujo início, em Paris, Aquilino assistira e de que nos deixou páginas diarísticas em É a Guerra, apenas publicado em 1934), condenando os senhores da guerra: “Os grandes industriais e os grandes financeiros têm interesse em ser belicosos não só pelos lucros que lhes trazem os fornecimentos de guerra como pelo incremento que o conflito traz aos seus negócios. De povo para povo, crê-se cegamente na vitória; duvidar, seria crime de lesa-pátria. As guerras, na maioria dos casos, são decididas por meia dúzia de sujeitos. A facilidade com que arrastam o povo é inacreditável; ainda que gastos e regastos, os meios a que recorrem não falham nunca. É da praxe lançar primeiro a público os enxovalhos recebidos do estrangeiro e que só podem ser lavados com sangue, quando, em boa moral, as crueldades e perfídias que a guerra engendra, muito longe de honrar o povo que as praticou só o podem cobrir de imortal infâmia.” Os comentários de Anatole France assentavam, pois, nesse conflito que se arrastou por mais de quatro penosos e mártires anos. E, a terminar, Aquilino vai ainda buscar outros ensinamentos devidos a Anatole no mesmo livro, verdadeiros princípios sobre o género humano: “Tenho os homens, em geral, por mais maus do que parecem. São uns e mostram-se outros. Obrigados a cometer acções que mereceriam a reprovação geral, escondem-se; na prática de actos que podem ser louváveis, exibem-se.”
O que atrai Aquilino em Anatole France é este conhecimento do ser humano, que não se pode esconder na literatura. E o autor de La vie en fleur será uma constante no percurso literário aquiliniano. A palestra interessou os editores e foi publicada logo nesse ano sob o título Anatole France – Conferência (Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, 1923).

terça-feira, 13 de julho de 2010

Licínio Lima em entrevista a não perder - sentir a escola de hoje

No sítio da Fenprof, uma entrevista de Licínio Lima, da Universidade do Minho, a José Paulo Oliveira faz eco do que se sente nas escolas a um ritmo crescente, com assuntos como a autonomia, a burocracia, a gestão, os agrupamentos, a centralização. Uma entrevista para ler e para pensar. Eis alguns excertos, mas a entrevista pode ser lida na íntegra aqui.
1. «(…) A política e a administração da educação revelam-se, na tradição portuguesa, altamente centralizadas, embora fatalmente periféricas no que concerne à acção educativa e pedagógica concreta, que ocorre necessariamente em contexto escolar e não nos departamentos centrais ou nas instâncias pericentrais desconcentradas do ministério respectivo. (…)
2. (…) O centralismo revela-se inconsequente em termos educativos e pedagógicos, assumindo dimensões autoritárias, próprias de uma oligarquia que, por definição, é incapaz de corrigir os seus erros e de se descentrar das suas lógicas de controlo. À ponta da baioneta, as escolas são transformadas em repartições. (…)
3. (…) Agora, é possível acabar com as direcções regionais!... O poder central controla tudo através das plataformas de controlo informático. O Director está na sede do agrupamento e é o rosto estampado do Ministério da Educação, não é o rosto da escola. (…)
4. (…) A forte centralização da administração educativa é o principal problema que atinge hoje a Escola Pública em Portugal e ou damos passos importantes na democratização do governo das escolas ou não resolveremos nenhum dos outros problemas. Em Portugal descobrimos uma teoria nova, um contributo que damos para a Humanidade: nas escolas pequenas os alunos não aprendem. E assim, enquanto na Finlândia uma escola secundária tem uma média de 400 a 500 alunos, no nosso país a administração quer fundir escolas e criar super-estruturas organizativas com centenas de professores e milhares de alunos… (…)
5. (…) Ao mesmo tempo que os discursos autonómicos se generalizam, sem consequências visíveis, emerge, pelo contrário, um maior protagonismo do governo, seja através da tradicional produção normativa e hiper-regulamentadora, seja por intermédio de novos dispositivos de governamentalização da administração central, das direcções regionais e, sobretudo, das escolas. A este propósito, a criação do conselho das escolas tem-se revelado, até agora, mais um elo de ligação entre o governo e as escolas, garantindo a centralidade do primeiro, do que um fórum de expressão das segundas e um locus de concertação e produção de políticas participadas. (…)
6. (…) O controlo central que se abate sobre as escolas, a radical mudança dos quotidianos escolares e da acção dos professores, o taylorismo informático, os procedimentos de todos os tipos de avaliação, são apenas alguns exemplos notáveis do regresso ao positivismo, às pedagógicas científicas e racionalizadoras, ao protagonismo dos objectivos em educação, à mensuração para a competitividade e o produtivismo. (…)
7. (…) As alternativas à governação burocrática das organizações escolares, que têm evacuado e deslegitimado várias formas de gestão democrática e colegial, a favor de soluções de tipo gerencial, anunciadas como pós-burocráticas, não só não têm assegurado uma governação mais democrática das escolas nem combatido a burocratização das escolas e da educação, como, paradoxalmente, têm radicalizado o seu burocratismo tradicional e contribuído para a emergência de uma hiper-burocracia incompatível com uma educação democrática. (...)
8. (…) A forte centralização da administração educativa é o principal problema que atinge hoje a Escola Pública em Portugal e ou damos passos importantes na democratização do governo das escolas ou não resolveremos nenhum dos outros problemas. As escolas precisam de mais autonomia, de mais responsabilidade. É ineficaz uma política que pretende impor soluções a régua e esquadro – do poder central sobre os professores. Para ser rápido, posso dizer-lhe que precisamos de um Ministério da Educação mais humilde, mais moderado, com mais consciência dos problemas, mais próximo das escolas, mais solidário. O poder central atrapalha muito… Já agora: precisamos de um órgão de verdadeira direcção, que não é o actual Conselho Geral.»

