quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

José Raposo pelos caminhos do fado



Sob título aparentemente autobiográfico, José Raposo (n. 1947) leva o leitor para o interior do fado, em poemas enaltecedores do papel que ao fado tem estado atribuído, jogando com as temáticas que habitualmente correm nas veias desta forma de canção. Pedaços de mim, surgido em 2021, é o segundo livro do autor santiaguense (a residir em Setúbal desde início da década de 1970), que Carlos Bondoso, em texto introdutório, classifica de “grande sensibilidade e criatividade”, dotado de “um olhar de quem está atento às coisas mais simples do povo trabalhador”.

Duas partes constituem esta obra: “Fados”, a mais extensa, e “Marchas e canções”, incluindo a primeira pouco mais de uma centena de poemas, cinquenta dos quais já interpretados (e alguns gravados) por vozes locais do fado. A segunda parte guarda as letras das Grandes Marchas de Setúbal (2009), de Lisboa (2010) e de Almada (2012), canções diversas (interpretadas por mais de uma dezena de vozes, algumas participantes em concursos) e hinos para instituições locais (Escola Básica 1 de Montalvão, União de Futebol Comércio e Indústria e Liga dos Amigos da Terceira Idade).

O fado enquanto tema domina o primeiro grupo pelos assuntos que o costumam ocupar, pelas circunstâncias em que é vivido ou pelas reminiscências históricas que transporta, como sintetiza a sextilha “Sempre falou de loucura / Paixão amor e ternura / Ouvido à luz das velas / O fado tem seu segredo / Foi cantado no degredo / E a bordo das caravelas.” Noutro poema, “Sem poetas não há fado”, constam os seus ingredientes - o poema, a guitarra, a saudade, o ciúme, a paixão, a ternura, a solidão, o amor, a tristeza -, vários deles a dominarem alguns dos textos: o destino (“Tenho por mim que o destino / é dado de pequenino / e cada um tem o seu”); o infortúnio (“Nasci num dia azarado / sexta-feira de repente / dia treze enevoado / e nasci logo doente”); os amores passados (“Dei-te da vida pedaços / dei-te beijos e abraços / dei-te carinhos sem fim”); a aprendizagem do tempo (“Tenho do tempo saudade / quando o tempo não corria / para dizer a verdade / custava a passar um dia”); a saudade (“E quando o fadista canta / a saudade do passado / o som da sua garganta / é de um fado bem cantado”); os lugares míticos do fado (Mouraria, Alfama, Bairro Alto ou Madragoa); certa deambulação na busca da essência fadista (“Num beco da Mouraria / passou por mim um rufia / cantando um fado à toa / era um fadista castiço”); o culto devido a nomes conceituados, como a Severa ou Marceneiro.

O ambiente de Setúbal é também levado para o universo do fado, ora pelo sentimento que a paisagem desperta, ora por um percurso pelos bairros sadinos (Reboreda, Terroa, Conceição, Santos, Viso, Troino), na procura da sua essência (o “castiço”) e especificidade, unidos pela marca do fado - “O que mais me deu nas vistas / foi nos bairros ver fadistas / cantando por todo o lado”.

A segunda parte contém poemas mais adaptados às circunstâncias para que foram criados, sujeitos aos temas da identidade de alguns espaços (Almada, Lisboa, Setúbal, Alentejo), das profissões (pescador, marinheiro, alfaiate) ou da infância.

A marca autobiográfica mais profunda neste livro é o apego de José Raposo ao fado como motivo para a poesia, confessado em versos como “Meu coração é teu / a ti fado eu o dei” ou “o fado é minha bandeira / içada a todo o momento”.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 773, 2022-01-26, 773, p. 5.


quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Thiago de Mello e os estatutos da utopia



(em memória de Thiago de Mello, que partiu em 14 de Janeiro)


De 31 de Março para 1 de Abril de 1964, um golpe militar perpetrado no Brasil depôs o presidente João Goulart e iniciou a ditadura militar, que se manteve por duas décadas. Nessa altura, Thiago de Mello (1926-2022) era adido cultural na Embaixada do Brasil no Chile e cultivava intensa amizade com Pablo Neruda, em parte advinda de um sentido de comunhão poética, mas também originada pela proximidade ideológica.

