domingo, 23 de dezembro de 2018

D. Manuel Martins: “Nascemos Livres”, uma mensagem com Direitos Humanos



São cinquenta as crónicas que se albergam sob o título Nascemos Livres (Porto: Fundação SPES, 2018), livro póstumo do primeiro bispo de Setúbal, D. Manuel Martins (1927-2017), inicialmente publicadas no Jornal de Matosinhos, entre Setembro de 2016 e Setembro de 2017, com abertura de José Ferreira Gomes (presidente da Fundação SPES) e prefácio de Eugénio da Fonseca (professor setubalense, presidente da Caritas e uma das pessoas que mais dialogou com D. Manuel Martins).
O título do livro não é inócuo: num tempo como o nosso, em que à liberdade são impostas muitas fronteiras que pouco têm a ver com a justiça, em que se assinalam os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem (assinada em 10 de Dezembro de 1948), em que continuamente ouvimos falar sobre limitações sociais, a voz de D. Manuel Martins encontra registo neste título, que era uma das suas frases de catequização e de intervenção.
As crónicas são curtas e também neste aspecto jogam a sua eficácia porque os textos vão ao encontro do essencial, partindo de situações concretas e sem rodeios. Logo na primeira intervenção, “Cidadãos abaixo do nível da pobreza”, o dedo é apontado aos responsáveis da “causa primeira desta lamentável situação” que “é a Filosofia Económica que guia o mundo”. A intervenção vai mais longe quando comenta, dando conta do ridículo de situações a que todos assistimos: “Quantas vezes apetece perguntar: mas, afinal, o que é isso de cidadania, de democracia, de direitos humanos? Aqueles (não todos, felizmente) que no-lo propõem ensinar-nos nem imaginam o espectáculo que oferecem a quem o ouve.” E a questão dos direitos humanos vai saltitando, espreitando-nos em quase todas as crónicas, às vezes explicitamente, às vezes implicitamente, suportada em frases tão límpidas quanto estas: “Ser feliz é o mesmo que ter acesso a todos os Direitos Humanos”; “é urgente levar os nossos cidadãos a conhecerem e a apaixonarem-se pela Declaração Universal dos Direitos Humanos”; “é no mundo que a Igreja se move e vive para cantar, promover e defender a dignidade do Homem, os Direitos Humanos são a sua profissão”; “a Declaração consta de trinta artigos e ficamos com a impressão de que são o Evangelho traduzido em linguagem do nosso tempo”.
A confessada adesão ao espírito do Papa Francisco (a quem chama “o Papa com o relógio acertado” ou o “Papa Profeta”) leva-o aos desafios que se põem à nossa relação com a Natureza ou com o dinheiro ou à mudança necessária dentro da própria Igreja - “Queremos padres no mundo, que se enterrem no mundo, para aí iluminarem e ajudarem a descobrir e a testemunhar os verdadeiros valores.”
Assunto das suas crónicas vão sendo os acontecimentos, o real com que as pessoas se confrontaram durante aquele tempo dos textos-encontro publicados ao ritmo semanal: as eleições em Portugal, em França ou nos Estados Unidos; as controvérsias em torno da Caixa Geral de Depósitos; a colocação de professores; as ameaças à paz; as dificuldades do cidadão comum; os falecimentos de Mário Soares e de Daniel Serrão; os exemplos de Abel Varzim, de Sebastião Soares de Resende e de António Ferreira Gomes; a celebração dos dias (do Doente, dos Namorados, do Natal, da Páscoa, do Carnaval, do Trabalhador, da Mulher, do 25 de Abril, da Mãe); a solidariedade como prática do quotidiano; o centenário das Aparições em Fátima ou a Semana das Vocações; os incêndios. A interpretação que D. Manuel Martins apresenta da vida tem, numa das mãos, os factos e na outra, a palavra bíblica, seja por referência directa ao livro sagrado, seja através de testemunhos relacionados com o mesmo livro.
Mesmo para os seus leitores matosinhenses, o primeiro bispo sadino não esqueceu nestas crónicas a referência à sua “querida diocese de Setúbal”, ao contar, com data de 26 de Setembro de 2016, um caso de “testemunho coerente e corajoso da nossa fé”, assente na Doutrina Social da Igreja - a criação do restaurante social e do consultório dentário social levada a cabo na paróquia de Nossa Senhora da Conceição pelo padre Constantino Alves, um gesto que dá alento ao slogan “todo o homem tem direito a sorrir” e que D. Manuel assim comenta, enaltecendo esta iniciativa da paróquia: “Eu vejo neste slogan o melhor compêndio do respeito pelos Direitos Humanos.”
Uma outra referência à margem do Sado surge pela poesia de Sebastião da Gama, quando, ao evocar as palavras do Papa na recepção que fez aos sem-abrigo, aconselhando-os a nunca deixarem de sonhar, D. Manuel Martins remata: “Pelo sonho é que vamos! Apetece acrescentar.”
A última crónica, “O nosso querido Bispo”, surge datada de 16 de Setembro de 2017, a evocar o prelado portuense D. António Francisco dos Santos (1948-2017), que falecera cinco dias antes. Logo no parágrafo inicial, é dito que este bispo conquistou o Porto em três anos, “em pouco tempo tornou-se alma do Porto”. Depois, são lembrados outros importantes prelados da diocese - D. António Augusto Castro Meireles (1885-1942), D. António Ferreira Gomes (1906-1989), D. Júlio Tavares Rebimbas (1922-2010) e D. Armindo Lopes Coelho (1931-2010) -, todos por razões diversas, mas com uma marca forte no cronista. A concluir, o texto questiona: “D. António Francisco como nos marcará, como marcará o Porto?” E a resposta fecha o artigo: “Para mim, como o nosso querido Bispo.”Não podemos ler esta última crónica sem pensar que, por vezes, a vida nos surpreende. Com efeito, D. Manuel testemunhava sobre prelados que conheceu, tendo como pretexto a morte repentina do “seu” bispo.
Uns dias depois de ter produzido esta crónica - oito, em 24 desse Setembro -, D. Manuel Martins partia também. A forma como fechou a sua derradeira crónica bem podia aplicar-se ao final que poderíamos escolher para um testemunho sobre D. Manuel Martins! Nascemos Livres, este livro, bem pode integrar um testamento espiritual legado pelo “nosso” primeiro bispo!

