Quando
Tolstoi quis mostrar ao mundo a reflexão sobre a sua busca da espiritualidade,
sob o título (e sob a forma) de Confissão,
a censura da Igreja Ortodoxa Russa agiu e interditou a publicação. Só dois anos
depois, em 1884, o texto foi divulgado a partir de Genebra, em francês, e, na
Rússia, este título só seria publicado quando o século XX já tinha entrado, em
1906.
Tolstoi
tinha, à data da primeira publicação, 56 anos e um percurso consagrado na
literatura, com obras como Guerra e Paz
(1869) e Anna Karenina (1876), uma e
outra referências da literatura universal. Tinha também um trajecto original de
procura de si mesmo, numa reflexão que passou pelo seu diálogo com várias
religiões, com pensadores, consigo mesmo. Foi este último aspecto que Tolstoi
deliberou partilhar sob o título de Confissão
(Lisboa: Alêtheia Editores, 2014), que remete absolutamente para o pendor
autobiográfico e faz o trajecto da sua relação com a igreja e a crença cristã
ortodoxas a partir da infância.
O
ponto de partida para a reflexão está ancorado na adolescência – “Tal como
outras pessoas, a doutrina da fé ensinada na infância desapareceu, mas com a
diferença de que, desde os meus quinze anos, comecei a ler obras filosóficas,
pelo que tive desde muito cedo noção de que rejeitara a fé. Desde os meus
dezasseis anos deixei de rezar e, por minha própria vontade, deixei de ir à igreja e de comungar. Não
acreditava no que aprendera na infância, mas acreditava em algo. Porém, não
sabia dizer no que tinha fé. Acreditava em Deus, melhor, não negava Deus – mas
não sabia em que tipo de Deus acreditava. Também não negava Cristo e os seus
ensinamentos, mas não sabia ao certo em que consistiam.”
Parece
este ser o ponto de ruptura comum a muitos trajectos. Porém, no que Tolstoi se
distancia do comum, além do gesto de “confessar”, é na convicção de que a sua “única
fé verdadeira era a crença no aperfeiçoamento pessoal”.
No
entanto, o mundo nem sempre se compraz com a individualidade. A vida de luxo, o
progresso, a sociedade, as atrocidades… tudo serviu a Tolstoi para reflectir
sobre a(s) verdade(s) que deve(m) orientar uma vida – a dádiva e a permanente
busca de respostas, ainda que num percurso nem sempre sereno e afectado mesmo
pela ideia de suicídio.
Apesar
de perceber que, “para entender o que é, o homem deve primeiro entender o
mistério inteiro da humanidade, a humanidade feita de pessoas como ele, que não
se entendem”, o autor de Confissão
mostra também a fragilidade e a solidão que interferiam com essa demanda: “Na
minha busca de respostas à questão da vida, senti-me como um homem perdido num
bosque.”
Percurso
inconstante, de pressão, agitado entre uma curiosidade ilimitada e a luta entre
o conhecimento e a ignorância, Tolstoi quer entender o que é a fé, quer ter fé,
e chega a uma conclusão como: “a fé é conhecimento do sentido da vida humana, a
consequência pela qual o homem não se mata mas vive. A fé é força da vida. Se
um homem vive, então tem de acreditar em alguma coisa.”
Procurando
uma justificação para a vida, Tolstoi revela o estudo que fez de outras formas
de ver o homem, o universo e a fé, como o budismo, o maometanismo e o
cristianismo, “tanto através dos escritos como através das pessoas” que viviam
em seu redor, marcos que o levaram a ver a frequência com que ocorria muito
mais uma “consolação na vida” do que a “realidade” da fé e o levaram a
“aproximar-[se] dos crentes pobres, simples, sem estudo”. Este último contacto
despertou o autor de Guerra e Paz
para o sentido da bondade, da “produção de vida”, emergente de pessoas que,
trabalhando duro, “eram menos insatisfeitas com a vida do que os ricos”.
O
retoque final no processo tolstoiano surgiu com o reconhecimento de que cada
igreja, incluindo a sua (a Ortodoxa), “via como hereges todos os que não
professavam uma fé idêntica à deles”, afinal o problema de sempre da procura e
do encontro com a verdade… agravado quando esta procura se cruza com aquilo que
é feito em nome da religião, envolvimento na guerra incluído, daí decorrendo toda
a relativização que um valor como a vida apresentava para quaisquer crentes. A
fé, que o poderia aproximar de Deus, mostra-se-lhe incompatível com rituais.
Chegado
a um beco, Tolstoi assumia um compromisso: “Não tenho dúvidas de que existe
verdade nos ensinamentos mas também não tenho dúvidas de que existe falsidade
neles também e que eu devo descobrir o que é verdadeiro e o que é falso e
separar um do outro”.
A
reflexão confessada de Tolstoi repousou ao longo de três anos, tempo após o
qual o autor se reencontraria com o seu escrito. Relendo-o, teve um sonho, algo
místico, com cuja narração encerra a Confissão,
em que o seu corpo se encontra entre abismos, para baixo (um “abismo sem
fundo”) ou para cima (um “abismo de céu”), apoiado sobre corda e pilar, sem
possibilidade de cair, segurança que lhe garantia felicidade e tranquilidade.
No momento desta descoberta, o sonho acaba, a vida desperta e o livro
conclui-se.
Aquilo
que o homem não obtivera pelo trabalho da razão aparece pelo contacto com a
simplicidade, ponto de partida para diferente vivência da espiritualidade.
Busca profundamente assente num trajecto do eu, sempre olhando o outro, ora com
curiosidade, ora com deslumbramento, esta confissão não esconde o ziguezaguear
do pensamento e as dúvidas que cada aprendizagem suscita, sobretudo quando o
percurso é de demanda ou quando se pretende justificar e mostrar a ruptura.
Uma
boa forma de conhecer o mundo da espiritualidade de Tolstoi, com uma boa nota
introdutória de contextualização histórica devida a José Milhazes, este livro,
ainda que se deva reconhecer que, no plano da tradução ou da revisão, a edição
não é boa, havendo, por vezes, frases de sintaxe incompreensível.
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