sábado, 1 de março de 2014

Memória da Grande Guerra em Setúbal

Em 1935, sob o título “Uma História da Acção dos Portugueses na Grande Guerra”, o general Ferreira Martins escrevia: “Não é segredo para ninguém que a acção dos portugueses na Grande Guerra é quase ignorada no estrangeiro. Muita gente sabe que Portugal entrou na Guerra, mas ninguém sabe ao certo o que fizemos na Guerra.” A observação surgia a propósito de uma ideia lançada em França por Jacques Péricard, que pretendia publicar uma história da Grande Guerra apoiada nas narrações dos combatentes, tendo, para a recolha dos testemunhos portugueses, contactado Ferreira Martins, que, neste artigo, citava o estilo inflamado e apelativo do autor francês: “Não é na obra de um homem que eu vos convido a colaborar, mas numa obra nacional. É agora e não mais tarde que nós podemos reunir em comum as nossas recordações. Dentro de vinte anos estaremos bem disseminados. Mais tarde, é nesse livro que nossos filhos, nossos netos e a posteridade irão procurar a imagem verdadeira do Soldado Português na Grande Guerra. Poder-se-ão escrever, no decorrer dos séculos, centenas de histórias da Grande Guerra, nunca se poderá recomeçar a história da guerra pelos antigos combatentes, que vamos agora escrever juntos”.
A questão que Ferreira Martins considerava estava relacionada com a memória e com a inscrição, aspectos a que nem sempre se tem dado a devida importância. E, olhando para trás, é fácil ver que a memória da participação portuguesa na Primeira Grande Guerra tem sido frágil, muito frágil. Tanto quanto nos permite a linguagem dos números, pensemos em alguns: para a Grande Guerra, entre os vários contendores, foram mobilizados quase 74 milhões de combatentes, tendo havido 38 milhões de baixas registadas (51,8%), entre as quais cerca de 9 milhões e meio de mortos (quase equivalente à população portuguesa actual); relativamente a Portugal, os mobilizados foram cerca de 106 mil (não contabilizando tropas nativas de África), tendo-se registado 33 mil baixas, incluindo cerca de 7 mil e duzentos mortos e desaparecidos.
O que mais interessa nesta observação é o que os números representam de humano, de sofrimento humano, de sonhos destruídos, de tempo gasto na ruína dos seres humanos e do mundo. Estariam estes homens preparados para o confronto com todas as novidades que esta guerra nos trouxe, fosse em termos de estratégias, de formas de combate, de armamentos? Não, não estavam. Partiram estes homens com o sonho de ir construir algo novo, a paz, e confrontaram-se com a força da morte, da destruição, do caos.
A Grande Guerra, a Primeira, acabou oficialmente em Novembro de 1918. Mas, na verdade, ela foi acabando, num prolongamento que se estendeu por muito tempo. E não estou a referir-me apenas ao facto de a Segunda, cerca de 20 anos depois, ter surgido; mas, sobretudo, à dor que se entendeu por famílias, por países, e que se ramificou. Por isso, não espanta que, quando em 1998, em França, foi realizado um inquérito sobre os dez mais importantes acontecimentos do século XX, a Primeira Grande Guerra tenha surgido em quarto lugar, antes, por exemplo, da construção europeia, da crise de 1929 ou da Revolução Russa, numa lista em que nem a chegada do homem à Lua entrou!
Em altura do centenário da Grande Guerra, partamos de três nomes para falar da memória: Francisco Pinto Vidigal, Joaquim da Encarnação e Manuel Avelino Correia, naturais das freguesias de S. Sebastião, Anunciada e S. Julião, respectivamente, no concelho de Setúbal. Os três foram mortos nesse conflito e o primeiro deles terminou a vida em 9 de Abril.

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