quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Arrábida e imagens da sua espiritualidade (2)

 


Em A Espiritualidade da Arrábida, as tentativas de partilhar o que a Serra sugere oscilam entre a impossibilidade da precisão descritiva — “espaço que flutua acima de todas as tentativas de o adjectivar”, escreve Salvador Peres — e esse desafio da descoberta que põe à prova e sugere outros esforços — “subir à Arrábida significa uma oportunidade para contemplar a Esperança e dinamizar a Fé e o Amor”, defende Hermínio Araújo. A aceitação deste desafio causado pelo impacto da Serra é um jogo permanente, assente sobre a simbologia que a ampara e sobre o mistério que a adorna, como descobre Casimiro Henriques: “Tu és a serra e a Serra és tu, ali perdido diante de um mundo que não consegues criar pelo teu poder.” Ou, como diria o poeta que escreveu o seu primeiro poema sobre a beleza da Arrábida aos 15 anos, Sebastião da Gama, numa recomendação ao passeante: “Vá sozinho, suba ao Convento, que é onde o espírito da Serra converge e como que ganha forma. Leve, se quiser, os versos de Agostinho e experimente como afinal é fácil estar a sós com Deus. (...) O Céu fica-lhe perto.” Uma forma de juntar o criador e a criatura, afinal... que perpassa pela descoberta da grandiosidade das coisas simples captada por Carlos Vale Rego, pelo confronto com a insuficiência da palavra para dizer a magia da terra assinalado por José-António Chocolate, pela contemplação que se exprime em oração na voz de Lourenço de Morais, pelo afago introspectivo da mãe-serra enaltecido por Isabel Melo, pela proximidade do historial franciscano trazido por Helena Mattos, pela centralidade que este espaço envolve lembrada por Joaquina Soares, pelo efeito transformador e interpelativo registado por Ruy Ventura...

As fotografias chamadas para este livro, resultantes de olhares, de momentos e de descobertas, corroboram essa onda de mistério em torno da paisagem, intensificada pela impressão digital da Natureza, pelos ângulos de visão pessoais, pela recusa do cenário imediato, pelas tonalidades em diversos graus das mesmas cores ou pela imponência do preto e branco, pela vastidão sugerida, pela luminosidade a favorecer o pormenor, pelo jogo entre luz e sombra, pela pluralidade de motivos, todas rendidas ao que mostram e rendilhadas com legendas sugestivas, por onde perpassam emoções pessoais, deslumbramentos, recriações de sentido, tudo em favor de uma arte poética da imagem, haja em vista títulos como “Escondido, mas visível”, de Nazar Kruk, “Porto seguro”, de João Completo, “In-Quietude”, de Carlos Medeiros, “Flor do cardo que eu guardo”, de José Alex Gandum, “Que serra é esta, que comigo fala e me sente?”, de Alberto Pereira, “Arrábida tranquila”, de José Canelas, “A alma do lugar”, de Carlos Sargedas, “O teu adormecer”, de António Alves da Costa, ficando apenas por intitular o surpreendente dourado sobre a serra do Risco, de João Moura.

Nos olhares fotográficos, há um outro grupo de leitura mais imediata, registo de momentos festivos e religiosos captados pelas lentes de Américo Ribeiro e de José António Carvalho, marcas de tempos diferentes neste “romariar e rezar” (como refere Luís Marques no ensaio já mencionado) em que a religiosidade popular surge aliada à Natureza.

Retratos escritos ou fotográficos, a verdade é que por todos os registos deste livro perpassam partes de um texto maior, uno, deixando adivinhar que a Arrábida impressiona sempre por aquilo que não somos capazes de dizer porque o silêncio se nos impõe para que ouçamos o concerto da cor com o restolhar segredado pelas veias da Serra. Assim percebemos que a reinvenção, a reconstrução ou a abordagem iniciática do ser da Serra serão sempre complexas, difíceis e angustiantes, na medida em que nenhuma das representações será suficientemente totalizadora de forma a desocultar o seu mistério.

