quinta-feira, 24 de julho de 2025

Entre a gramática e as rosas

 


“Em qualquer língua, e muito mais na nossa, saibamos que a primeira e principal virtude da língua é ser clara e que a possamos todos entender.” Quem assim escreveu foi o aveirense Fernão de Oliveira (1507-1580?), autor da primeira gramática sobre a língua portuguesa, publicada em 1536, Gramática da Linguagem Portuguesa.

Começava assim, para o português, o que deveria ser um tratado sobre uma língua como factor de identidade e o estabelecimento de um conjunto de normas para afirmação dessa mesma estrutura. Ao longo dos tempos, esse fulgor normativo vingou, por vezes tentando sobrepor-se à criação literária (que, muitas vezes, se caracteriza pela capacidade de transgredir criativamente a norma), nem sempre tendo havido o doseamento necessário para que a gramática fosse vista como um auxiliar em vez de ser uma finalidade... por vezes, tentando sobrepor-se à literatura e nem sempre conduzindo ao gosto de ler, infelizmente.

Foi em 16 de Março de 1949 que Sebastião da Gama (1924-1952), então professor de Português na Escola Veiga Beirão, em Lisboa, escreveu no seu Diário, um pouco em jeito de desabafo quanto à obsessão da gramática de muitos docentes: “Olho para o passado e vejo a Gramática. A Gramática. A Gramática. Eu nem sei como aprendi a gostar de ler. Talvez por uma predisposição interior, uma fatalidade. Deve ser, sim: porque os meus companheiros não liam e estou quase certo de que não lêem. (...) Os outros também fechavam os livros (ou não chegavam a abri-los... ) mas era por causa da Gramática.” E explicava, a seguir: “Porque é que se não ensina a Gramática, já sistematizada, senão depois de os escolares poderem já ver o que ela é e sobretudo depois de já gostarem das palavras? A palavra, para os gramaticómanos, é um cadáver numa mesa de anatomia; quem pode amar um cadáver? Depois da dissecação do estilo, a beleza, a música, a personalidade de cada palavra já não pode ser gostada pela criança, receosa de errar o género, o número, a forma da palavra que tem em frente; e receosa do oito, do sete, do seis da tabela; e receosa do ponteiro com que certos professores ensinam, impõem a gramática.” Talvez estes exageros tenham sido os responsáveis pela pertinente observação “O meu ídolo é a gramática portuguesa, à qual faço constantes heresias.”, deixada por Agustina Bessa-Luís (O livro de Agustina Bessa-Luís, 2007), ou por outra, mais arrojada, devida a J. Rentes de Carvalho, ao registar no seu diário: “Não recordo obra-prima da literatura saída das mãos de um especialista da gramática.” (Pó, cinza e recordações, 2014).

É forte o desafio do poeta-professor azeitonense, um quase grito de revolta, que encontrava sustentação nos ensinamentos que bebia do seu professor metodólogo, Virgílio Couto (1901-1972), autor do programa de Português para o ensino técnico em 1948, que defendia que o estudo da gramática tinha “corrompido a lição de Português, tornando em estéril esforço de exegese o que houvera de ser fecundo estímulo de formação mental e estética” e advogava que ele devia ser “não sistematizado, feito em presença dos casos ocorrentes no trecho”, conduzindo à aprendizagem “das normas pela observação reflectida dos fenómenos”.

Quando escreveu as suas memórias do ensino, Frank McCourt (1930-2009) reflectiu sobre o papel da gramática de uma forma metafórica e pacificadora — “A psicologia é o estudo do comportamento das pessoas. A gramática é o estudo do comportamento da língua.” (O professor, 2009) Terá passado por pensamentos como este a prática do professor que Sebastião da Gama foi, quando, em 26 de Julho de 1948, escreveu à sua amiga Leonoreta Leitão, a contar a última aula que tinha dado em Setúbal: “Ontem gostaria que estivesses na minha aula das onze. Foi a última às minhas meninas de Português — as únicas que eu tive em Português e que ensinei a amar a Poesia. (...) Ora, depois de terem cantado, uma delas leu umas palavras estupendas que escrevera e que acabavam por um ‘viva o sr. doutor! viva a Poesia — abaixo a gramática!’”

Não se trataria de uma rebelião, mas de um olhar a gramática como algo diferente dos códigos punitivos, mesmo porque, como Álvaro Laborinho Lúcio registou no seu romance As Sombras de uma Azinheira (2022), “a gramática é o local onde as palavras fazem as pazes” e “a poesia é o lugar onde as palavras se entregam ao poder do pensamento livre”, porque ela “está acima das palavras”, “são elas que lhe obedecem, que se lhe entregam.” Voltando a Sebastião da Gama e ao seu Diário, em 20 de Abril de 1949, ele auto-receitava-se: “Talvez não seja errado, portanto, dar-lhes agora, uma vez por outra e por sugestão dos textos, aquilo que na gramática é fundamental e útil. Ir traçando um panorama geral da Gramática em linhas simples – e, a enfeitá-lo, rosas, rosas, muitas rosas...” Princípio simples, mas fundamental!