Paulo Guinote - A educação entre as grandezas e a humanização

Paulo Guinote. "A educação: uma questão de grandeza?". Diário de Notícias: 12.Julho.2010

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Venceu uma equipa!

O Mundial de Futebol acabou ontem e acabou assim: com a Espanha, uma equipa, a levar a taça. Não bastam bons jogadores; são necessárias equipas. Como em tudo...
[foto: Michael Kooren, Reuters, através do sítio do Público]

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Máximas em mínimas (58) - de Matilde Rosa Araújo

1. "No fundo, todos temos uma necessidade enorme de nos comovermos uns com os outros. Mas só por fora, a maior parte das vezes. (...) Todos temos uma necessidade enorme de não nos bastarem as próprias dores, mas só para delas fugirmos." (in "Dez tostões numa bandeja")
2. "Na vida há necessidade de mentir porque os outros nos perguntam todos os porquês." (in "A menina pomba e Constança")
3. "Ser pobre custa. E então pobreza que se esconde é uma pobreza desgraçada." (in "Jantar de festa")
4. "A vida é qualquer coisa sempre pronta a fugir-nos das mãos, a fazer-nos sofrer. Só não tem este sobressalto quem já morreu ou não nasceu nunca. Mas há gente que tem a mania de filosofar com todas as coisas. Gente pretensiosa, afinal." (in "Jantar de festa")
5. "O que me interessa é o presente, olhar as pessoas no seu presente, ia a dizer do indicativo. Como são capazes de amar, viver, olhar os outros. Isso é que é importante, o eixo principal. O que sempre foi e será. Passado e futuro pertencem às contingências do caminho. Assim como um rio, isso, um rio que nós olhamos num ponto baixo, mesmo sobre a margem. Sabemos, ali. Talvez saibamos mais, mas ali estamos, vemos seixos e água." (in "Por nada")
6. "Com a idade dorme-se menos, talvez porque saibamos, sem o querer saber, que vamos dormir tempos sem fim. E, para nos iludirmos, consideramos tal como uma anormalidade." (in "Praia nova")
Matilde Rosa Araújo. Praia nova (Histórias simples). Lisboa: Editora Lux, 1962.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Francisco Finura, o dos sete ofícios