Na sequência da alteração política verificada no Brasil, Thiago de Mello apresentou quase de imediato a sua renúncia ao lugar e, parodiando o “Ato Institucional número 1” (que as chefias militares brasileiras assinaram em 9 de Abril para sustentarem o seu poder, em onze curtos artigos), redigiu o poema “Os estatutos do homem”, defesa forte da liberdade, cuja primeira publicação ocorreu em 30 Maio no jornal fluminense Correio da Manhã (edição 21825) - ironicamente, noutra página do mesmo dia, era noticiada a visita policial à Biblioteca da Faculdade Nacional de Direito, solicitando à bibliotecária a “máxima fiscalização quanto às leituras dos académicos” e deixando um rol dos livros expurgados... 

“Os estatutos do homem”, depois integrado na obra Faz escuro mas eu canto, mereceria ao longo dos tempos edições autónomas e grande divulgação nas várias partes do mundo - em Portugal, seria publicado em 1968 pelas Edições ITAU, tendo grande circulação na forma de poster.

O poema, em que ressoa o espírito da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, segue a construção do texto jurídico (logo a começar pelo título, “estatutos”), dividindo-se em artigos, numerados (14, no total), correspondendo cada um a uma estrofe, variavelmente iniciados por “fica decretado” (na maioria dos casos), “fica estabelecido”, “fica permitido”, “decreta-se” e “fica proibido”. Entre o prescrito no artigo primeiro (“Fica decretado que agora vale a verdade, / que agora vale a vida, / e que de mãos dadas, / trabalharemos todos pela vida brasileira” - “brasileira” passou depois a “verdadeira”) e o último, o leitor é posto perante princípios que visam influenciar o comportamento da sociedade, levando o ser humano a acreditar que a construção da paz, da alegria, da felicidade e da liberdade é função de todos e de cada um. Apenas um artigo, o último, invoca a proibição, apresentando-se como corolário de tudo o que antes foi estabelecido, tentativa de construção da utopia: “Fica proibido / o uso da palavra liberdade, / a qual será suprimida dos dicionários / e do pântano enganoso das bocas. / A partir deste instante / a liberdade será algo vivo e transparente / como um fogo ou um rio, / ou como a semente do trigo / e a sua morada será sempre / o coração do homem.” Além desse incentivo à acção por parte da sociedade, o poema apela também a valores como a coerência (“os homens / estão livres do jugo da mentira”) ou a fraternidade (“que o pão / tenha sempre / o quente sabor da ternura”), na linha da poesia politicamente comprometida.

Dedicado ao escritor e jornalista Carlos Heitor Cony (1926-2018), uma das vozes anti-ditadura, este poema viria a ser considerado por Thiago de Mello o seu “ato institucional permanente”, paródia e contestação do “Ato institucional nº 1” que segurara a “revolução” levada a cabo pelo golpe militar... Em 1998, em entrevista a Lêda Rivas, o poeta falaria sobre a sua carreira: “Sou responsável perante o dom que recebi ao nascer, o dom da poesia. Minha vida é uma vida que tem sido útil para os outros. Sou coerente, porque coloquei sempre a minha poesia a serviço da vida.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 768, 2022-01-19, pg. 5


quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Como Jorge Ginja levou Mário Viegas e a poesia para a guerra



Em finais de 1968, o portuense Jorge Ginja (1940-2020) e o escalabitano Mário Viegas (1948-1996) conheceram-se no Teatro Universitário do Porto. A ligação comum ao teatro e à poesia foi responsável por um gesto que se manteve guardado durante meio século. No ano seguinte, o médico transmontano foi convocado para o serviço militar, com partida para Cabinda (Angola) no início de 1970 como oficial médico. Provavelmente, terá levado livros consigo, mas o que de certeza transportou foi quase meia centena de textos ditos pela voz de Mário Viegas, encadernados em bobine, além do respectivo aparelho leitor, claro.

