terça-feira, 26 de abril de 2022

A data d’A Garota Não - 2 de Abril



Saiu da maternidade do Hospital de S. Bernardo, em Setúbal, no outono de 1983, para o Bairro 2 de Abril, residência da família. Relembra: “Cresci sem saber o que representava esse nome. Sem saber que oito anos antes, em 1976, a 2 de Abril, se decretava a ‘Constituição Portuguesa’ (...). Fiz-me gente, portanto, num bairro com Nome e circunstância.” É Cátia Oliveira, “A Garota Não”, quem assim recorda o início da sua relação com o bairro que a acolheu, na “New in”, em Janeiro de 2021, sob o título “Carta para o Bairro 2 de Abril, com amor”.

Essa declaração de afecto foi agora retomada, sendo 2 de Abril o título do segundo cd de “A Garota Não”, a correr nos ouvidos desde há dias, obra primorosa pela apresentação delicada, numa embalagem que transforma cada cd num objecto único, invólucro original com um toque artesanal. Peça bonita e cativante, resguarda um lote de vinte canções, embrulhadas em fotografias do bairro, com dupla dedicatória incluída: à mãe, “porque foi com ela que aprendi o que é força e o que é o amor, e que o simples é quase sempre o mais bonito”, e “a todas as pessoas do Bairro 2 de Abril e de todos os Bairros 2 de Abril deste país”.

Por este conjunto de poemas passam: o tom de manifesto (“podem decretar mandar calar-te / (...) / podem decretar o fim da arte / e a gente faz uma canção sobre isso”), o apelo à paz (“que venha quem vier por bem / mas não se trate com desdém / quem tratou deste lugar”), o sonho (“vou pelo sonho, que a vida é poética / quanto me acende este amor / quanto me anima, este amor, quanto me anima”), a liberdade (“o melhor lugar / de qualquer cidade / 1+1 são 3 / quando há liberdade”), a solidão (“esse amor não bate certo / dói que mata a céu aberto / já não sei como tocar-te / tudo em nós agora parte / e eu já não sei...”), a indignação (“não, não vale tudo aqui / a vergonha tem limite / e o status não permite / que nos tratem assim”), o amor (“quand’o amor é bom / tem asas bem compridas, e tão coloridas como baton / seja alti-falado ou só sussurrado e até sem som”), a imagem feminina (“que mulher é essa / que eu vejo na telenovela / as mulheres à minha volta / não se parecem nada com ela”).

Além destes temas, da tradição literária e musical, outros há, dominados pelas circunstâncias vividas na contemporaneidade, como a habitação ou a moda dos alojamentos locais (“eu moro em casa de mãe / casa de mãe é bom / mas é casa de mãe” ou “Começam as obras, que casa bonita! / Começam os guests, fome é infinita / Mais um AL, orgulho nacional, / corrida sem lei, onde vais Portugal?”), os refugiados (“E se voltar a renascer aqui neste lugar / quero ser flor, que a guerra, amor, um dia há-de acabar”) ou a contestação ideológica (como é o caso do poema “Sede do Xega”).

Pelas visitações feitas - a Eugénio de Andrade, Criolo, Fausto, Francisca Camelo ou José Mário Branco, homenageado na última composição -, pela vida que nele perpassa, pela dose de vivências sugeridas, pelos sentimentos que povoam os seus 70 minutos de música, canto (em que também entram as vozes de Xullaji e Ohmonizcente) e poemas, este 2 de Abril de “A Garota Não” é experiência cuja intensidade se sente contra o conformismo e em prol do compromisso.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 831, 2022-04-20, pg. 6.


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