Momento importante, para quem foi um estudioso e conhecedor da cultura clássica e da cultura portuguesa como Camões, foi a publicação da sua obra magna, o poema épico com que quis celebrar Portugal e que não teve, logo no início, os mecenas que pareciam inequívocos, a começar pela rejeição de apoio por parte do neto de Vasco da Gama. No entanto, se esta porta se fechou, outra se abriu, pela mão de D. Manuel de Portugal, que ajudou a resolver o problema económico da impressão e auxiliou na obtenção das autorizações necessárias para a publicação — o momento da narração é interessante porque, neste Fortuna, Caso, Tempo e Sorte, que biografa Camões, Isabel Rio Novo leva o leitor a acompanhar a primeira leitura da obra por este mecenas, em manuscrito, apresentando um resumo do que se relata n’ Os Lusíadas e os pontos que poderiam ser mais discutíveis para a aprovação da mesma, assim chamando também a atenção para o tom crítico que Camões não desprezou na sua obra.
Fica o leitor com a sensação da epopeia que foi publicar este poema, história que tem de passar pela recusa da imagem romântica que se construiu de Camões a ler o poema perante o rei D. Sebastião, apesar de parecer não haver dúvidas de que o rei conheceria o conteúdo da obra...
Publicar este escrito era objectivo persistente do seu autor desde os tempos da Índia (o retrato de Camões na prisão de Goa mostra-o a redigir o canto X da epopeia) e mais insistentemente desde que, por 1570, regressara a Lisboa. O final do percurso de dificuldades pinta-o Isabel Rio Novo com as cores do entusiasmo, mais uma vez recorrendo à conivência do leitor e à imaginação (e vale a pena registar esse parágrafo capital): “É bastante plausível que a data da publicação corresponda ao dia a partir do qual a tença começou a ser paga: 12 de março de 1572. Nessa manhã que, por pura imaginação, pinto como uma daquelas manhãs de primavera lisboetas, luminosas e ensolaradas, começava a escrever-se uma história que extravasa o âmbito da vida do seu criador e cujas peripécias só parcialmente cabem nesta biografia. A emoção de um autor ao segurar nas mãos o primeiro exemplar do seu primeiro livro há de ter sido a mesma há cinco séculos. Em 1572, Camões tinha 47 ou 48 anos. Não era um velho, apesar de a idade ter outro peso naqueles tempos. Mas era um homem envelhecido, doente, amargurado, a quem o futuro já fugia. No entanto, nessa manhã de março (cheia de sol, claro que sim) talvez tenha encarado a vida que lhe restava com algum otimismo.”
A biografia com que Isabel Rio Novo brinda este quinto centenário do nascimento de Camões torna-se uma obra de leitura cativante, num relato onde nem falta o porquê da escolha da capa, primeiro passo para a identificação do protagonista — dominada pelo retrato que do poeta fez Fernão Gomes, tal como pelo outro que retratou o poeta na prisão (“os dois únicos retratos feitos em vida do Poeta”), a autora descreve a personagem nos seus traços físicos quase a fechar a obra e valoriza o contributo trazido por esta representação iconográfica, que, maltratada pelo tempo, está rasgada e tem as duas partes coladas por tiras de papel: “Incapaz de fixar Luís de Camões num retrato, muito menos de propor um ao leitor, à medida que escrevi este livro, fui sempre regressando à sanguínea de Fernão Gomes e à lembrança daquelas três tiras de papel, quase sempre apagadas nas imagens que o reproduzem. Algumas vezes tive a sensação de que as segurava com os próprios dedos. Camões teve um rosto. Aquele que está reproduzido na capa deste livro não andará longe do que foi o seu.”
Um retrato humano de Camões emerge desta biografia (concluída com cerca de 1400 notas e quase 40 páginas de referências bibliográficas, que permitem ao leitor fazer um pouco do caminho da investigação e da discussão sobre as pistas que cada biógrafo seguiu). Nela se segue um percurso em que a dificuldade é uma constante — resultante da pouca informação comprovada sobre o poeta, mas, sobretudo, consequência do que foi a própria vida da personagem. Mas não é apenas isso: fica-nos também a glória de um Camões que lutou por uma obra que conseguiu impor-se e que, indiscutivelmente, se tornou numa das referências da nossa identidade.
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1368, 2024-09-11, pg. 9.
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