Foi em 1969 que Jorge Ginja pediu ao amigo que gravasse esse conjunto - 47 poemas e 2 textos dramáticos - para os levar consigo para o cenário da guerra colonial. Em 2021, Catarina Ginja e Pedro Ginja decidiram partilhar essa memória, reunindo em livro os textos gravados e passando para cd os sons das fitas, num trabalho em que estiveram também envolvidas a livraria portuense In-Libris e a Direcção Regional de Cultura do Norte, editoras da obra, assim nascendo Voz Própria - Jorge Ginja e Mário Viegas - Poesia, Resistência e Liberdade.

Em nota introdutória ao livro, Manuela Jorge refere que a selecção dos textos coube a Jorge Ginja - “Recordo-me muito bem de me ter dito que ia marcar poemas nos seus livros e levar o Mário Viegas a casa da mãe, para gravarem os poemas que queria levar para a guerra.” No prefácio que assina, Manuel Alegre admite como “possível que Mário Viegas tenha sugerido alguns textos”. Temos assim uma antologia lida e dita, construída por dois nomes que partilhavam o gosto da representação e da poesia, mas também das ideias.

Entre os poetas representados, constam: Gastão Cruz, Guerra Junqueiro, José Gomes Ferreira e Sebastião da Gama (todos com um poema); António Gedeão, Armindo Rodrigues, Joaquim Namorado, Pablo Neruda e Vinicius de Moraes (dois poemas); Bertolt Brecht (quatro poemas); Ary dos Santos e Manuel Alegre (sete poemas); Alexandre O’Neill (quinze poemas). Os textos dramáticos devem-se a Máximo Gorki (excerto da peça “Pequenos Burgueses”) e a Anton Tchékhov (“Os malefícios do tabaco”).

Em tão vasto leque, consegue o leitor-ouvinte encontrar pontos fortes como: a força da palavra; o encorajamento e o incentivo à acção; a denúncia da guerra e da prisão; a ironia; o triângulo da emigração, do exílio e do longe; a ausência; a liberdade; a partilha e a busca da paz. E percebe-se o que seria a proximidade de ideias entre os dois amigos que recriaram a poesia, como se entende o subtítulo escolhido para o livro: desde a liberdade cantada por Armindo Rodrigues (“Ser livre é querer ter um rumo / e ir sem medo”), à memória de Manuel Alegre no dia de aniversário na prisão em Maio de 1963, à indignação do soldado por uma guerra que não dava sinais de paz nas palavras de Brecht, à ironia de Ary na descrição de um “país de luz” e de “pus”, para concluir no manifesto da personagem tchekhoviana - “Só apetece fugir não se sabe para onde” e deixar “esta vida estúpida e banal, esta vida medíocre, que fez de mim um deplorável pateta”.

A recolha dos textos, em obras publicadas entre 1885 e 1969, segue o critério dessa afirmação dos dois amigos. E, na voz de Viegas, então com 20 anos, percebemos já o fulgor do artista que era. Este livro é de antologia! Pela beleza do objecto, claro. Mas sobretudo pela poesia, pelo pensamento, pela arte, pela memória, pela história que o criou!

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 763, 2022-01-12, p. 9.


terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Efemérides e memórias para 2022 - no Mundo e em Setúbal



O ano de 2022 tem vários grandes objectivos sobre os seus ombros, decorrentes das áreas que foram eleitas para nele serem lembradas - é o Ano Internacional das Ciências Básicas para o Desenvolvimento Sustentável, o Ano Internacional do Desenvolvimento Sustentável das Montanhas, o Ano Internacional da Pesca Artesanal e da Aquicultura e o Ano Internacional do Vidro.