De seu nome Francisco Augusto da Silva Finura, é conhecido por “Finuras”, algo que remete não só para o seu apelido mas também para a criatividade (a “finura” tem a ver com a subtileza, a inteligência e o engenho). Nascido em 13 de Abril de 1929, em Setúbal, é conhecido pelos inventos, pelo trabalho e pela pluralidade de profissões que exerceu ou dos feitos que cometeu. Bem a propósito, já circulou documento com a sua apresentação, que poderia ocupar vários cartões-de-visita: “Professor de hipnose, telepatia, retenção memorial, psicanálise, magnetismo e fascinação; astro internacional de cinema; artista de variedades; ilusionista; fakir; toureiro; erudito investigador; coleccionador; numismata; arqueólogo; inventor, agricultor; marinheiro de longo curso; escafandrista; mergulhador profissional; homem-rã; cozinheiro; industrial de conservas e conserveiro; serralheiro; torneiro; bate-chapa; mecânico; electricista; afinador de bicicletas; cromador; recauchutador; vulcanizador; polidor de metais; ex-professor de natação; lutador; boxeur; judoca; ciclista; water-pool; vela; remo; ski aquático; pesca submarina; hóquei em patins; basquetebol e voleibol; dador de sangue”. E ainda: “operário especializado em trabalhos não especializados”. E mais: diplomado pela Escola de Psicologia de Nancy e correspondente da mexicana Escola Azteca de Psicologia e Hipnotismo; rei do Carnaval de Setúbal em 1968, 1969 e 1970; condecorado pelo Instituto de Socorros a Náufragos graças aos 30 salvamentos em que foi protagonista.
Francisco Finura, com um tal currículo (mistura de feitos, de profissões e de gostos), é bem uma das figuras mais populares de Setúbal, fama granjeada por todos os feitos mencionados e a que um programa televisivo como o “Zip-Zip”, bem como a sua actuação em espectáculos circenses (magnetizando animais) ou como duplo no cinema, acrescido o facto de ter sido fotografado pelos conhecidos fotógrafos sadinos Américo Ribeiro ou Maurício Abreu conferiram auréola. Algumas marcas da sua imagem são o porte selecto com lenço dobrado a condizer, o cachimbo ou a bicicleta aparentemente sem travões.
Pois bem: Francisco Finura, já passante dos 80 anos, vai ter homenagem em Setúbal, promovida por um grupo de amigos, com almoço a propósito (17 de Julho). O blogue “Charroque da prrofundurra”, que anima esta homenagem, criou-lhe o lema, apregoando: “Finura, um homem muito grande para um mundo tão pequeno”.
Entretanto, segundo noticia O Setubalense de hoje, está em curso uma petição na internet, dirigida à Câmara Municipal de Setúbal, a propor que o nome deste setubalense seja desde já inserido na toponímia sadina, identificando o largo onde o conhecido Finura tem oficina.
[Fotos: Francisco Finura, visto por Maurício Abreu, em Retratos do Fim do Século (Setúbal: Edições Inapa, 2000);
cartaz da homenagem a Francisco Finura]

terça-feira, 6 de julho de 2010

Memória: Matilde Rosa Araújo (1921-2010)

