quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Quando o peregrino Laffi passou por Setúbal (2)

 


A primeira descrição que Domenico Laffi faz em terras portuguesas nesta Viagem de Pádua a Lisboa acontece em Serpa, onde “as casas são pequenas, isto é, baixas devido ao vento do oeste, e todas com chaminé, ou seja, lareira onde se acende o fogo, decerto a coisa mais bonita delas”, construções que se apresentam “rodeadas de grandes muros, muito altos” e “feitas de várias maneiras e de vária arquitectura, de modo que, de longe, são agradáveis à vista.” Em Alcácer do Sal, “bela vila banhada por um braço do oceano”, surpreendem-no as salinas e o embarque de géneros.

É também neste cais que toma lugar num barco para chegar, pelo meio-dia de 14 de Setembro de 1687, a Setúbal, que classifica como “cidade bonita, com o seu porto de mar muito mercantil e capaz de conter qualquer armada e navios de qualquer lotação”. Na apresentação que faz da urbe, refere a história de Tubal, “neto de Noé, que lhe deixou o seu nome”, mas o que mais o impressiona é o momento em que, no dia seguinte, assiste à ida do Santíssimo “a um enfermo com muita solenidade e cortejo de gente e uma grande quantidade de tochas” por ruas “bem limpas e enfeitadas”, cheias de “tapeçarias nas janelas e nas montras das lojas, coisa muito bonita de ver e que transmitia grande devoção.”

Ao longo do relato, há mais três referências a Setúbal: ao apresentar a história do início de Portugal, repete a explicação do primeiro habitante, Tubal (“o primeiro que habitou este reino foi Tubal, neto de Noé, que deixou o seu nome à cidade de Setúbal”); quanto aos portos, refere que Portugal “possui diversos portos excelentes: o primeiro é o de Setúbal, o outro é o da cidade do Porto, na foz do Douro, mas o mais famoso é o de Lisboa”; ao fazer o balanço sobre a importância das localidades do reino, regista que, “além das cidades episcopais, há terras notáveis, como Vila Viçosa, Almeirim e Salvaterra, Setúbal, cidade de Espanha célebre pelas suas salinas, Avis, Palmela, em que há os conventos magistrais da Ordem de Avis e da Ordem de Santiago.”

Mas Setúbal era apenas um ponto no itinerário de Domenico Laffi e do seu companheiro peregrino, pois o objectivo era chegar a Lisboa, sítio onde nasceu Santo António. Por isso, a viagem é retomada, com saída de Setúbal pela “porta oeste, ladeando um grande e comprido aqueduto de duas arcadas sobrepostas”, de onde subiu até Palmela, aí contemplando a vista sobre Setúbal e Lisboa e conhecendo “os conventos magistrais da Ordem de Santiago e da Ordem de Avis”, logo seguindo pela Moita, onde embarcou para chegar, “com a ajuda de Deus, à tão suspirada cidade de Lisboa a 16 de Setembro do ano 1687.”

Na capital do reino, onde ainda assistiu aos festejos do casamento de D. Pedro II com a princesa da Casa de Neuburgh, passará Laffi três dias, com intenso programa de visitas à cidade que considera “a oitava maravilha do mundo” e “rainha dos mares”: torre de Belém, igreja e convento dos padres Jerónimos, santuário Madre de Deus, Santa Engrácia, Rossio, igrejas de S. Roque e do Carmo, entre outros pontos. O que mais o comove é a visita à zona da Sé, à “devota igreja de Santo António dito de Pádua, que era cidadão de Lisboa”, construção realizada “a partir da casa paterna onde nasceu o santo”: “com a ajuda de Deus disse missa nesta igreja a 18 de Setembro, com grande felicidade minha (...). Quem entra nesta igreja entra numa espécie de paraíso, não só pela santidade e devoção que transmite, como também pela riqueza e beleza com que brilha.”

A descrição que Laffi faz de Lisboa, onde só esteve por três dias, revela-se interessante porquanto acaba por ser um retrato do espaço urbano que o terramoto de 1755 acabou por alterar profundamente. Em 19 de Setembro, a viagem recomeça, com a opção de seguir pela costa até ao Norte do país para daí chegar a Compostela. Pelo caminho, vão ficando os registos do convento alcobacense, do “sumptuosíssimo templo” da Batalha, de Leiria (situada em “fértil planície, rodeada de montanhas igualmente frutíferas”), de Coimbra (onde “todas as construções se apresentam, olhando para elas da parte oposta da ponte, como se estivessem umas em cima das outras”), Porto (onde teve de permanecer seis dias “por causa de umas fortes dores nas costas”, situação que o impediu de descrever a cidade com pormenor), Viana do Castelo (onde há “lindos chafarizes espalhados, cá e lá, pela cidade” e um “porto de mar lindíssimo”, apesar da chuva) e Caminha (onde se impressiona com a vista sobre o outro lado do rio Minho).

