sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

Arrábida “serra-mãe” há 80 anos (4)

 


Por meados de Setembro de 1945, Sebastião da Gama era apresentado ao crítico João Gaspar Simões (1903-1987), a quem foi entregue o esboço de Serra-Mãe para apreciação, conforme o poeta relatava à amiga Matilde Rosa Araújo, em carta de 20 desse mês: “Fui ontem apresentado ao Gaspar Simões. Simpático, gordo, baixo. Cabelos à Bocage. O Pedro de Andrade quis que ele lesse o livro. A edição é caríssima e quer ter quem o anime a arriscar. Espero que Sua Excelência não torça o nariz.”

Não conhecemos a opinião de Simões sobre o que poderia ser a estreia de Gama; mas podemos imaginá-la se lermos o que, em 1951, o mesmo Gaspar Simões escreveu sobre a publicação do terceiro livro de Sebastião, não apresentando opinião muito favorável sobre a anterior obra do poeta de Azeitão: “o autor de Campo Aberto, que, antes de escrever e publicar os versos deste livro escrevera e publicara versos muito diferentes, (...) procurando ser inspiradamente moderno, confundia a inspiração com a retórica, a ênfase com a adivinhação e o galimatias com a analogia” (crónica reproduzida em Crítica - II, 1962). Se não conhecemos em absoluto a opinião emitida pelo crítico em 1945, o que sabemos é que, datada de 24 de Outubro desse ano, a resposta de Pedro de Andrade (já referida na anterior crónica), co-proprietário da Portugália, excluiu o livro Serra-Mãe do plano editorial da casa editora. No entanto, o sonho da publicação persistiu e, se a decisão tomada pela administração da Portugália abalou Sebastião da Gama, a vontade de publicar ultrapassou o esmorecimento e o cuidado na organização e no conteúdo do livro ocuparam bastante do tempo do poeta.

Em 25 de Julho de 1945, anunciara a estrutura do livro a Matilde Rosa Araújo: “PRESENÇA - Os de tom místico (‘Presença’, ‘Remoinho’, ‘Eternidade’, ‘Rebentação’, etc.). Abrirá por ‘Vibração’ e terá no fim ‘Cortina’. SERRA-MÃE - ‘Harpa’, ‘vida’, etc. - Os em que falo da Serra. Porei talvez ‘Céu’ e ‘Versos ao Mar’. Achas que sim? POEMAS DE AMOR - ‘Pequeno Amor’ (em 1º lugar), ‘A meus Irmãos’, do meu Amor, ‘Para que tu não chores’, ‘Crepuscular’. JESUS - ‘Ressurreição’, ‘Oração de todas as horas’, etc. APONTAMENTOS - ‘Versos da Menina Morta’ (1º), ‘Pasmo’, ‘Apontamento’, ‘Tradição’, ‘Paisagem’, etc. ÚLTIMO LIVRO - A começar, a ‘Elegia desta manhã’. Depois ‘Canção’, ‘Poesia’, ‘Excesso’, ‘Quem me quiser amar’, ‘As rosas’, etc. E quero fechar o livro com ‘Alegria’ e ‘Claridade’. Como se tivesse atingido aquele estado que procuro com a minha poesia.” A amiga responder-lhe-ia em 2 de Agosto, a partir de Peso (Melgaço), em tom fortemente exclamativo: “Viva o Poeta, o grande Poeta 1945! Serra-Mãe é um bocado de sonho, de altura, que vai enluarar os escaparates de Portugal neste inverno próximo futuro!”