Não sei quando conheci Matilde Rosa Araújo, mas foi há muito tempo, há muito, quando comecei a ser leitor, talvez, ou um pouco mais tarde. Sempre gostei da simplicidade e dos valores que Matilde fazia perpassar pela sua mensagem. Uns anos mais tarde, no início da década de 90, conheci-a pessoalmente, graças ao Manuel Medeiros, numa sessão havida na Culsete, espaço onde, nos anos seguintes, a vi mais vezes. Recordo desse primeiro encontro a afabilidade, a ternura, a quase ingenuidade e a calma que irradiava, num falar sereno e num querer saber interessado. Estas marcas mantiveram-se nos encontros seguintes e, em cada uma dessas vezes, eu sentia estar perante alguém que sabia muito e que parecia ter a curiosidade das crianças.
Depois, em virtude da Associação Cultural Sebastião da Gama, contactei Matilde Rosa Araújo mais algumas vezes. E, em cada vez que se falava do "Poeta da Arrábida", o seu rosto iluminava-se e arrebatava, num rememorar do que fora o são convívio e a amizade entre eles e numa insistência da educação através do amor, pedagogia absolutamente única.
Quando, hoje, a Joana Luísa me telefonou a noticiar a morte de Matilde Rosa Araújo, fiquei triste. Não porque este desfecho não fosse esperado, porque sabia o declínio em que Matilde tinha entrado em termos de saúde; mas porque sentia estar a partir alguém muito bom, alguém com quem era um gosto aprender e conversar. Minutos depois, ouvi nas notícias o testemunho de António Torrado, que dizia ter sido Matilde Rosa Araújo "a fada madrinha" de muitos escritores de literatura dedicada à infância e à juventude, ao mesmo tempo que sublinhava aquele seu saber. E quando, a meio da manhã, encontrei ocasionalmente Pedro Tamen e, na conversa, lhe noticiei a morte da Matilde, ele teve apenas um comentário: "Das várias vezes que a contactei, sempre a vi como uma pessoa excepcional".
Fica-me, pois, a memória da escritora (que poderei revisitar sempre que queira, felizmente) e também a recordação da bonomia em pessoa, que, nos nossos curtos encontros, me marcou e me ensinou.
Ver mais aqui e aqui.
[foto: Matilde Rosa Araújo, Sebastião da Gama e Maria Alice Botelho Moniz, em Dezembro de 1947, momentos depois de Sebastião da Gama ter levantado da tipografia os primeiros exemplares de Cabo da boa esperança]

Guilherme Valente e o "eduquês"

Guilherme Valente. "Dois logros do eduquês". Expresso: 3.Julho.2010

sábado, 3 de julho de 2010

Cabral Adão, o centenário

A Biblioteca Municipal de Setúbal mostra uma exposição bibliográfica alusiva a Luís Cabral Adão quando passa o centenário do seu nascimento, gesto importante para a memória que Setúbal deve guardar deste escritor e médico. Aqui reproduzo um texto que, há uns anos, escrevi para o Jornal da Região, evocando Cabral Adão e a "sua" pedra na Arrábida...

