A garrafa é objecto que, normalmente, interessa pelo seu conteúdo, servindo, por essa razão, para a construção metonímica apenas quando está cheia - em primeiro lugar, com um qualquer líquido; depois, com aquilo que lá se queira meter, destacando-se, nesta última hipótese, a possibilidade de guardar segredos ou mensagens, recurso que deu já origem a muitas histórias de aventuras e a textos literários, haja em vista, por exemplo, obras de Daniel Filipe (1925-1964) ou de Alexandre Honrado (n. 1960) que trouxeram este objecto para título de narrativas.
Raul Reis (n. 1974), designer setubalense, resolveu encher um livro com fotografias de garrafas oriundas de uma centena de marcas portuguesas de refrigerantes e de águas, quase à dimensão real, que circularam entre as décadas de 1920 e de 1990, todas da era em que o material utilizado para as produzir era o vidro e a indicação das marcas era gravada por serigrafia (impressão directa sobre vidro).
“Um livro cheio de garrafas vazias”, assim explica o subtítulo de Vasilhame (No Frame Publishing, 2023), a prestar “tributo ao design gráfico de rótulos” e a carregar também a marca das recordações e de uma certa nostalgia.
Olhamos estas fotografias, a que são acrescentados alguns elementos informativos de carácter técnico e sobre as patentes, e, além de viagens no tempo, possibilitadas pela concepção dos desenhos, pelo olhar dos números de telefone constantes nos rótulos (alguns ainda com dois algarismos), pelo formato da garrafa ou pelas marcas que já desapareceram, conseguimos também viajar no país produtor de refrigerantes - desde Monção a Vila Real de Santo António ou desde Castelo Branco a Aveiro, o continente surge coberto na sua quase totalidade, em quinze distritos (de que se exceptuam Braga, Bragança e Vila Real), sendo o que apresenta mais elevado número de marcas o de Santarém (18), seguido de Lisboa (16), Coimbra (11) e Setúbal (10).
Um olhar sobre os rótulos permite uma viagem por imaginários diversos - se a maioria apresenta figuras de fruta, certo é que, na motivação para o sabor também entram designações regionais (“Nabantina”, para Tomar, ou “Valenciana”, para Valença), motivos locais (o mosteiro, para a marca “Batalha”; os barcos e a praia, para a “Ericeirense”; o trajo regional, para a “Eramil” monçanense; a muralha, para a “Mirtilina” mertolense; o templo, para a marca vianense “Santa Luzia”), reproduções da figura feminina ou paisagens dominadas pelo sol e pelo ar livre.
Relativamente às marcas setubalenses, constam reproduções da grandolense “Foca”, das quintajenses “Frix” e “Vida & Fortuna”, da sesimbrense “Gaivota”, das barreirenses “Pérola” e “Sumo Fruto” (ambas do mesmo produtor), das setubalenses “S. João” e “Tody” e das seixalenses “S. Pedro” e “SP” (ambas do mesmo produtor).
Conta Raul Reis que a sua colecção, mais vasta do que o repositório apresentado neste volume, começou “com uma viagem ao Oeste de Portugal e com um encontro casual com uma caixa cheia de garrafas de refrigerantes com rótulos pirogravados”, que, “encostada ao vidro de uma janela ampla, servia de elemento de decoração”. Daí veio a curiosidade pela análise do grafismo dos rótulos e o início da recolha, num processo de procura de exemplares, de contacto com trabalhadores e proprietários de algumas das empresas produtoras e de troca de experiências com outros colecionadores, surgindo o livro apenas como um “contributo para memória futura”.
Vasilhame é, assim, um passeio pela arte da impressão em vidro, pelas técnicas de publicidade e vida das marcas, pela história dos materiais, pela construção do gosto estético e dos sabores. As garrafas surgem vazias, sem tampa, mas repletas de memórias a encherem um livro...
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1220, 2024-01-17, pg. 10