Sobre o provincianismo lusitano, Fernando Pessoa criticou o escol português por “incapacidade de concentração voluntária, espírito de imitação e ausência de espírito crítico”. A seguir, emendava a mão: “Faço uma leve reserva quanto ao escol industrial: não há entre os nossos intelectuais, artistas, jornalistas ou políticos alguém cuja iniciativa e poder de coordenação se compare com os de, por exemplo, o Sr. Alfredo da Silva no campo industrial.” E concluía: “Por desastre, porém, e para mal nosso, o escol industrial não tem, por natureza, influência intelectual alguma, e assim não serve de vivificar o escol em geral.”
O texto pessoano, recolhido em Ultimatum e Páginas de Sociologia Política (1980), serve para José Manuel Sardica abrir a obra Alfredo da Silva e a CUF: Liderança, Empreendedorismo e Compromisso (Cascais: Principia Editora, 2020, com apoio da Fundação Amélia de Mello), justificando mesmo os três valores enunciados no subtítulo, nesta que é uma das primeiras iniciativas da programação dos 150 anos do nascimento do industrial que pôs o Barreiro no centro dos seus investimentos.
Além do percurso da vida e obra de Alfredo da Silva (1871-1942), o leitor inteira-se também sobre as tensões políticas e laborais que assolaram os empreendimentos do grupo CUF, sobre uma nova visão da responsabilidade social empresarial relativamente aos colaboradores (gesto em que Alfredo da Silva foi quase pioneiro, criando habitações, escola, serviços de saúde - a origem da rede hospitalar CUF que hoje conhecemos -, formas de lazer, cantinas, protecção social para os trabalhadores das suas empresas, dinamizando a ideia de uma “família cufista”), estendendo-se a narrativa até à actualidade (grupos Sovena e José de Mello), pois esta obra se assume também como a história de uma família. Os vectores apontados por Sardica assentam numa gestão intensa nas fábricas do grupo, num reinvestimento dinamizando o seu crescimento, num compromisso patriótico e social, configurados num homem de lemas como “mais e melhor”, “ganhar se possível e perder se necessário” ou “o que o país não tem a CUF cria”, assim se sintetizando os trunfos que conduziram Alfredo da Silva: “planificar a médio e longo prazo, ser original e inovador nas escolhas de investimentos, calcular muito bem riscos e benefícios e solidarizar a riqueza pessoal com a riqueza criada.”
Marcas como Carris, Totta, Tabaqueira, Império, SG (Sociedade Geral), CUF, ou áreas como os adubos, as oleaginosas ou a construção naval foram os principais degraus por que passou a acção deste homem que, em 1908, chamou o centro da sua actuação para a Margem Sul, chegando a desejar ser sepultado no Barreiro, “pois, mesmo morto, queria estar sempre a olhar para as suas fábricas”. Passou circunstancialmente pela política (deputado por Setúbal em 1906) e cruzou ideias com políticos (João Franco, Sidónio Pais, Oliveira Salazar), nem sempre convergindo; sofreu quatro atentados, a que sobreviveu por sorte; viveu exilado em Espanha; contornou a onda revolucionária e grevista do início da República, a acusação de germanofilia que lhe foi imputada na Primeira Guerra, os efeitos do “crash” de 1929 e as dificuldades trazidas pela Segunda Guerra. Os seus restos mortais seriam trasladados para mausoléu no Barreiro dois anos após o falecimento.
A leitura acessível e a informação essencial povoam este livro, na perspectiva de cativar (também) o público estudantil para a investigação sobre a vida, a obra e o tempo do biografado, visando concurso a acontecer ao longo deste ano lectivo. Estamos perante uma biografia muito bem tecida, repleta de informação actualizada (chega a estabelecer correspondência dos valores do dinheiro com o tempo de hoje numa sensibilização à história económica), que não omite as vulnerabilidades do tempo e das circunstâncias, deixando claro, sobre Alfredo da Silva, que “a história da sua CUF é a sua história de vida”.
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 505, 2020-11-11, p. 9.
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