Pelas 21 horas do último dia de Abril de 1938, noite chuvosa e de vento, desembarcava na Praça do Bocage, em Setúbal, onde era então o terminal rodoviário de autocarros, um transmontano que vinha tentar a vida na cidade do Sado. Deixara Vila Flor (a sua terra, no nordeste brigantino), estava quase a fazer vinte e oito anos (nascera a 24 de Junho de 1910), trazia um curso de Medicina (1933) e a especialidade de estomatologia (1938), conseguira alugar casa na Rua Ocidental do Mercado. Chamava-se Luís Manuel Cabral Adão e viria a ter consultório na Travessa da Alfândega, virado para o Largo da Misericórdia.
Meio século mais tarde (o período necessário para as comemorações designadas por "bodas de ouro"), este homem era alvo de uma homenagem em Setúbal, a assinalar os seus 50 anos na cidade, tempo passado como médico, como cidadão e como escritor. Vários amigos juntaram-se em 30 de Abril de 1988, tendo vindo a Setúbal uma delegação de Vila Flor (que integrava o respectivo Presidente da Câmara, Alfredo Travessa Ramalho). Nessa tarde, dirigiram-se para a Arrábida e, na descida do Outão para a Figueirinha, na zona conhecida por Praia das Pedras, foi descerrada uma lápide, colocada sobre rocha que da estrada se despenha sobre a praia, contendo os seguintes dizeres: "Lá numa rocha, um dia, sem festança, / Alguém inscreverá esta lembrança: / Aqui viveu e amou Cabral Adão", versos que constituem o último terceto do soneto número XV do livro Panorâmica - Poemas a Setúbal, que teve primeira edição em 1963. A lápide contém ainda as referências "30-4-1938 / Bodas de Ouro / 30-4-1988".
Na ocasião em que foi inaugurada a inscrição, o homenageado relembrou: "Este é um ponto do litoral de Setúbal que eu comecei a escalar antes que poucos o fizessem. Há quantos anos? Nem sei". Depois, contou a história: "Quando o primeiro lanço da estrada da Secil para estas arribas chegava apenas ali ao alto, nas traseiras do farolim do Outão, trepei uma escada de travessas de madeira velha para descobrir o que havia para além da trincheira. Pé aqui, pé além, evitando pedras, desviando arbustos espinhentos, atento a qualquer resvalamento perigoso, desci ao areal estreito, mas mimoso, que separava umas fortes rochas do mar... O lugar era recatado, a beleza das ondas selvagens, dos alcantis, da insondável distância. Enamorei-me da prainha. Vim aqui mais e mais vezes". A frequência com que Cabral Adão começou a acorrer àquela nesga de praia, depois acompanhado pelos filhos (Luís Guilherme, Maria de Fátima, António Viriato, Maria Manuela, João Pedro e Aida Maria), levou a que as trabalhadoras da Secil fossem designando o local por "Praia do Dr. Adão", numa referência ao frequentador quase único daquele espaço na altura.
Quando Cabral Adão chegou a Setúbal, encontrou uma série de pessoas amigas de família, tal como recordou no discurso que fez no jantar desse dia de homenagem - o padre Cassiano Cabral, seu conterrâneo e prior de Santa Maria; o major Alfredo Perestrelo da Conceição, que fora amigo de seu avô em Bragança; António Gamito, que tinha sido colega de liceu do seu tio. Começando a conhecer a cidade e as pessoas, Cabral Adão poderia dizer, em 1988, referindo-se a Setúbal, que estava na sua "segunda terra-natal", onde a família crescera.
Fascinado pela paisagem, este médico e escritor seria o autor do conhecido epíteto "rio azul" atribuído ao Sado, que hoje está generalizado na promoção da região, inspiração que não será estranha ao facto de Cabral Adão ter vivido na rua Ocidental do Mercado, que permitia o contacto diário com o rio. O seu primeiro livro, repleto de crónicas sobre a região, foi publicado em 1953 sob o título de Flores do Rio Azul. Mas o mesmo fascínio pela cor do Sado o acompanhava em 1988, quando, no mesmo discurso, evocava o que sentira ao ver, cinquenta anos antes, "a coruscante seda do rio, este rio bonzão que roubou o azul ao céu pela calada duma noite de luar e ficou sem julgamento por falta de prova".