A estrutura seguida na obra não foi aquela que o poeta anunciara à amiga, tendo a opção ficado decidida com a ordem “Serra-Mãe, Apontamentos, Jesus, Presença, Poemas de Amor e Último Livro”. O grupo “Presença” abre com o poema “Presença” e conclui com o poema “Cortina”; o poema “Vibração”, que só tem esse título nos manuscritos, foi escolhido para iniciar o volume, ficando conhecido pelo seu primeiro verso - “A corda tensa que eu sou”. No grupo “Poemas de Amor”, constam todos os poemas indicados, embora “Pequeno Amor” tenha tido o título alterado para “Pequeno Poema”. No grupo “Apontamentos”, não constaram os poemas “Tradição” nem “Paisagem” — “Tradição”, datado de Novembro de 1942, só foi divulgado postumamente em obras como O Desafio da Arrábida, organizada por Eduardo Carqueijeiro (edição do Parque Natural da Arrábida / Instituto de Conservação da Natureza, 1996, em artigo assinado por Joana Luísa da Gama), no jornal informativo Cidadãos pela Arrábida (Agosto.2000) e na antologia A Serra da Arrábida na Poesia Portuguesa, organizada por António Mateus Vilhena e Daniel Pires (Centro de Estudos Bocageanos, 2002); “Paisagem”, datado de 13 de Junho de 1944, também não entrou neste volume, só tendo sido divulgado aquando da publicação da poesia reunida de Sebastião da Gama no volume O Inquieto Verbo do Mar (Assírio & Alvim, 2024). No grupo “Último livro”, a alteração resultou de o poema “Excesso” ter passado para o conjunto “Poemas de Amor”.

Lembra Joana Luísa da Gama, no livro Estala de saudade o coração (2013), que, “durante o ano de 1945 é normal encontrar nas cartas o assunto Serra-Mãe. Ou é mais um poema que nasce, ou mais um conselho de um amigo. É o nervosismo de procurar editor”, depois de a publicação ter sido recusada pela Ática e pela Portugália, situação ultrapassada porque os pais lhe disponibilizaram os 4800$00 necessários para uma edição de mil exemplares. E continua Joana Luísa: “as cartas que se seguem são de loucura: as idas à tipografia a acompanhar a impressão das folhas do seu livro, a revisão de provas porque não tinha dinheiro para pagar a um revisor, etc.”

Finalmente, Serra-Mãe, chancelado pela Portugália Editora, apareceria na montra em 18 de Dezembro de 1945, dedicado “à memória de meu tio, Alexandre Cardoso”, tendo na capa uma vinheta concebida pelo artista Lino António (1898-1974), constituído por 62 poemas compostos em 1943 (4), 1944 (39) e 1945 (19), datando o mais antigo de 15 de Agosto de 1943 (“Céu”) e o mais recente de 21 de Agosto de 1945 (“A um crucifixo”). 

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1665, 2025-12-17, pg. 14.


domingo, 14 de dezembro de 2025

Arrábida “serra-mãe” há 80 anos (3)

 


Ao mesmo tempo que Sebastião da Gama partilhava a sua descoberta da Arrábida e a sua construção da “serra-mãe” com quem lhe era próximo, corria na sua imaginação o título do que viria a ser o seu primeiro livro — é de 1943 um caderno manuscrito, em cuja capa escreveu Serra-Mãi - Versos de Sebastião da Gama, datando a sua conclusão de 18 de Outubro desse ano. Constituído por 34 poemas, escritos entre 1942 e 1943, este conjunto viria a ficar de parte, pois nenhum deles integrou o livro Serra-Mãe publicado em 1945 — sete destes poemas viriam a ser publicados pelo autor na imprensa periódica (recurso que usou intensamente), em títulos como TurismoGazeta do SulJornal de Sintra e O Castelovidense; um integrou a obra póstuma Itinerário Paralelo (1967) e outro foi inserido no volume Cartas - I, que Joana Luísa da Gama organizou e publicou em 1994; os restantes só foram publicados no volume de poesia reunida O Inquieto Verbo do Mar, em 2024, ano do centenário do nascimento do poeta.

Existe um segundo conjunto de poemas sob o título Serra-Mãe integrando um dossiê de dactiloscritos, em cuja capa está registado Sebastião da Gama - Serra-Mãi - Cópia dos originais feita por Elisabeth Lindley Cintra (1942-1944). Sabendo-se da boa relação entre Sebastião da Gama e os irmãos Lindley Cintra — Luís Filipe (1925-1991), Elisabeth (1926-2019) e Graziela (1932-2006) —, não admira esta partilha de poemas, conferindo-lhes mesmo o estatuto de primeiros leitores. Este segundo conjunto não repete poemas do anterior, sendo constituído por 68 poemas, dos quais 37 vieram a integrar o livro Serra-Mãe (1945), 29 foram incluídos na obra póstuma Itinerário Paralelo (1967) e 2 ficaram inéditos.