Nesta Viagem de Pádua a Lisboa, Laffi é um viajante culto, observador, crítico, com sensibilidade artística, atento ao mundo, merecendo bem as palavras de Feliciano Novoa Portela, que disse ser a sua obra a “de um verdadeiro ‘homo viator’, para quem a vida é uma contínua viagem para encontrar o enigma da existência, na busca de uma constante que explique o passado, o presente e também o futuro.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1438, pg. 2.


sábado, 14 de dezembro de 2024

Quando o peregrino Laffi passou por Setúbal (1)

 


Por meados de Setembro de 1687, no dia 14, dois religiosos italianos, peregrinos e viajantes, passavam em Setúbal — eram eles o padre Domenico Laffi e o frade Giuseppe Liparini, vindos desde Bolonha, de onde tinham partido em 24 de Maio desse ano. Dessa passagem ficou registo no livro de Laffi intitulado Dalla tomba alla culla è um lungo passo: Viaggio di Padova ove morse il glorioso S. Antonio a Lisbona ove nacque, que teve primeira publicação em 1691, em Bolonha, e cujo itinerário português foi editado em 1988 pela Università degli Studi di Perugia, em trabalho a cargo de Brunello De Cusatis. Uma década depois, em Portugal, surgia a obra O Portugal de Seiscentos na ‘Viagem de Pádua a Lisboa’ de Domenico Laffi, estudo crítico também assinado por De Cusatis (Editorial Presença, 1998), incluindo o capítulo de Laffi dedicado a Portugal.

Sobre a biografia de Laffi, o autor do relato, pouco se sabe, não se ignorando, contudo, o rol bibliográfico que assinou e teve ampla repercussão (textos teatrais e narrativas de viagem — a Compostela, a Lisboa e à Terra Santa). Nascido em 3 de Agosto de 1636 em Vedegheto di Savigno, foi para Bolonha ainda na infância. Em 1666, quando já era sacerdote, fez a sua primeira peregrinação a Compostela, local que visitou várias vezes — em 1670, aquando da segunda viagem, redigiu a obra Viaggio in Ponente a San Giacomo di Galitia e Finisterre per Francia e Spagna, publicada em Itália em 1673, título que teve reedições em 1676 e em 1681 e graças ao qual Laffi é considerado pela Xacopedia “um dos peregrinos mais importantes da história de Santiago por ser autor do relato de peregrinação de maior significado e relevância conhecido até agora”.

A vinda a Portugal acontece pela razão que o título da obra sobre essa viagem indica — peregrinação a partir de Pádua, onde está sepultado Santo António, para chegar ao local do seu nascimento, Lisboa, percurso justificado com a transcrição da frase “dalla tumba alla culla è um lungo passo” (“do túmulo ao berço é um longo passo”), aforismo que resulta de adaptação do último verso de um soneto do pós-renascentista Giambattista Marino, nas suas Rime (1602), ao afirmar que “da la cuna a la tomba è um breve passo” (“do berço ao túmulo é um pequeno passo”).

A entrada de Laffi em Portugal aconteceu nesse Setembro de 1687, em dia não indicado, na zona de Aldeia Nova de São Bento, num trajecto que passou por Serpa, Cuba, Torrão e Alcácer do Sal, até chegar a Setúbal (no dia 14); a viagem prosseguiu por Palmela e Moita, com paragem em Lisboa dois dias depois; a 19, a partida leva os viajantes por Loures, Torres Vedras, Caldas da Rainha, Alcobaça, Leiria, Coimbra, Porto, Viana do Castelo e Caminha, para posterior entrada na Galiza, rumando a Compostela, onde chegaram a 15 de Outubro. Logo no início da obra, é justificada a narrativa: “Eu, para satisfazer as curiosidades discretas e indiscretas de todos, direi, com mera verdade, ter feito esta viagem, não sei se impelido mais por natural propensão, por talento sujeitado à curiosidade de ver coisas novas, ou por espírito de piedade para o glorioso Santo António de Pádua. Fui àquela cidade para adorar, naquelas sacras cinzas, vivas sementes de eternidade, e recolher copiosa messe de graças.” Quanto à decisão de passar a escrito o visto e vivido, explica: “senti-me na obrigação de fazer um sucinto relato para dar prazer a quem goza deste tipo de leitura, como também para agradar a quem se sinta movido, por devoção, a fazer peregrinação semelhante. Isso fiz com o estilo que me pareceu mais adequado para uma simples narração.” O relato que o leitor tem ao seu alcance está eivado de informações que Laffi recolheu nas leituras sobre o país e fortemente alicerçado naquilo que testemunhou, aspectos que, na edição portuguesa referida, merecem adequadas notas de contextualização por De Cusatis.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: 2024-12-11, pg. 10.

