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Meia centena de poemas que rodeiam os utensílios, o produto e o canto do artista – a sovela, o martelo, as tachas, a cola, as meias solas, o sapato, o escabelo, a oficina. E que são alimentados pelo olhar que recebe o sal e o sol através de uma janela (de um janelo, mais acertadamente) que ilumina a cave, recanto de produção e de arte, refúgio onde se está “acompanhado / não por quem passa / mas por quem não passa”. Tudo num modelar lento do universo, trabalho de pormenor, “ponto a ponto”, em que a mão desempenha papel primordial, porque corta, cose, prega, dá brilho, numa labuta para dar forma e aformosear. E escrever.
E o poeta encontra-se no seu ofício, oficial que é, na meticulosidade, da construção do poema. Como o sapateiro: “Com minha mão puxo a linha, / junto-lhe a boca a ajudar, / e já não sei qual mais minha: / se a boca se o meu puxar.” O tempo permite o engenho (o jeito do modelar), o pensar (“Que faço eu que faço / senão olhar o que tenho em frente…?”), o afecto e o carinho pelo que se produz (“a obra pequenina que fabrico / no silêncio que a rua me permite”), a chegada à claridade (através da matéria afagada e cuidada) e à escrita (“Acocorado como estava o escriba / … / como ele cumpro destino de invenção, / de leve e não sabida descoberta / do mundo incompleto.”).
E a poesia corre, não fechando portas ao destino ou à morte (“ao cair da noite, / zumbe lá fora algo que não conheço, / será talvez o roçagar das nuvens / ou o ar agitado por um aceno / que me chama para longe deste banco.”). E falando também de essências como são a memória – “A quem deixarei o meu cansaço, / as unhas sujas, as marcas / do martelo falhado, a quem / senão a quem…?” – e a descoberta – “a peça que fugirá / das mãos dos que não merecem / para andar ao deus-dará / num universo de espanto”.
Livro bonito e delicado, em que o poeta se desvenda no ofício de poetar.
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