sábado, 22 de dezembro de 2018

Bruno Elias - Fotos da biografia de um rio, o Sado



Abre-se o livro, em formato álbum, e lê-se a explicação do autor: “Este trabalho surgiu de uma memória de infância”. Logo a seguir, insiste-se nesse período de vida: “com 6 ou 7 anos é-se capaz do deslumbramento nas pequenas descobertas”. Pelo meio dos três parágrafos (o livro não tem mais escrita do que esta), percebe-se que Rio de Moinhos, na margem do Sado, foi o paraíso infantil, a terra das “férias de Verão”, e que a vida se encarregou de mostrar que o que era ali um pequeno rio se tornava em Setúbal na baía que é. Está-se perante Sado (Setúbal: Visor / Krrastzepy Verlag, 2018), obra surgida nas livrarias no início deste Dezembro.
Depois, são 45 fotografias do trajecto do Sado, desde Ourique (onde nasce) até Setúbal (onde mergulha no oceano), a preto e branco, falando por si, mostrando, acompanhadas de uma legenda objectiva e lacónica que refere apenas o sítio e as coordenadas geográficas. No final do conjunto, há um mapa com o itinerário do rio, que refere também os poisos que permitiram ver, contemplar e fotografar o Sado.
Faça-se então o roteiro: Ourique (onde o percurso inicia, com a latitude norte de 37°37’43.0’’ e com a longitude oeste 8°14’13.9’’), Albufeira e Barragem do Monte da Rocha, São Romão de Panóias, Alvalade do Sado, Azinheira dos Barros, Santa Margarida do Sado, Monte da Quinta de Cima, Rio de Moinhos do Sado, São Romão do Sado, Casa Branca, Vale de Guizo, Alcácer do Sal, Carrasqueira, Setúbal (zona industrial, Parque Urbano de Albarquel e Outão, onde a latitude é de 38°29’15.8’’N e a longitude se cifra em 8°56’11.7’’W).
Quando o rio começa, manifesta-se na sua quase insignificância, um pouco na procura de destino, cabendo depois às fotografias mostrar o encorpar que vai construindo a identidade do Sado, harmonizando-se e construindo a Natureza, por vezes artificialmente domado, por momentos selvagem e revolto, em alguns pontos idílico e remansoso. Em Santa Margarida do Sado, parece rir-se da obra inacabada com os pegões de betão que suportariam a estrada; em Rio de Moinhos, parece segurar a tosca passagem de madeira que o atravessa; em Alcácer, espelha a cidade e alimenta o arrozal; em Setúbal, molda a paisagem urbana; frente ao Outão, o Sado despede-se.
A fotografia que Bruno Elias nos apresenta a preto e branco permite-nos colorir a paisagem, sabendo-se que o rio vai matizando o seu trajecto, ao mesmo tempo que vai adquirindo aquelas cores com que os seus admiradores o firmaram - ora o rio dourado que o padre Jerónimo Botelho requeria por 1758 ao dizer “não sei que de suas areias se tirasse ouro, mas não duvido que o tenham, se algum poeta quiser dar às águas do Sado o epíteto de douradas, aprovarei, porque, em muitos lugares, resplandecem como ouro”, ora o rio azul que o poeta e médico transmontano Cabral Adão trouxe para os versos no início da década de 1950.
Um Sado a revelar-se lentamente em cada fragmento da sua biografia e a desafiar o olhar que o contempla é o que a lente de Bruno Elias nos propõe.

