Em 17 de Outubro de 1957, o Diário de Lisboa noticiava o nome do Prémio Nobel da Literatura desse ano, que a Academia Sueca revelara no dia anterior: “o escritor francês Albert Camus, pela sua importante obra literária que põe em relevo os problemas que hoje se apresentam à consciência dos homens.” Cerca de um mês depois, em 19 de Novembro, o laureado escrevia uma carta a Louis Germain (1884-1966), que fora seu professor no ensino primário: “Caro Professor Germain, Deixei que acalmasse um pouco todo o ruído que me envolveu nos últimos dias, antes de vir falar-lhe um pouco e de coração aberto. Acabam de me conceder uma grande honra, que não busquei nem pedi. Mas, quando soube da notícia, o meu primeiro pensamento, depois da minha mãe, foi para si. Sem o senhor, sem essa mão afectuosa que estendeu à pequena criança pobre que eu era, sem o seu ensinamento e exemplo, nada disto me teria acontecido.”
Esta é uma das vinte cartas trocadas entre Albert Camus (1913-1960) e o seu mestre, que integram a obra Caro Professor Germain - Cartas e Excertos, acabada de publicar (Livros do Brasil, 2023), pela primeira vez editadas em França no ano passado, embora algumas delas fossem já conhecidas.
Com a publicação desta correspondência, facilmente se percebe o significado do professor para o escritor franco-argelino. Já no seu romance A peste (1947), era feita uma referência ao papel do professor - “Não se felicita um professor por ensinar que dois e dois são quatro. Felicitar-se-á talvez por ter escolhido essa bela profissão.” E talvez não possamos ler esta citação sem saber que, dois anos antes, se dera o reencontro entre o ex-aluno Camus e o professor Germain, adiado desde que se tinham conhecido na Escola Comunal de Belcourt, em Argel, no início da década de 1920.
Se Camus só contactou o professor cerca de um mês depois de ser conhecida a atribuição do Nobel, a resposta do mestre demorou apenas três dias - em 22 de Novembro, desde Argel, Germain congratulava-se com a honra do discípulo e com o reconhecimento que este expressara e desabafava: “São muitos os alunos que tenho encontrado ao longo da vida e que me dizem conservar de mim uma boa recordação, apesar da minha severidade quando era preciso. A razão é muito simples: amava os meus alunos e, de todos eles, um pouco mais aqueles que a vida desfavorecera.” Esta explicação servia para Albert Camus, cujo pai, combatente na Grande Guerra, falecera na batalha do Marne, em 1914, e servia também para Germain, que combatera na mesma guerra até ao final (embora tenha sido ferido na batalha de Nieuport), se justificar: “Quando me vieste parar às mãos, ainda estava sob o golpe da guerra, da ameaça de morte que, durante cinco anos, ela fez pesar sobre nós. Eu consegui voltar, mas outros, com menos sorte, sucumbiram. Vi-os como camaradas infelizes, tombando e confiando-nos os que cá deixavam. Foi pensando no teu pai, meu caro rapaz, que me interessei por ti, como me interessei por outros órfãos de guerra. Amei-te um pouco por ele, o melhor que pude, não tive outro mérito. Cumpri um dever sagrado a meus olhos.”
Camus nunca esqueceu os ensinamentos do professor Germain. Quando, num acidente de automóvel, faleceu, em 4 de Janeiro de 1960, estava a escrever um romance, que ficou inacabado e só foi publicado em 1994, O primeiro homem, obra repleta de referências autobiográficas em que são intervenientes as personagens Jacques Cormery, um possível alter-ego de Camus, e “Monsieur” Bernard, professor que deixa perpassar a imagem de Germain - aliás, em dado passo do manuscrito, Camus deixa escapar a verdadeira identidade da personagem, escrevendo: “Dans la classe de M. Germain, pour la première fois, ils sentaient qu’ils existaient et qu’ils étaient l’objet de la plus haute considération” (“Na aula do Senhor Germain, pela primeira vez, eles sentiam que existiam e que eram objecto da mais alta consideração”).
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1163, 2023-10-11, p. 8.
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