A Europa tem sido objecto de reflexão para Viriato Soromenho-Marques desde sempre: quer pelo seu significado cultural e espaço de pensamento, quer pela sua geomorfologia histórica e política. A sua bibliografia sobre a questão europeia é vasta e podem recordar-se, a título de exemplo, obras como Europa: O risco do futuro (1985), Europa - Labirinto ou casa comum (1993), Portugal na queda da Europa (2014) ou Cidadania e construção europeia (2005), obra que coordenou.
A obra de 1993 referida contém um início nada calmo: “Há uma crise que percorre a Europa. Uma crise mais vasta e profunda que a da Comunidade Europeia, que vê os seus alicerces e metas tremerem. Mais sob as vagas da tempestade da especulação bolsista, temos de o confessar, que perante a prolongada comoção de uma guerra balcânica. (...) A presente crise europeia é mais vasta e profunda que a da Comunidade Europeia. Ela obriga-nos a repensar o significado da identidade plural do Velho continente. A avaliar as possibilidades de tantos Estados, Povos e Nações partilharem algumas das tarefas de um destino, quer o queiramos quer não, cada vez mais comum.” Na obra publicada em 2005, Soromenho-Marques insistia: “Numa altura em que tudo parece estar em causa no sistema internacional, desde a questão do terrorismo ao papel das Nações Unidas, passando pela crise global do ambiente, a hesitação no comércio mundial entre portas escancaradas e retorno ao proteccionismo, e a situação de declínio crítico que afecta a política externa dos Estados Unidos, a Europa precisa de vencer as visões paroquiais, olhando para o futuro com ambição e generosidade.”
Cinco anos volvidos sobre Portugal na queda da Europa, novo livro de Viriato Soromenho-Marques surge a questionar sobre o Velho Continente: Depois da queda - A União Europeia dentre o reerguer e a fragmentação (Lisboa: Temas e Debates / Círculo de Leitores, 2019), um conjunto de cinco ensaios, acompanhados de uma introdução e de uma conclusão, obra que, apesar de ter saído uns tempos antes das eleições para o Parlamento Europeu, não suscitou a discussão, porque também a Europa e o seu futuro foram temas que não saltaram para o debate durante toda a campanha.
A abertura deste Depois da queda não deixa o leitor em segurança: “A Europa em 2019 - entendida como o projecto de integração europeia de que resultou a actual União Europeia - já se encontra tombada sobre terra, impossibilitada de se reerguer se as políticas e as instituições que a conduziram até ao chão se mantiverem sem mudanças profundas.” Para o cidadão, os sinais de inquietação são muitos: o distanciamento económico entre países, as desigualdades em cada país, o ignorar princípios básicos da democracia representativa, a chegada ao poder de forças populistas, as disparidades de pensamento (e de acção) quanto aos migrantes e refugiados, a apatia europeia quanto às tomadas de posição relativas à Europa por parte da China, dos Estados Unidos ou da Rússia. Estas seis evidências, acrescidas do “Brexit” e do papel que os “coletes amarelos” têm tido no protesto social, são listadas por Soromenho-Marques e podem constituir o pretexto para o desenvolvimento do seu estudo.
A construção do sistema do euro acutilantemente chamada para a responsabilidade do actual estado, a refundação da zona euro tornada uma emergência, os cidadãos europeus tratados de maneira diferente depois de ter sido “encorajado o processo de declínio dos direitos sociais e económicos” que lhes eram devidos - eis as três linhas dominantes no pensamento desta obra, que surge recheada de elementos trazidos da estatística, dos estudos, dos factos da história recente (e menos recente) da Europa.
O percurso económico da Alemanha pós-1945 e o peso deste país na ideia do euro, a (des)regulação bancária e “um sistema financeiro hiperbólico e labiríntico”, a “crise da dívida soberana” e os interesses nacionais individualistas, constituem o conjunto que dá corpo aos ensaios, cujo final se apresenta com um título em que se confrontam as possibilidades e a insegurança - “Sete certezas na incerteza do futuro europeu”.
Quais são as certezas? Primeira: “a União Europeia só se reerguerá através de uma reforma profunda da zona euro, que a coloque ao serviço de um projecto europeu onde as leis de mercado não devorem o interesse maior da segurança pessoal e da justiça social”. Segunda: “não existe saída ordenada nem dissolução negociável da zona euro”, porque “as regras do euro foram feitas de tal modo que não existe caminho razoável para regressar à situação anterior a Maastricht”. Terceira: “a actual ordem da agonia lenta do euro não será duradoura nem sustentável”. Quarta: “responsabilidade alemã em desbloquear as negociações para a única via possível para impedir a fragmentação europeia: a reforma profunda da sona euro.” Quinta: a divergência entre a manifestação dos cidadãos através da democracia e o espaço “blindado à intervenção dos cidadãos” onde se decide com “consequências materiais efectivas”. Sexta: “nenhum país europeu está em condições de enfrentar melhor sozinho, do que no quadro de uma União Europeia refundada, todos os gigantescos desafios existenciais” da actualidade (ambiente, trabalho, inteligência artificial, segurança militar e direitos humanos incluídos). Sétima: “uma política europeia deve estar ao serviço da protecção e do respeito das diferenças e das distâncias que é preciso salvaguardar e não colocar-se sob as ordens daqueles que querem ‘normalizar’ e terraplanar o que é diverso, e diverso deverá permanecer”.
O contributo da Europa para a paz é um valor em que se acredita, mas também não se pode esquecer que a primeira metade do século XX trouxe à Europa, por responsabilidade dos europeus, uma outra “guerra dos 30 anos”, entre 1914 e 1945, tempo em que a guerra nunca esteve adormecida, tempo em que a conflitualidade se aproveitou da insegurança dos povos.
Forçoso será acreditar que a Europa há de encontrar uma solução. Contudo, a espera não pode conduzir à eternidade. Na base das melhorias ou dos aperfeiçoamentos, estará um princípio que tem de orientar os europeus e os seus decisores, defendido por Viriato Soromenho-Marques quase no fecho do livro: “A política de que os europeus necessitam não é a que promova o amor mútuo, mas sim a que fortaleça o respeito mútuo.”
Esta obra, sem incursões difíceis de entender, é para ser lida. Obviamente por quem se liga à política nacional e europeia. Mas, não menos obviamente, também pelo cidadão português e europeu. Para que sejamos críticos, para que tenhamos argumentos, para que pensemos também na nossa condição de europeus. Talvez este questionar europeu nos torne mais amigos e mais cidadãos da Europa...
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