domingo, 9 de dezembro de 2018

Sebastião da Gama e o Natal


Fragmento do manuscrito do poema "Presépio", de Sebastião da Gama

Nas férias escolares de Natal de 1949, Sebastião da Gama (com 25 anos, exercendo funções docentes nesse ano lectivo na Escola Veiga Beirão, em Lisboa) registava no seu “Diário”: “O maior calor do meu Natal vem-me das Boas-Festas dos meus rapazes. Não foram os seus cartões — alguns tão belos!, todos, para o meu coração, tão belos! — quase não sentia o Natal; ou sentia mas era uma dor, um vazio, um sonho a desfazer-se.” Razões apontadas para este desconforto ultrapassado pelas mensagens chegadas dos seus alunos eram várias: a vida dos pais muito ocupada nessa altura (o trabalho que tinham na Estalagem de Santa Maria da Arrábida, no Portinho da Arrábida, muito movimentada nesta quadra do ano), a dedicação do irmão Sérgio à sua nova família e o facto de Joana Luísa, sua namorada, ainda não estar com ele. E comenta Sebastião: “tudo isto dispersa as brasas da lareira que eu neste dia queria ver todas unidas, todas uma”. Um pouco adiante, há ainda lugar para uma referência à quantidade de missivas chegadas: “tive, em todos os correios de férias, os cartões das raparigas e dos rapazes. E a alegria é maior quando, como agora, se lembram de mim os que eu menos contava que se lembrassem — e quando são os alunos que o já foram os mais presentes. De alunos velhos, tive até hoje 21 cartões; de alunos de agora três apenas. Com que amor os guardo! — são as minhas comendas, as minhas grã-cruzes.”
O Natal foi para Sebastião da Gama uma quadra com tudo o que de mais espiritual, fraterno, familiar e partilhável se possa imaginar, a acreditarmos nos registos que deixou. É de 13 de Dezembro de 1941 um poema de três quadras, ainda inédito, que intitulou “Carta de Boas Festas”, por onde perpassa o ambiente histórico, económico e social que se vivia (estávamos em tempo da Segunda Grande Guerra), ao mesmo tempo que nos deixamos deslumbrar com o sentido de humor e de oportunidade que animava o jovem Sebastião, então com 17 anos: “Natal à porta. E eu, minhas amigas, / doces espigas deste meu trigal, / qu’ria dar-vos, sim, ofertar-vos broas, / que são tão boas cá em Portugal. // Mas, como sabeis, a maldita Guerra / lavra na terra, tudo leva após. / Açúcar levou, levou a canela... / Broa qu’é dela? Qu’é dela a filhós? // No Porto busquei, busquei em Lisboa; / não vi ‘ma broa, sequer rasto destas. / Desculpai-me pois se eu dou, neste dia, / não que devia, mas só boas festas.”
Uns dias depois, em 24 de Dezembro, o Natal voltava a ser motivo de poema, que, dedicado a Júlia de Carvalho, assim dizia, em jeito de quem conta uma história: “Falta só um dia, meninos, ouvi, / para fazer anos que, na Nazaré, / a doce ovelhinha fazia mé-mé, / Jesus, nas palhinhas, fazia chi-chi, / sorria, encantado, o bom S. José. // Jesus foi crescendo: no chão foi dispor / um’árvore bela chamada Verdade, / que tinha por frutos a santa Bondade, / rosados quais peros, de estranho dulçor, / que sempre comê-los só dava vontade. // À sombra tão larga se vinham sentar / os bons caminheiros da estrada da Vida. / E, debaixo de si, a