quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Raul Reis e um livro cheio de garrafas

 

            

A garrafa é objecto que, normalmente, interessa pelo seu conteúdo, servindo, por essa razão, para a construção metonímica apenas quando está cheia - em primeiro lugar, com um qualquer líquido; depois, com aquilo que lá se queira meter, destacando-se, nesta última hipótese, a possibilidade de guardar segredos ou mensagens, recurso que deu já origem a muitas histórias de aventuras e a textos literários, haja em vista, por exemplo, obras de Daniel Filipe (1925-1964) ou de Alexandre Honrado (n. 1960) que trouxeram este objecto para título de narrativas.

Raul Reis (n. 1974), designer setubalense, resolveu encher um livro com fotografias de garrafas oriundas de uma centena de marcas portuguesas de refrigerantes e de águas, quase à dimensão real, que circularam entre as décadas de 1920 e de 1990, todas da era em que o material utilizado para as produzir era o vidro e a indicação das marcas era gravada por serigrafia (impressão directa sobre vidro).

“Um livro cheio de garrafas vazias”, assim explica o subtítulo de Vasilhame (No Frame Publishing, 2023), a prestar “tributo ao design gráfico de rótulos” e a carregar também a marca das recordações e de uma certa nostalgia.

Olhamos estas fotografias, a que são acrescentados alguns elementos informativos de carácter técnico e sobre as patentes, e, além de viagens no tempo, possibilitadas pela concepção dos desenhos, pelo olhar dos números de telefone constantes nos rótulos (alguns ainda com dois algarismos), pelo formato da garrafa ou pelas marcas que já desapareceram, conseguimos também viajar no país produtor de refrigerantes - desde Monção a Vila Real de Santo António ou desde Castelo Branco a Aveiro, o continente surge coberto na sua quase totalidade, em quinze distritos (de que se exceptuam Braga, Bragança e Vila Real), sendo o que apresenta mais elevado número de marcas o de Santarém (18), seguido de Lisboa (16), Coimbra (11) e Setúbal (10).

Um olhar sobre os rótulos permite uma viagem por imaginários diversos - se a maioria apresenta figuras de fruta, certo é que, na motivação para o sabor também entram designações regionais (“Nabantina”, para Tomar, ou “Valenciana”, para Valença), motivos locais (o mosteiro, para a marca “Batalha”; os barcos e a praia, para a “Ericeirense”; o trajo regional, para a “Eramil” monçanense; a muralha, para a “Mirtilina” mertolense; o templo, para a marca vianense “Santa Luzia”), reproduções da figura feminina ou paisagens dominadas pelo sol e pelo ar livre.

Relativamente às marcas setubalenses, constam reproduções da grandolense “Foca”, das quintajenses “Frix” e “Vida & Fortuna”, da sesimbrense “Gaivota”, das barreirenses “Pérola” e “Sumo Fruto” (ambas do mesmo produtor), das setubalenses “S. João” e “Tody” e das seixalenses “S. Pedro” e “SP” (ambas do mesmo produtor).

Conta Raul Reis que a sua colecção, mais vasta do que o repositório apresentado neste volume, começou “com uma viagem ao Oeste de Portugal e com um encontro casual com uma caixa cheia de garrafas de refrigerantes com rótulos pirogravados”, que, “encostada ao vidro de uma janela ampla, servia de elemento de decoração”. Daí veio a curiosidade pela análise do grafismo dos rótulos e o início da recolha, num processo de procura de exemplares, de contacto com trabalhadores e proprietários de algumas das empresas produtoras e de troca de experiências com outros colecionadores, surgindo o livro apenas como um “contributo para memória futura”.

Vasilhame é, assim, um passeio pela arte da impressão em vidro, pelas técnicas de publicidade e vida das marcas, pela história dos materiais, pela construção do gosto estético e dos sabores. As garrafas surgem vazias, sem tampa, mas repletas de memórias a encherem um livro...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1220, 2024-01-17, pg. 10

 

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Rui Garcia: O "charroquês" e o Mestre Toine



O “charroque” existe em livro desde 2010, ano em que Rui Garcia publicou Charroque da Prrofundurra - O Livrro. No ano seguinte, saía Charroque da Prrofundurra... volta à purrsefíce (que inclui um “Dicionárrio Charroque”) e as histórias e as máximas de Mestre Toine, animador da loja e da ideia “charroque da prrofundurra”, prolongaram-se por títulos como Apá Sóce... deslárrgame da mão! (2014) e Frráses Sádinas - Erra prra sairr uma frase fofinha mas saiu esta mérrda (2018). Recentemente, as narrativas em que Mestre Toine e os seus amigos são intervenientes reapareceram antologiadas sob o título Charroque da Prrofundurra - As melhórres histórrias (edição da marca Charroque da Prrofundurra).