Se pensarmos que Serra-Mãe é construído sobre 62 poemas, podemos considerar o trabalho de selecção e de organização que Sebastião da Gama exerceu na construção do seu primeiro livro, uma tarefa que ele próprio reconheceu e assumiu em diversas ocasiões, como ficou registado numa carta que dirigiu a Joana Luísa, em Setembro de 1944, ao dizer “Quando olho para a Serra-Mãe, vejo 75% do que lá está coisa reles; e até me dá vontade de a queimar. Preciso de chicotadas; de alguém, de um público”, ou, como confessou a Taborda de Vasconcelos, em carta de Dezembro de 1946, um ano depois de o livro ter sido publicado, quando este lhe pediu colaboração poética para o jornal Correio do Minho: “Não gosto de publicar demais. A não ser que escolha entre os 120 poemas que rejeitei para a elaboração da Serra-Mãi dois ou três menos detestáveis. Desde que levem a data, não me importo de publicá-los.”

Foi neste contexto de preparação do livro e de criteriosa escolha que Sebastião da Gama deu os seus originais a ler a vários amigos, depois de os ter partilhado com Joana Luísa — além de Luís Filipe Lindley Cintra, Matilde Rosa Araújo foi outra confidente da construção do livro, como podemos ler na carta que do Portinho da Arrábida lhe foi dirigida, em 25 de Julho de 1945, referindo-se à edição: “Falei já com o Cintra sobre a coisa e em Agosto vou ver o que poderei fazer: não sei ainda se o livro estará maduro; e vai custar-me a arrumação dos poemas. Manda-me dizer o teu conselho sempre bem-vindo.” O entusiasmo era crescente, pois havia já mesmo a promessa de uma editora — nessa mesma carta para Matilde Rosa Araújo, mas com a data de 23 de Julho, Sebastião da Gama explicava: “Ora escuta: ‘Portugália Editora’ prometeu-me publicar o meu livro. Estão aqui o Pedro de Andrade e a mulher, que são as pessoas mais amáveis deste mundo.”

A promessa parecia ser consistente, já que vinha de Pedro de Andrade, sócio e gerente da Portugália Editora, naquela altura em visita à Estalagem pertença dos pais de Sebastião da Gama, no Portinho. Do dia seguinte, 26 de Julho, é um curtíssimo poema intitulado “Instante”, mais parecendo um desabafo para uma página de diário: “’Mãe! / vou publicar o meu primeiro livro...’ // (A minha Mãe não chorou, / nem eu chorei, também.)”

O entusiasmo da promessa do editor esfriou dois meses depois, quando o poeta azeitonense recebeu uma carta de Pedro de Andrade, datada de 24 de Outubro, a contrariar a promessa feita: “Recebi o orçamento para o seu livro, que aqui junto. Depois de falar com os meus sócios sobre a possibilidade da edição, comunico-lhe com desgosto que, neste momento, à Portugália não interessam as publicações que não estejam integradas no nosso Plano. Temos o encargo de cerca de uma centena de originais por imprimir, e que já pagámos aos autores e tradutores, não sabendo ainda como lhes poderemos dar vazão. Como vê, o meu Amigo veio numa oportunidade de muitos trabalhos, que nem nos permite o prazer de lançar um jovem poeta e amigo, que nos merece toda a simpatia e apreço.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1660, 2025-12-10, pg. 10.


quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Arrábida “serra-mãe” há 80 anos (2)

 