É Viriato Soromenho-Marques quem assina o derradeiro texto, em tom posfacial, recapitulando momentos históricos em torno da “presença cultural e simbólica na nossa consciência” da Arrábida, lembrando as perspectivas científica, ecológica (mesmo ecocrítica) e literária e afirmando-a como uma “causa colectiva”. A motivação criada pela Arrábida a todos quantos a visitam ou aos que nela vivem mostra que ninguém fica insensível perante o que vê ou o que sente — há os textos que tentam guardar os sentimentos, há as memórias que afagam a distância do tempo, há os desenhos que são geradores de uma reconstrução, há as fotografias que se apresentam com uma mensagem muito mais intensa do que o registo lacónico de se ter estado ali... tudo porque, como Soromenho-Marques refere, “o que importa colocar em relevo é o permanente convite da Arrábida para a meditação e a viagem interior”, elementos estruturantes para aquilo que, a fechar o seu texto, defende: “A verdadeira força da espiritualidade é aquela que se funde na celebração da existência.” E a Arrábida deve ser celebração, sempre! Porque, como dizia a personagem de Agustina Bessa-Luís, “parece que o mundo foi criado daqui!”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1417, 2024-11-20, pg. 9.


Arrábida e imagens da sua espiritualidade (1)

 


Quando abriu a janela e olhou para o exterior, a personagem só pôde exclamar: “Parece que o mundo foi criado daqui!” Este momento é relatado no romance As Terras do Risco, de Agustina Bessa-Luís, publicado em 1994 (Guimarães Editores). A frase, que exprime o maravilhamento de quem a diz, no momento em que olha a Arrábida, remete-nos para a expressão do sublime, algo impossível de ser descrito, por muitas tintas que se ensaiem, por muitas frases que se recomponham, por muitos ângulos que os olhares procurem, por muitas combinações em que os sons se concertem. 

Conseguir contar a beleza seria igualá-la, operação impossível porque o belo é único, irrepetível, envolvendo uma aguarela de mistério, uma linha de sentido que a Arrábida, esse espaço que corre desde a Comenda até ao Cabo Espichel, sempre tem albergado e suscitado. Com razão escrevia Luís Marques em 1990, no seu estudo intitulado Arrábida e a sua Religiosidade Popular (Assírio & Alvim): “A essência da serra continua a sobrepor-se a todas as obras e transformações já realizadas. Um espelho disso, que chegou aos nossos dias, verifica-se (...) na interpretação que dela fazem, designadamente, os amantes da natureza, os poetas, os religiosos e os investigadores. (...) Hoje, como ontem, apenas os que se deixam penetrar pela serenidade da sua paisagem ou pela sua sacralidade conseguem encontrar a imutabilidade e intangibilidade que a serra permanentemente desencadeia.”

Servem estas duas referências — da ficção, através de Agustina Bessa-Luís, e do ensaio, por intermédio de Luís Marques — para chegarmos à obra A Espiritualidade da Arrábida, iniciativa louvável do Grupo dos Amigos da Paróquia de S. Sebastião, acabada de publicar, que reúne duas dúzias de olhares contemporâneos sobre a Serra, distribuídos pela escrita e pela imagem em partes iguais, associando-se ainda a expressividade dos dois nomes indiscutivelmente mais arrábidos, pelo contributo inegável que deram para a integração desta Serra na tradição literário-cultural portuguesa: Frei Agostinho da Cruz, religioso e poeta, que neste espaço viveu os seus últimos quinze anos no século XVII, e Sebastião da Gama, poeta e professor, que também aqui se acolheu e construiu o seu poemário em torno da simbologia da Serra, na década de 1940. 

A emergência desta obra pode ser vista a partir do que António Melo, um dos obreiros deste projecto, regista no texto de apresentação: “Este livro pretende ser uma prova de admiração pela Beleza e Espiritualidade da Arrábida e por todos os que a conseguem preservar na sua imortalidade.” Trata-se de um propósito forte, porque reflecte um sentimento do presente, num contínuo espanto perante o sublime, e, simultaneamente, homenageia a múltipla partilha que gerações nos têm transmitido neste caminho que tem sido o descortinar as linhas de sentido associadas à geografia social, cultural e natural da Serra, a que, metaforicamente, na obra Terral, o poeta Miguel de Castro chamou “varanda de ver o mar” (Edições Estuário, 1990). A importância desta obra é assinalada também no prefácio que D. Américo de Aguiar subscreve, um pouco em tom confessional, pondo-se à prova e testemunhando a sua descoberta: “Não estava prevenido para o impacto da beleza do mar e da serra. Sempre viajei muito do Norte ao Sul da nossa terra, na maior parte das vezes pelo cinzento monótono das auto-estradas. (...) A serra da Arrábida pede-nos silêncio e alguma solidão. É um convite renovado ao subir da montanha.” A recomendação é um desafio, exactamente o mesmo que se pôs ao frade franciscano Agostinho da Cruz, que lhe permitiu registar a beleza da experiência numa exclamação elegíaca — “Ó Serra das estrelas tão vizinha, / Quem nunca de ti, Serra, se apartara!” São, aliás, estes dois versos que fecham o percurso sugerido pela organização textual deste livro, que contraria a progressão cronológica, partindo das reflexões contemporâneas para recuar até ao século XVII.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º1416, 2024-11-19, pg. 7.


quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Contributo de Daniel Pires para a bibliografia setubalense (1)



Começarei por duas citações, uma de um poeta, outra de um editor, ambas de quem escreve e vive os livros — a primeira, de José Tolentino Mendonça, que nos lembra que “em tantos momentos da história, os livros foram (e são!) remos para guiar a jangada”; a segunda, de Serafim Ferreira, a considerar que “o livro será o melhor instrumento para decifrar todos os códigos e desvendar os paraísos artificiais (ou não) que pela eternidade hão de alimentar a aventura do homem”.

A razão destas escolhas cruza-se com o papel que Daniel Pires tem tido no enriquecimento do que podemos chamar uma bibliografia setubalense, não só pelo contributo que tem trazido desde há muitos anos para os estudos bocagianos —editando a obra de Bocage (nas Edições Caixotim, entre 2004 e 2007, e na Imprensa Nacional, entre 2017 e 2018) ou contribuindo para o seu estudo (Bocage e o Livro na Época do Iluminismo e Bocage - A Imagem e o Verbo, ambos de 2015, Bocage ou o Elogio da Inquietude, de 2019, O Essencial sobre Manuel Maria Barbosa du Bocage, de 2023, além de outras obras em que colaborou), títulos necessariamente relacionados com Setúbal, quer pelas circunstâncias biográficas, quer por algumas alusões, ainda que escassas, de Bocage à sua região de origem —, mas também pelo que tem posto a descoberto no domínio do conhecimento sobre Setúbal, fazendo ressurgir textos do pó dos tempos e construindo outros a partir das suas investigações e demandas por arquivos e bibliotecas várias, todos eles iluminando o que tem sido a aventura da identidade na região dominada pela Arrábida.

E será justamente pela serra que entramos, uma vez que, como tema, ela consta já na tradição literária portuguesa, desde, pelo menos, o século XVI. Durante muito tempo, referências literárias da Arrábida foram dominadas por uns poucos nomes, a começar em Frei Agostinho da Cruz, passando por Alexandre Herculano e desaguando em Sebastião da Gama. No entanto, a persistência de Daniel Pires e de António Mateus Vilhena possibilitaram ao leitor a pluralidade dos muitos olhares que sobre a Arrábida têm surgido na literatura lusa, desde que, em 2002, publicaram a obra A Serra da Arrábida na Literatura Portuguesa. Se, nessa edição, nos mostraram cerca de meia centena de poetas que versejaram sobre a serra que Pascoaes confessou ser o verdadeiro “altar da Saudade”, como nos contou Sebastião da Gama depois da visita que lhe fez em Setembro de 1951, quando saiu a segunda edição, em 2014, o número de autores subia já para cerca de oito dezenas, com textos escritos num período temporal entre o século XVI e 2014, valendo a pena atentar na justificação que os antologistas apresentam nos prefácios de ambas as edições: a pretensão foi a de “dedicar especial atenção ao património cultural da cidade de Setúbal, contribuindo, desta forma, para a sua valorização e para a preservação de uma memória que faz parte integrante da nossa identidade”, tarefa resultante de investigação “metódica em vários arquivos e bibliotecas nacionais”, partilhando textos que estavam “dispersos por livros ou periódicos de muito difícil acesso”, assim contrariando “a impossibilidade da sua fruição pela maioria das pessoas”.

No mesmo ano de 2014, os dois investigadores avançaram também na publicação da obra Descrição da Arrábida, a partir de manuscrito guardado na Biblioteca Nacional, contendo o texto do franciscano madeirense Inácio Monteiro, assim pondo a descoberto uma obra de referência no domínio da literatura de viagens em Portugal, simultaneamente um bom exemplo da “estética literária barroca”, que descreve “a paisagem envolvente” e os dois conventos arrábidos, dá “informações relevantes no domínio arquitectónico” e apresenta “ampla visão da natureza em estado puro e uma panorâmica de resultado da acção humana sobre ela exercida.” Este trabalho, construído no confronto de dois manuscritos e de uma versão publicada no jornal O Azeitonense (em 1920), trouxe ainda luz sobre o seu autor, que, até esta edição, se supunha ser um jesuíta oriundo do Norte do país, com vida feita em Roma e falecido em Ferrara...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1412, 2024-11-13, pg. 10.