O território ligado ao Sado foi ainda o motivo da sua última crónica publicada no semanário O Distrito de Setúbal, em 31 de Março de 1992, intitulada "O Ribassado - Uma Utopia? Um Palpite?" (o jornal publicaria ainda, em 28 de Abril do mesmo ano, um outro texto de Cabral Adão sob o título de "Efeméride", que continha a mensagem que lera no descerramento da lápide quatro anos antes). A sugestão encaminhava-se no sentido de ser constituída uma província designada por "Ribassado", que Cabral Adão pincelava nas suas vertentes geográfica, etnográfica e humana, constituída pelos concelhos de Sesimbra, Setúbal, Palmela, Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e Sines. Na conclusão, dizia o cronista: "Utopia? Palpite? Confio na minha inspiração e estou a ver os habitantes da nova província responderem, ufanos, se perguntados nesse sentido: Eu sou do Ribassado! E, nas entradas de Setúbal, além da legenda Rio Azul, a que já nos habituámos, esta outra, bem vincada: Capital do Ribassado!".
Desde sempre ligado à imprensa, Cabral Adão deixou crónicas, poemas e contos dispersos por jornais como O Setubalense, Jornal de Notícias, Gazeta do Sul e A Voz de Palmela, entre outros. Além dos títulos já referidos, Cabral Adão foi ainda autor de Meu Liceu, Minha Saudade (1948), Paisagens do Norte (1954), As Flores do Arrozal e Médicos da Seiva (ambos de 1955), Gineceu (1958), Vila Flor (1966), Plectro a Jesus (1971, que o filho António conseguiu publicar no dia do aniversário do pai, em 24 de Junho) e O Homem da Terra (1986).
O pendor para a poesia que caracterizava Luís Cabral Adão levou-o a ser um dos fundadores da Arcádia da Fonte do Anjo, tertúlia de poetas locais do início da década de 50 em que também participou António Matos Fortuna, com quem Cabral Adão calcorreou a zona de Palmela (a cuja vila chamou "ninho de casas brancas à sombra dum castelo roqueiro", em Flores do Rio Azul) e Quinta do Anjo.
Matos Fortuna recordava ainda o carácter repentista e humorístico de Cabral Adão. Um dia, quando estavam na casa de seus pais, na Serra do Louro, Cabral Adão e outra visita, António Henriques, resolveram, por sugestão do médico, fazer quadras a despique, tendo começado António Henriques com estrofe alusiva à família anfitriã: "Lar português e cristão / De virtudes rico centro / Tem aspecto pobretão / Mas onze Fortunas lá dentro". A resposta de Cabral Adão foi imediata: "Palácio nobre da serra / Sem torreões nem colunas / Colmeia viva que encerra / A família dos Fortunas". Numa outra altura, passeando pela Serra do Louro, os dois amigos viram escrito a lápis num marco geodésico: "Eu chamo-me Sales Parente / E tenho uma dor num dente". Logo o médico puxou de lápis e redigiu resposta pronta: "Eu chamo-me Cabral Adão / E dava-te já solução".
Os registos literários do médico transmontano resultavam, na maior parte das vezes, das visitas a pé que fazia na região e dos contactos com as pessoas no seu ambiente de trabalho, não conseguindo dissociar as pessoas das paisagens. Sintomático é o texto sobre as mondinas, a quem chamou "flores do arrozal", que assim as valoriza: "São as mondinas. No esmalte verde das folhas quadriculadas, engastam-se os coloridos vivos dos seus trajos como as policromias dum mosaico mourisco. São papoilas, são malvas, são hortênsias que se vão mexendo lentamente, sempre vergadas para o chão, na faina útil de livrar a cultura das ervas parasitas que a podem debilitar. O trabalho das mondinas, visto de dentro, será muito natural, uma tarefa vulgar, como qualquer outro trabalho de campo. Mas visto de fora, visto com olhos de interessada análise, que espinhoso e duro é o trabalho das flores do arrozal!".
Os contactos com estas terras e com estas gentes deixou-os Cabral Adão em 6 de Agosto de 1992, quando faleceu na sua casa de Almada, vitimado por paragem cardíaca, dali partindo, no dia seguinte, para Vila Flor, para jazigo de família. O seu último acto cultural foi ainda para Setúbal, sua terra de adopção. Juntamente com outras figuras sadinas, colaborara num volume que recolhia fotografias de Américo Ribeiro, intitulado Um Tesouro Guardado - Setúbal d'Outros Tempos. A vida trocara as voltas ao fotógrafo Américo, falecido umas semanas antes da apresentação do livro. E, ironia das ironias, trocou-as também a Cabral Adão, que faleceu na véspera da apresentação do livro que pretendia ser uma homenagem à obra do amigo, sobre quem escreveu, em Março de 1981: "Nada vaidoso, um homem simples, uma sombra viva que perpassa aqui e ali, quase sem se dar por ele, célere, ágil, procurando ângulos, sorrisos, focando objectivas, dando ao gatilho: clic!". Um outro "clic" não permitiu a um nem a outro verem a obra...

A pedra de Cabral Adão, na Arrábida

Intervalo (20) - Sobre moda(s)

José Sarmento. "O Pimpolho" (741). O Setubalense: 02.Julho.2010