A Arrábida representou para Sebastião da Gama o espaço de eleição e de descoberta, o tempo do encontro consigo e com o mundo, a motivação para a sentir poético. Data de 6 de Novembro de 1943 uma carta em que ele confidenciava a Joana Luísa: “No desenrolar da minha Poesia, cheguei à conclusão de que a missão do Poeta é, não só explicar aos outros a Grandeza da Criação Divina, mas tentar o aperfeiçoamento do Homem.” Os amigos que o acompanharam não esqueceram nunca essa busca que animava o jovem azeitonense — em 24 de Fevereiro de 1962, num texto sobre o amigo, Maria de Lourdes Belchior escrevia no Diário de Lisboa que “a sua vida recôndita, a que trazia nas entranhas da alma, enriqueceu-se e configurou-se nos contactos com a Serra-Mãe, nos longos silêncios de vagabundagem pelos caminhos da Arrábida” e, trinta anos depois, em Evocação de Sebastião da Gama (1993), David Mourão-Ferreira testemunhava que “na memória de alguns de nós, ei-lo ainda (...) aguardando-nos, à chegada da trôpega camioneta que nos tinha levado até Vila Nogueira de Azeitão, para logo a seguir nos arrastar a pé, serra acima, serra abaixo, por veredas de que só ele detinha o segredo, a fim de melhor nos fazer ver ou rever todos os recantos, todos os encantos da sua Arrábida.”

Esta ligação do poeta azeitonense à Serra, de que os amigos foram dando testemunho, exprimiu-a ele em muitas e variadas ocasiões. Em primeiro lugar, com Joana Luísa, a namorada, a quem dizia, em carta do início de Agosto de 1944: “A Arrábida ocupa, como sabes, um dos bocados deste meu coração enorme e bem repartido: dizia eu há dias a um amigo, em carta, que ela é para mim como que uma mulher; que é para mim uma presença humana; e tenho saudades dela, se longe, como de uma namorada.” No final do mês, em 29, reafirmava-lhe, em jeito de declaração de amor, em curta frase, plena de emoção: “Tu e a Serra, as minhas duas noivas.” E, no final desse ano, em Dezembro, relatava-lhe um passeio dado na praia do Portinho: “Fui quase até ao fim da praia. E a Serra era uma coisa que não podia dizer-se. Parecia coberta pela cinza, que o Sol aloirava, de um veludo azul. Projecção de mim, a Serra, naquela hora calma e feliz!... E com os olhos nela, cantei a ‘vida’, numa toada que inventei. Eu hoje, se tivesse um piano, tinha composto mais que qualquer Beethoven. Parece que só a música seria hoje expressão conveniente de mim.”

A consolidação desta construção poética em torno da Serra aconteceu sobretudo ao longo do ano de 1945 — foi em Junho que, em nova carta para a namorada descreveu o ambiente matinal que vivia na Arrábida: “A manhã está como um verso. Parece que, sempre que vou sair, a minha Serra — a minha Amante, e minha Mãe, e minha Irmã, e minha Senhora, se veste do mais bonito, arrulha mais com a boca do Vento e com a boca do Mar, para me deter ou para começarem ainda nela as minhas saudades.” E, no mês seguinte, em 23 de Julho, nova carta saía do Portinho, dirigida a Matilde Rosa Araújo (1921-2010), a contar o diálogo com a Serra: “Espero, no entanto, que este Luar magnífico (que eu te não conto por compaixão) me faça bem. Dá-me cabo dos nervos estar para aqui mudo, quando todas as coisas falam pelos cotovelos aqui na Serra.”

O ano de 1945 traria, contudo, uma contrariedade à vida da Arrábida: em Agosto, um incêndio castigou o Monte Abraão e parte da serra próximo do Convento. O poeta azeitonense sentiu a dor com muita violência, como se fica a saber pela carta que, em 26 de Agosto, dirigiu à amiga Maria de Jesus Barroso (1925-2015): “Estou-te escrevendo, com a alma cortada... Deves ter sabido do incêndio que anda a chagar a minha Serra — a minha outra Mãe. Cada queimadura ressente-se em mim. Se eu tivesse a lágrima pronta a todas as chamadas, ontem teria chorado (...). Agora tenho os braços arranhados, a roupa cheira a carvão, porque em vez de chorar peguei numa pá e durante duas horas e meia fui bombeiro. Espero que a Vida tenha dó da Serra e de mim — e faça rebentar de novo as matas. Mas até lá, estou como à cabeceira de um doente muito querido.”

O louvor poético da Arrábida, naquela que foi a primeira obra de Sebastião da Gama, estava para breve, uma forma de declarar tudo o que com a Serra aprendera, tudo o que com ela descobrira.

Foto: "Serra-Mãe" - pintura do grupo Synapsis, em Abril de 2016

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1656, 2025-12-03, pg. 10.