 

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Ana Mata: inscrever Florença pelo olhar



“Fui com o objectivo preciso de me ir espantar. Fui seguindo a ideia de passear o mutismo, nesse princípio de desejo de ser olhar aberto e recepção. (...) Fui anónima: tanto para atravessar a cidade, como para ser atravessada.” Assim descreve os seus sentimentos a setubalense Ana Mata (n. 1980), no momento que antecede a narração dos dias passados no visitado paraíso da arte, itinerário contado em Carta de Florença (Sr Teste Edições, 2024).

Ainda que o título nos remeta para o estilo epistolográfico, a verdade é que nesta obra se mesclam também registos diarísticos e de memória, com a reprodução de duas dezenas de águas-fortes com tinta sanguínea, gravuras a partir de peças vistas nas mostras que o espaço florentino permitiu. A intenção deste registo, em que se misturam o tom autobiográfico e a faceta ensaística, surge logo no início, sublinhada em três aspectos: “Esta escrita serviu o sentimento de aventura íntima, a que não desmaiasse no caos, a minha permanência na experiência.” Descoberta e continuidade na memória são, pois, dois tons fortes nesta visitação (no que esta palavra sugere de curiosidade e de abertura) realizada em Março de 2023, afigurando-se o registo escrito como a forma de albergar o que poderia ser a “síndrome de Florença”, caracterizada pela comoção perante o fascínio da arte.

A viagem foi preparada — “Comecei, antes de ir, a viagem a Florença”, escreve Ana Mata logo no início da narração para dar conta de que se deixou povoar pelas imagens antecipadamente recebidas, impressão forte que impregnou a necessidade de ir “à presença”. Como antecedentes da partida, a recomendação de amigos associou-se a leituras de outras experiências do mesmo itinerário legadas por relatos de Stendhal e de Rilke ou por um poema de Bernardo Pinto de Almeida, de maneira que melhor se cumprisse a intenção da viagem.

Perante as obras vistas, foi forte a impressão sentida pela figura humana, pela elegância dos gestos nos quadros, pela expressão de dor, pela força dos pormenores. Deslumbramento e comoção não faltam neste relato intenso, como no momento em que se fala dos quadros de Fra Angelico, vistos no Museu de S. Marcos: “Há pinturas pequenas e tão delicadas que me parecem terem sido pintadas num estado de oração íntima”. O cerne do sentimento perante estas telas cola-se às raízes de quem contempla: “Estou grata pela religiosidade que me deram em criança, mesmo se já não cumpro os ritos ou se procuro outros lugares de infinito. Se tivesse uma repulsa pelo religioso, pelas histórias de Cristo, de Maria, dos anjos, não veria estas obras da mesma maneira, tendo então um filtro que creio que bloquearia o seu sentimento profundo.”

Todo o livro de Ana Mata é uma tentativa para que se cumpra o que revela quase no final — “Agora quero que Florença permaneça.” A reflexão surge a bordo do avião, em regresso a Lisboa. “Que fica deste convívio imenso com estas obras feitas por uma humanidade grandiosa, magnífica, que aponta para o alto? Que fica também desta lição de humildade? Andei de corações nos olhos, com esse filtro apaixonado que tanto activou a hemoglobina nas minhas sanguíneas.” E, como conclusão: “Agora, os nomes dos lugares do mapa já não me são abstractos. Florença inscreveu-se.” Uma “inscrição” a tal ponto forte que as sanguíneas a partir de Botticelli, Caravaggio, Tiziano, Memling, Fra Angelico e outros têm de fazer parte do livro, uma forma de apropriação a cargo da visitante.

Partilhar a arte vista em Florença neste livro é um pouco como admirar a cidade banhada pelo Arno, atravessado por pontes, a partir da praça Miguel Ângelo, um misto de distância e de impossibilidade de tudo apreender ou uma relação de sedução. Nesta cidade da Toscana, também Ruben A. (1920-1975) sentiu o fascínio, relatado em Páginas - III (1956): “Florença tem coisas demais e é como uma mulher possessiva que tem sempre qualquer pormenor ainda não visto — sair de Florença é sentir o mesmo alívio de liberdade em semelhança a férias conjugais. Na nossa vida há momentos só nossos tão intimamente nossos que ninguém pode tentar sequer incluir-se.” A metáfora é forte, revelando a vontade de continuar a descobrir o espírito da cidade, o de olhar a arte, nela se inscrevendo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1407, 2024-11-06, pg. 10.