“Esta será provavelmente a última oportunidade que teremos para salvar o pouco que ainda resta da várzea de Setúbal, ou seja, dar o devido uso aos terrenos ainda livres de betão. (...) Trata-se de terra agrícola onde, em tempos passados, existiram lindas e produtivas quintas e que presentemente se encontra parcialmente ocupada por edifícios habitacionais, de comércio ou serviços. É aqui que agora se pretende construir o maior parque verde sadino, como se de uma última e necessária fronteira entre o passado e o futuro se tratasse.” Estas são as frases iniciais do mais recente livro de Rui Canas Gaspar, A Última Fronteira - Várzea de Setúbal (Setúbal: ed. Autor, 2018), que, no sábado, vai ter apresentação pública na Biblioteca Municipal de Setúbal.
Pelas suas cerca de duas centenas e meia de páginas passa um texto introdutório assinado por Carlos Frescata, que relembra a sua intervenção em prol do ambiente em Setúbal e o papel que a sua geração teve em torno do movimento “Setúbal Verde”, e passam crónicas repletas de histórias e de memórias da várzea setubalense, que foi povoada por quintas, experiências e vidas agrícolas, um espaço a fazer a ligação entre a Setúbal à beira-rio e próxima do mar e a Palmela mais vocacionada para a agricultura.
Aquilo a que hoje se vai chamando “várzea” é apenas uma parte do que ela na verdade foi. Mas o crescimento da cidade foi implacável com esse território ao longo dos tempos, desde a instalação do liceu e da escola básica de 3º ciclo, dos espaços desportivos, das habitações, dos estabelecimentos comerciais, até às faixas rodoviárias. As quintas que alimentaram e sustiveram a várzea são hoje nomes de referência histórica que preenchem memórias. Neste livro, Canas Gaspar leva-nos a visitar algumas dessas quintas (da Azeda, da Azedinha, da Boa Esperança, da Inveja, da Môca, das Palmeiras, do Paraíso, de Prostes, do Quadrado, da Restaurada, da Saudade, da Varzinha); evoca histórias como as do Palácio dos Aciprestes, da tragédia do dono da Quinta do Paraíso numa escaramuça entre liberais e absolutistas, do corte de passagem junto à azinhaga de São Joaquim levado a efeito por jovens da Quercus; relembra personagens como o chefe escutista Joaquim Farinha (que chegou a encontrar-se com o astronauta Neil Armstrong) ou como Joaquim, “o último pastor da várzea”; chama traços caracterizadores de Setúbal como a produção de laranja e os respectivos licor e doce, como as memórias ligadas à ribeira do Livramento (é, aliás, este curso de água que constitui importante pista para uma visita à várzea e às suas histórias).
No final do livro, Canas Gaspar refere ainda o que é o projecto para o futuro da várzea, um Parque Urbano em que é apontada a área de 400 mil metros quadrados, que, “para além de parque lúdico, deverá ter a importante função de defesa da cidade contra o risco de inundação” e constituirá um espaço recreativo e ambiental de elevada importância. Ainda que este projecto venha pôr fim à várzea enquanto espaço agrícola, Canas Gaspar conclui com optimismo que “a necessária e urgente obra só por si será uma lufada de ar fresco e puro, constituindo certamente a última fronteira entre o tentacular betão que paulatinamente tem vindo a impermeabilizar os solos e o verdejante campo que envolve esta linda cidade localizada estrategicamente entre o verde e o azul, uma terra que cada vez mais pessoas escolhem para viver.”
A Última Fronteira - Várzea de Setúbalé um livro que se lê com agrado, ao ritmo da crónica, apontando como máxima pretensão uma viagem pela identidade através de uma viagem no tempo e também a consciência que todos devemos ter quanto ao papel que a Natureza para si reivindica e que passa pelas condições para que a vida seja mais equilibrada.