 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Contributo de Daniel Pires para a bibliografia setubalense (3)

 


Para a bibliografia setubalense, o contributo de Daniel Pires tem sido eloquente também quando se fala do ambiente social e cultural do século XVIII, tempo que fez Bocage. É assim que se valoriza uma obra como Setúbal, Palmela e Azeitão Vistas por Estrangeiros, de 2012, recolhendo testemunhos de oito autores que olharam Setúbal entre 1766 e 1800, destacando nesta antologia o olhar da diversidade e o cosmopolitismo e não escondendo o preconceito ou a isenção presentes nas várias abordagens. Outros dois títulos relacionados com a época são Padre Gabriel Malagrida: O Último Condenado ao Fogo da Inquisição, de 2012, e O Marquês de Pombal, o Terramoto de 1755 em Setúbal e o Padre Malagrida, de 2013, duas peças importantes pela quantidade de documentos que são postos a descoberto ou relembrados, numa transcrição encaixada na narrativa resultante da pesquisa, fundamentais para se perceber o ambiente cultural da época, a acção dos jesuítas em Setúbal, as rivalidades entre a política e a religião, o papel desempenhado pela liberdade de opinião ou pela sua falta, o retrato que de Setúbal ficou após o terramoto.

Outras duas figuras sadinas mereceram a atenção de Daniel Pires num trabalho que não pode ser esquecido: Paulino de Oliveira e António Maria Eusébio, o poeta popular “Calafate”. Do primeiro, fez Daniel Pires ressurgir o livro autobiográfico Em Ferros d’El-Rei (2012), com um prefácio que valoriza a prática da cidadania e destaca a acção do autor como jornalista, poeta, pedagogo, republicano e divulgador da cultura portuguesa, considerando ser esta “uma das obras mais emblemáticas de Paulino de Oliveira, não obstante ser uma das menos conhecidas”. Quanto ao segundo, o poeta popular setubalense, Daniel Pires foi responsável, com Ana Margarida Chora, em 2020, pela edição da obra António Maria Eusébio, o Calafate - Uma Evocação, título que reúne textos da homenagem que Setúbal lhe fez em 1902 (em cuja organização estiveram Ana de Castro Osório, Paulino de Oliveira e Henrique das Neves), parte significativa dos testemunhos que Henrique das Neves coligiu numa obra antológica publicada em 1908 e alguns contributos mais recentes para o conhecimento da importância da obra deste poeta.

A história do jornalismo setubalense passa também pelo trabalho de Daniel Pires, facto interessante porquanto o jornalismo tem constituído para si fonte de informação e objecto de estudo. Se, em 1986, na sua obra Dicionário das Revistas Literárias Portuguesas do Século XX, na longa lista de entradas aparecem três títulos setubalenses, já no Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX, editado entre 1996 e 2000, o número de entradas sobe para 26, num trabalho repleto de dificuldades por não existirem colecções completas dos títulos, mas que prova a importância da imprensa periódica nos domínios da polémica, da afirmação de movimentos culturais, da liberdade de opinião e da ligação à sociedade e dá a conhecer as figuras agentes da intervenção nestas áreas ao nível local e nacional.

