Cântico
primaveril é o quarto livro de Ilídio
Gomes a viver de poesia (Setúbal: ed. Autor, 2012). Com esta obra, o autor pretende, nas suas próprias palavras, “fechar um círculo”, mesmo correndo o
risco “de uma qualquer deficiente verbalização”, com humildade mas com
satisfação, liricamente sentido.
Ressalta desta nota inicial do autor a ideia de
missão, de compromisso com a palavra e consigo mesmo, numa atitude de veneração
pela poesia, construção que lhe preenche espaços, muitos espaços, da vida.
Ao quarto livro, que Ilídio Gomes sugere ser o último,
o título remete-nos para o período da criação, a Primavera, curiosamente numa
ordem que apenas a poesia pode permitir. Se olharmos a sequência de títulos
publicados, vemos que o Outono antecedeu esta Primavera, já que, em 2005, tinha
saído Cântico outonal e, sete anos
passados, surge Cântico primaveril. A habitual ordem das estações do ano, que nos
habituámos a decalcar das idades da vida e do pulsar do calendário, foi aqui
subvertida, numa lógica de que a palavra é instrumento de criação e de que a
poesia não se deixa limitar por barreiras de outra ordem que não os momentos do
sujeito poético. Fechar o ciclo com a Primavera é acreditar na criação!
Apresenta-se este livro como um conjunto de “crónicas
e poesia”, uma e outra partes com contornos imprecisos, mas ambas sujeitas a
fortes epígrafes.
Comecemos pela primeira, pedida emprestada a Sebastião
da Gama: “Que importa, meus versos, que vos tomem / (e eu vos tome também) por
chaves falsas / se vós me abris as portas verdadeiras?” O que se afirma é a
vontade do poeta, a capacidade que a palavra tem de ser uma chave que resolve
os mistérios apresentados pelo mundo – chave, no sentido da decifração; chave,
enquanto abertura possível para seguir a rota do desvendar dos máximos segredos
e revelações.
A segunda epígrafe é de Miguel Torga e diz: “Não há
espelho mais transparente que uma página escrita.” E temos a mensagem poética
na sua função especular, a revelar o poeta ao mundo, a devolver ao leitor o
descobridor de segredos.
Ambas as citações, que Ilídio Gomes colocou a abrir as
duas partes do livro, contribuem para justificar esta voz que se ouve em Cântico primaveril. Por cerca de uma
centena de textos passam procuras, verdades, descobertas, crenças.
Intervalam-se quadros do longe com motivos da proximidade, numa oscilação entre
a partida, em viagens de ausência quase sempre feliz, e o estar aqui, em
momentos de regresso, para evocar quadros de vida, lembranças, aprendizagens,
onde não faltam o Sado, a Arrábida, a cidade ou os seus jardins.
Tudo passa pela partilha através da palavra – “hei-de
escrever / todos os versos que a Musa me ditar / e dá-los-ei ao Mundo para os
ler!” Tal comunhão vive das convicções (“sempre fiz da razão a única força da
verdade”), da descoberta do valor do tempo e da vida (“sempre gostei de falar
da vida, / tema que guardo serenamente / no meu vocabulário, em palavras / de
silêncio, que guardo avidamente / por respeito à memória dos tempos”), da
fixação em momentos de paisagem, acompanhando, por exemplo, o voo da gaivota (“sei
que depois voltas calma, serenamente, / à cidade no teu voo de asas brancas, /
a deitar luz sobre as águas mansas do Sado”) ou o sulcar de um veleiro (“navega
cortando as brumas e as vagas, / numa marcha firme, sempre mais audaz, / meu
veleiro branco que larga o cais / com rumo traçado em busca de paz”).
Por estes poemas passam também valores, chaves outras
de orientação e da vida, de que destaco dois: a energia que pode jorrar da
humildade (“é muito provável que ninguém saiba / por ser segredo / que a força
da humildade / contraria a escuridão do nosso medo”) e um forte sentido do que
é ser homem e senhor do destino, em liberdade (“sou eu quem guia o meu caminho,
/ não há mares, rios, oceanos, / ventos ou tempestades / que consigam
transformar o meu querer”).
Dizer poético é esta mensagem de Ilídio Gomes, através
de um cântico que louva a vida, dele não sendo alheias marcas da dureza que a
constrói, num esforço preocupado de encontrar a essência que caracteriza o
homem e que define uma vida! São esses momentos que a palavra poética
transforma em Cântico primaveril!
[Na apresentação da obra, no sábado, em Setúbal.]