paz tão pedida, / os frutos gostosos, os vinha encontrar / quem perto passava e a via florida. // Vieram as chuvas, vieram os ventos / que, feros, quiseram abaixo deitá-la. / Nem ventos nem chuvas, não vinham quebrá-la / que, sempre aprumada no meio dos rebentos, / só vinham movê-la, mui pouco vergá-la. // E os frutos gostosos são cada vez mais; / e as folhas de esp’rança voando mais vão; / e alguma pernada queimada ao fogão / produz luz tão forte, produz chamas tais / que são claro dia nesta escuridão. // Falta só um dia: Jesus, nas palhinhas, / sorria aos reis magos, sorria a José. / A doce ovelhinha fazia mé-mé / e Deus, a Maria, maior das rainhas, / olhava e sorria lá na Nazaré.”
Três anos passariam para, em carta a Joana Luísa (ainda sua namorada), escrever: “Hoje é dia de Natal! Hoje é dia de Natal! Nas capelas todas, os sinos todos toquem! Cantem a minha Alegria por ser dia de Natal! Porque será que a minha Alegria é assim suavezinha como uma saudade, como um cair de Tarde?” Um pouco adiante, na mesma carta, transcrevia um poema feito nesse dia: “Eu não tenho razão pra estar triste... / Eu hoje sou a Estrela e os Reis Magos / e sou a ovelhinha do Presépio... // Mas vou triste, Menino de Belém. / Não me lembra que faltam / trinta e três longos anos pra que eu seja / a dor que há de matar a Tua Mãe.” A concluir a carta, despedia-se: “Pois adeus, Luísa. Eu não venho desejar-te, como toda a gente, um Natal muito feliz e um ano novo cheio de prosperidades. Venho desejar-te um Natal igual ao meu: um Natal que é uma brasa na lareira; que é uma espécie de perdão.” Haverá melhor mensagem natalícia a transmitir?
O mais conhecido poema de Sebastião da Gama sobre o Natal será, porventura, “Presépio”, datado de 24 de Dezembro de 1950, inserido no livro póstumo Pelo Sonho é que Vamos. Escrito na “véspera de Natal de 1950”, nesse mesmo dia integrou um postal que de Azeitão foi endereçado ao seu amigo, também poeta, Cristovam Pavia. Além de indicar quando partiria para Estremoz e de transcrever o poema, o importante da mensagem era: “Hoje quero só mandar-lhe um grande abraço de Ano Bom”. O poema, conterá, talvez, o mais franciscano retrato do que é o Natal, em busca de uma autenticidade que era apanágio do jovem azeitonense: “Nuzinho sobre as palhas, / nuzinho - e em Dezembro! / Que pintores tão cruéis, / Menino, te pintaram? // O calor do seu corpo, / pra que o quer tua Mãe? / Tão cruéis os pintores! / (Tão injustos contigo,  / Senhora!) // Só a vaca e a mula / com seu bafo te aquecem... // - Quem as pôs na pintura?”
Este poema, além de ter sido gravado por Victor de Sousa no cd “Pelo sonho é que Vamos” (Setúbal: Ruquisom, 2000), consta em três antologias, duas delas sendo referência literária sobre a época natalícia: em O Natal na Poesia Portuguesa, organizada por Luís Forjaz Trigueiros (Lisboa: Dinalivro, 1987); em Anunciação e Natal na Poesia Portuguesa, organizada por António Salvado (Lisboa: Polis, 1969); em Antologia de la Nueva Poesia Portuguesa, devida a Angel Crespo (Col. “Adonais”. Madrid: Ediciones Rialp, 1961), onde recebeu o título “Nacimiento”.
in Jornal de Azeitão: nº 267, 2018-12, pg. 15