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1577, 2025-07-23, pg. 9.


sexta-feira, 18 de julho de 2025

Um dicionário para a história de Setúbal

 


São 474 entradas devidas a 74 colaboradores, num trabalho coordenado por Albérico Afonso Costa (n. 1951) sob o título Dicionário de História de Setúbal, agora apenas o primeiro volume (de um previsto conjunto de três), abrangendo as cinco primeiras letras.

Por coincidência, o primeiro artigo remete-nos mesmo para o imaginário do que são as “primeiras letras”, nota sobre “ABC”, um quinzenário que, em Abril de 1915, se anunciava em Setúbal a pretender dizer “bem alto a Verdade e a Justiça, tendo por lema o tradicional doa a quem doer”, mas que teria duração efémera, saindo apenas cinco números. A última referência deste volume vai para “Expostos (Casa da Roda dos)”, prática que expunha recém-nascidos, abandonados por razões diversas, à caridade pública, explicando contextos e indicando localização e alguns números desta prática em Setúbal.

No essencial, esta obra bem se equipara a um “dicionário enciclopédico” de carácter local, reunindo os assuntos por ordem alfabética (à semelhança dos dicionários) e carreando para cada um deles uma quantidade de informação, em forma sistematizada, à maneira das enciclopédias, assim conjugando ordem e saber, numa tentativa de facilitação de procura e de acesso a informação e de lançamento de pistas que podem constituir pontos de partida para investigações mais aturadas, não faltando mesmo indicações bibliográficas de apoio em grande parte dos verbetes.

Se a historiografia de Setúbal já tem alguns títulos de ordenação sistematizada no domínio das biografias — devidos, por exemplo, a Fran Paxeco (1874-1952), em Setúbal e as suas Celebridades (1930), a Óscar Paxeco (1904-1970), em Setubalenses Homens Ilustres da Igreja (1966), a Ricardo Correia (1917-2004), em Vultos Setubalenses (1986) e em Figuras Populares de Setúbal (1987), ou a João Francisco Envia (1919-2010), nos dois volumes de Setubalenses de Mérito (2003 e 2008) —, o mesmo não acontece relativamente a momentos, espaços ou temas que tenham tido repercussão na história sadina (ainda que, quanto ao jornalismo, haja um catálogo, A Imprensa em Setúbal - 1855-1983, devido a Idília Martins, editado em 1984) ou que a liguem a momentos históricos nacionais, apesar da vasta bibliografia e cronologias setubalenses elaboradas por investigadores locais como Albérico Afonso Costa, Almeida Carvalho, Álvaro Arranja, Carlos Mouro, Carlos Tavares da Silva, Diogo Ferreira, Joaquina Soares ou Rogério Peres Claro, entre muitos outros.

Dicionário de História de Setúbal dá um contributo para essa ordenação de acesso facilitado, seguindo o alfabeto, ao reunir informação diversificada — a título de exemplo, a letra A, com 113 entradas, estende-se pelo historial de uma dúzia de títulos de imprensa, de meia centena de biografias, de mais de 30 instituições e de mais de uma dúzia de entradas relativas a acontecimentos, especificidades ou situações (como “Anticlericalismo Republicano”, “Aqueduto de D. João II” ou “Atentado contra Almeida Carvalho”, por exemplo).

Valerá a pena prestar atenção a dois objectivos desta obra apontados no texto introdutório, da responsabilidade do organizador: pretende-se uma afirmação contra a “estranha época de esquecimento planificado” em que, frequentemente, nos sentimos viver, como se perspectiva “entregar à cidade partes do seu passado”, entendendo-se a “cidade” como a sociedade ou como a identidade que a fazem. Ao ser estabelecido como critério que, quanto aos biografados, aparecerão apenas os já falecidos, terá o leitor de olhar para este “Dicionário de História de Setúbal” como algo que se vai actualizando, que vai seguindo o rumo dos acontecimentos humanos, assumindo-se que nunca está obra completa, independentemente das “ausências” que desde já sejam notadas e que podem vir a ser supridas num eventual espaço de “adenda” ou de “actualização” a ser inserido no último volume...

É sabido que a consulta dos periódicos acaba por, no domínio das reconstituições históricas e da verificação de factos, assumir um papel de importância para a investigação, sobretudo no domínio da história local. Francisco Rito, director de O Setubalense (editor desta obra), refere essa dimensão dos jornais em nota introdutória em que não falta o tom compromissivo, ao dizer que “os jornais vieram para guardar o tempo até ser ressuscitado”. É, por isso, interessante que a iniciativa de publicar uma obra deste género, além da responsabilidade do seu coordenador e dos autores, tenha o peso da responsabilidade de um jornal regional, atitude que faz jus ao princípio que alimenta qualquer periódico — o de contar a história do quotidiano do mundo, transformando os dias em história, alimentando o romance do ser humano e dos acontecimentos (como o podemos verificar desde que, em Dezembro de 1641, se começou a publicar o mais antigo jornal português, a Gazeta em que se relatam as novas todas que houve nesta Corte e que vieram de várias partes no mês de Novembro de 1641). Este Dicionário de História de Setúbal não será perfeito, mas contribui para a construção da perfeição que sempre se deseja, possibilitando olhares múltiplos sobre o passado e sobre os caminhos que permitiram a chegada ao presente.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1572, 2025-07-16, pg. 10.