As obras com que Daniel Pires nos tem presenteado ou que nos tem revelado, “remos para guiar a jangada” (lembrando Tolentino Mendonça) ou testemunhos que provam “a aventura do homem” (recorrendo a Serafim Ferreira), possuem também marcas de uma forma de estar e de olhar o mundo, conseguindo-se perceber a indignação perante as atitudes despóticas, o desrespeito relativamente à memória, a crueldade na recusa dos direitos inalienáveis, os jogos de poder que juntam intenções ardilosas, como se entende a simpatia por uma forma de estar próxima da intervenção em benefício da sociedade e das manifestações culturais, pelo ideal republicano, pelos princípios éticos e pelos direitos humanos. Naturalmente, são contributos importantes para uma bibliografia setubalense, ainda mais relevantes quando o leitor se confronta, no final de cada uma delas, com referências bibliográficas exaustivas e rigorosas e, muitas vezes, com indicação dos locais onde as obras podem ser encontradas, num trabalho que é importante para o presente, mas que também garante que a jangada do conhecimento e da identidade possa vogar no futuro...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1427, 2024-12-04, pg. 8.


segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Contributo de Daniel Pires para a bibliografia setubalense (2)

 


As imagens da região de Setúbal vindas através da poesia tinham já ocupado Daniel Pires em 2001, quando uma equipa que integrou também Fernando Marcos e António Quaresma Rosa organizou a exposição Setúbal - Terra de Poetas e Cantadores, reunindo uma centena de autores e 349 títulos, recenseados em catálogo, em cuja introdução se insistia na “dinamização cultural da cidade de Setúbal e reconstituição da sua memória”, surgida de “investigação aturada” que pretendia uma “perspectiva diacrónica da poesia de matriz setubalense”, coligindo os nomes conhecidos e “os populares e os menos consagrados”. Assim se originava uma obra que, mais do que uma lista, se transformou num elemento de estudo, fornecendo pequena antologia e notas biográficas sobre os autores, atitude que visava a luta contra a efemeridade das exposições, “fazendo a ponte com os investigadores vindouros que pretendam conhecer a identidade cultural da cidade”, afinal uma obra para poder ser uma referência de estudo e de conhecimento.

A criação do Centro de Estudos Bocageanos (CEB) em 1999 surgiu de uma intervenção de Daniel Pires no Forum “Pensar Setúbal”, realizado no mês de Maio desse ano, em que defendeu a criação de um centro de estudos e de informação sobre o vate sadino, com a preocupação de o âmbito de estudos ser alargado a outras temáticas locais. A ideia conseguiu agregar cerca de 80 pessoas, que foram os sócios fundadores do CEB, e, nos estatutos, publicados em 1 de Outubro seguinte, eram claras as intenções: divulgar a obra e a personalidade de Bocage, “fazer o enquadramento dos escritores locais e nacionais e dinamizar culturalmente a cidade de Setúbal”. Cerca de um mês e meio depois, em 22 de Dezembro (no dia a seguir ao que marca o falecimento de Bocage), o jornal O Setubalense incluía o primeiro número do que foi a “Página Cultural” do CEB, assinando Daniel Pires um texto que revelava uma antiga e rara tradução italiana de um poema bocagiano. A “Página Cultural”, de publicação mensal, prolongou-se até ao número 155, saído em 29 de Abril de 2013, sempre com uma abordagem de assuntos de interesse local e regional, por onde passaram investigadores, escolas e criadores artísticos, numa pluralidade de saberes. Daniel Pires, além de ter sido seu co-coordenador durante uma temporada, aí fez ampla divulgação de textos esquecidos e publicou ensaios relacionados com figuras locais (como Bocage, o poeta popular Calafate e o historiador João Carlos de Almeida Carvalho), com a implantação do regime republicano e suas marcas em Setúbal ou com histórias da educação, entre outros temas, chegando a defender que o CEB deveria ser o motor da constituição de uma Biblioteca de Fundo Local com vista ao “estudo do património cultural da cidade”.

Nesta missão divulgadora, Bocage tem sido, sem dúvida, a figura mais tratada por Daniel Pires, estudo em que nunca esquece a contextualização de Setúbal à época da juventude do poeta, seja colhendo elementos descritivos, seja pela demanda de iconografia sua contemporânea, reveladora do que eram o espaço e a vida sadinos, como se pode ver, por exemplo, nesse repositório de imagens que é a obra Bocage - A Imagem e o Verbo, editado em 2015. Outros contributos como a colecção de postais Bocage na Prisão, de 1999, o baralho de cartas designado Bocage e a sua Época, de 2005 (em colaboração com Manuel de Vilhena), ou a reedição das Fábulas de Bocage, em 2000 (a partir da edição de 1905), mantendo o mesmo espírito de ligação do poeta à região, apresentam também objectivos de divulgação junto do grande público, particularmente em idade escolar, visando o desfazer de imagens fáceis construídas em torno do poeta, como a do herói das anedotas, e dando-lhe a visibilidade merecida como actor de uma época ideologicamente conturbada.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1422, 2024-11-27, p. 10