É também o ano em que decorre o primeiro centenário sobre vários acontecimentos que foram responsáveis por mudanças no mundo, seja na área social ou do saber, pois há 100 anos: aconteceu a travessia aérea entre Lisboa e Rio de Janeiro, protagonizada por Gago Coutinho e Sacadura Cabral (30 de Março a 17 de Junho); Niels Bohr explicou a estrutura do átomo, o que lhe valeu o Nobel da Física nesse ano; foi criada a BBC (18 de Outubro); Mussolini marchou sobre Roma e foi constituído o governo fascista (28 e 30 de Outubro); Howard Carter e Lord Carnarvon descobriram o túmulo de Tutankhamon (Novembro); foi formada a União Soviética (30 de Dezembro).

O ano de 1922 viu nascer Pier Paolo Pasolini (5 de Março), José Craveirinha (28 de Maio), Agustina Bessa-Luís (15 de Outubro), José Saramago (16 de Novembro) e Mariana Rey Monteiro (28 de Dezembro). Foi ainda o ano do falecimento de Aurélia de Sousa (26 de Maio) e de Marcel Proust (18 de Novembro).

Foi também em 1922 que surgiram publicações como: The Reader’s Digest (criada por DeWitt Wallace e Lila Bell Wallace);Ulisses, de James Joyce; The waste land (A terra sem vida, em edição portuguesa), de T. S. Eliot; Contemporânea, revista dirigida por José Pacheco, com colaboração, logo no número inaugural (Maio), de Fernando Pessoa, Almada Negreiros, António Botto, João Vaz e Diogo de Macedo, entre outros; Estrada de Santiago, livro de contos de Aquilino Ribeiro.

Outras datas contadas por números redondos em 2022 são: 800 anos sobre a consagração da igreja do Mosteiro de Alcobaça (1222); 500 anos sobre a chegada a Sevilha da frota que realizou a primeira viagem de circum-navegação (8 de Setembro de 1522); 550 anos sobre a publicação da primeira edição de Os Lusíadas, de Camões (1572); 200 anos sobre a promulgação da Constituição Portuguesa (23 de Setembro de 1822) e sobre a independência do Brasil (12 de Outubro de 1822); 150 anos (1872) sobre o nascimento de Sidónio Pais (1 de Maio), de Bertrand Russell (18 de Maio) e de Ana de Castro Osório (18 de Junho), sobre o primeiro grande movimento grevista em Portugal e sobre a publicação de Os Fidalgos da Casa Mourisca, de Júlio Dinis; 70 anos sobre o falecimento de Sebastião da Gama (7 de Fevereiro de 1952); 50 anos sobre a morte pela polícia política do estudante José Ribeiro dos Santos nas instalações do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (12 de Outubro de 1972), sobre os incidentes na Capela do Rato quando, na “Oração pela Paz”, foi produzida moção contra a guerra colonial, originando a prisão de vários participantes (31 de Dezembro de 1972) e sobre a publicação de Novas cartas portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta.

Em Setúbal, merecem lembrança os 100 anos sobre o nascimento de Joaquim da Purificação dos Santos, artista conhecido como “Kinito” (6 de Março), Josué da Silva Monteiro Júnior, conhecido pelo empenho vitoriano (23 de Maio), José Manuel de Noronha Gamito, embaixador e escritor (21 de Agosto), e Álvaro Carvalho Pinto, promotor de Setúbal (19 de Novembro).

Outras evocações da região de Setúbal para 2022 quanto a efemérides, além das já referidas datas para Ana de Castro Osório e Sebastião da Gama, são: 650 anos sobre a fundação do Hospital de Nossa Senhora da Anunciada (1372); 150 anos (1872) sobre os nascimentos de Francisco Paula Borba (24 de Março) e de Celestino Rosado Pinto (17 de Dezembro); 70 anos sobre o falecimento de Fran Paxeco (17 de Setembro de 1952); 30 anos sobre o falecimento de Luís Cabral Adão (6 de Agosto de 1992).