Vale a pena retomar a apresentação feita no primeiro título: “Este livre é o suprrasúme do garrgalharr com Setúbal e em Charroquês”. A obra surgia na sequência de páginas nas redes sociais, de criação da marca e de loja (primeiro, virtual e, depois, real). E o prefaciador Charroque explicava ainda a origem do blogue: “nasceu duma grrande necessidade de acrreditarr que a nossa cidade vai sairr da obscurridão das desgrráças”, pois “há 20-30 anes nã acontcia nada e ia tudo prra Lisboa currtirr. Agorra acontece e fica tude em casa. Perrtante tames aqui com um prrublema.”

Já percebe o leitor que o Charroque usa uma linguagem própria que o leva a escrever de acordo com regras gramaticais e ortográficas relacionadas com a oralidade e com as marcas da pronúncia mais forte dos “r” (mais associada à zona setubalense de Troino, sem que se conheça a origem desta variante) ou do final das palavras (anulando o som “u”, à semelhança de algumas regiões algarvias), uma e outra consequências de cruzamentos culturais e de migrações, por certo.

O título agora aparecido, reunindo “as melhórres histórrias”, apoia-se nos textos publicados nos três primeiros volumes: 21 crónicas do livro inaugural; 12, do segundo; 17 do título editado em 2014. Este aspecto deve interferir com a leitura, na medida em que algumas referências terão de considerar o tempo em que foram feitas, muito embora estas crónicas possam (e devam) ser lidas pelo sublinhado do tom humorístico (por vezes, satírico - “garrgalharr com Setúbal”, lembremos) e da afirmação de algumas marcas identitárias.

Povoadas por “Méstrre Toine”, pescador, dono do barco “Marrgarrida do Sáde” (“a melhorr embarcação quiá”), vitoriano (“clube mai linde”), apreciador de choco frito e de umas “mines”, as histórias, com cunho de fantástico, trazem também os amigos Russe, Xique, Manel e Ptinga, todos integrando a companha do “Marrgarrida do Sáde”, e as irmãs Charroquinha e Charroquinhita, as duas filhas “caninas”. Pela cidade onde circulam o Fiat 127 “vermelhinhe” do Charroco e o “mata-velhos” do primo Chico Zarroulhe, estas personagens, que também calcorreiam a urbe, alimentam os dizeres de crítica social e de costumes, de análise de situações de dificuldade ou de abuso do poder, de cenas do quotidiano, de olhar algo cáustico sobre novas modas, sempre à mistura com muito sentido de humor, pormenor que vai amaciando a indignação quanto a indecisões ou quanto a situações ou problemas de mais difícil resolução.

Há alguns momentos fortes de narração, com vocabulário bem oportuno, cheio de graça e captação do movimento, como no episódio em que o Charroco e a família vão a um espectáculo de ballet, porque a filha era praticante da arte, e a dança impressiona fortemente o observador: “saltinhe prráqui, pirruêta prráli, biquinhes de pés prrácolá, salte desemcarrpade prró outrre láde, voltinhas a dárr cum pau” e, depois, os aplausos (“a cada fim de cena o Charroque e família semprre a bater as palminhas qué prra parrcerr bem”).

Rui Garcia não deixou de lado o factor da esperança e da confiança na cidade, um pouco a apelar à lucidez e responsabilidade do “Mestre” - por isso, no momento em que é relatado um episódio num hotel da cidade, o leitor pode acompanhar o compromisso da personagem: “eu cá vou acrreditarr em mim, vou levarr tude à frrente, mas esta cidade vai serr munta grrande, vames terr órrgulhe nêla porrque é nossa e os nósses tão cá e os nósses filhes poderrão porr cá ficarr.”

Trata-se de um livro em que impera a boa disposição, a enriquecer um mundo feito de personagens que vêem a vida na perspectiva mais prática, cruzando a realidade, mostrada na sua forma mais simplista e imediata, que se lê com prazer.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1215, 2024-01-10, pg. 9.