quarta-feira, 9 de julho de 2025

J. Rentes de Carvalho: o protagonista do Monte da Dor



Saiu em 1968 (edição recente na Quetzal) e foi o primeiro romance de José Rentes de Carvalho (n. 1930), indo buscar o título, Montedor, a um lugar da freguesia de Carreço. Da localidade pouco se fala, para lá de algumas curtas indicações como a proximidade com pescadores ou a vista para a Galiza, por exemplo, porque o que interessa é apresentar um retrato de uma personagem num espaço sem perspectivas e onde o horizonte parece apenas o que resulta da geografia.

Naquela década de 1950, o protagonista é um jovem que abandona os estudos, vai cumprir a tropa em Lisboa, regressa à terra, aguenta-se a viver à sombra dos pais, acalenta o sonho de partir e está cada vez mais enredado no círculo da aldeia, da família, das limitações que a organização social lhe vai impondo, quase sentindo sobre ele a maldição que a avó, um dia, lhe prescreveu — “este menino há-de trazer desgraça” —, revelada logo no início da história, e que a mãe manteve, ao dizer-lhe, no final da narrativa: “Às vezes, dá-me pena que sejas meu filho! Hás-de ser infeliz toda a vida!”

A necessidade de sair, de se libertar daquela terra, onde qualquer promessa de futuro dependeria do favor do abade ou de alguém muito bem colocado na vida, aquece a sua coragem, mas é, outras tantas vezes, motivo de desânimo, num regressar ao ponto de partida. Os sonhos (ir para Lisboa, para Paris, para a Austrália — o que lhe motiva uma chamada à polícia —, para a Marinha) ou as tentativas de os concretizar (pedindo dinheiro emprestado, roubando jóias da avó para as vender e obter dinheiro, encarar a tropa como possibilidade de alterar o curso da vida) regressam sempre ao espaço centrado na família e na casa (onde só o seu quarto parece ser refúgio de liberdade), na subserviência aos possíveis favores que alguém importante possa fazer. A dureza da sua luta interior encontra ecos em momentos como aquele em que o serviço militar em Lisboa se aproximava do final (num tempo em que o cumprimento da tropa era encarado como a grande possibilidade para mudar de vida) — “A tropa estava a acabar e, ao contrário dos mais, contava os dias com aflição, porque não me decidia a fugir - para onde? - e voltar a casa era entrar na gaiola donde o acaso me tirara.” —, ou aqueloutro em que, sentindo-se prisioneiro dos seus medos de arriscar, já na terra, desabafa consigo: “A remoer a puta da vida. (...) Por dentro é que sinto uma ânsia, a certeza dum desarranjo, coisas fora do seu lugar. Sem saber onde. Ânsia que se faz forte com marés, mas sempre presente. Um medo, para dizer a verdade.”

Os jornais e revistas de França que uma possível apoiante para novos caminhos lhe oferecia acentuam o desajustamento do jovem à sua situação — “Os comboios não me levam. Estes jornais falam dum mundo que não é fantasia, existe, um mundo de gente que cria, que vive. E eu? Sim, senhor abade. Não, senhor abade. Paizinho. Mãezinha. Não te esqueças da lavadeira, passa no Laurestim, vai ao sapateiro, entrega ao arcipreste. Moço de recados.” Nada do que o rodeia o entusiasma, a não ser as momentâneas paixões, uma das quais o levará a casamento forçado pelo pai da rapariga, solução que o protagonista acata mas não interioriza.

Quando o livro foi publicado, José Saramago apreciou-o nas páginas da Seara Nova (n.º 1472, Maio.1968), enaltecendo a linguagem utilizada, “que decide sugerir e propor, em vez de explicar e impor”, uma escrita que é parca na descrição e surge à medida dos pensamentos da personagem que se conta. Nessa nota, Saramago refere a persistência do protagonista e o ambiente social em que ele se move: “em tal luta não há nada de heróico, de exaltante. Nenhuns amanhãs cantam ou choram. Cada uma das personagens trata da sua vida ou vai à sua morte.” É assim violento o percurso deste jovem de quem o leitor espera a todo o momento que rompa com o estabelecido e corra pelos seus sonhos — e o sonho passava pela emigração, solução para muitas famílias — quando parece que a única coisa que acontece é a auto-destruição da personagem... No final, nem o nascimento da filha o pacifica e vai até ao rio — “caminho pela borda sem perigo, sem destino. Quando chego ao molhe volto para trás, procuro os cigarros, sento-me na areia. Ao bater na muralha a água faz contracorrente, remoinha, dizem que é bom sítio para apanhar enguias. Não oiço o barulho da estrada.”

Uma lenda sobre Montedor associa o nome a “Monte da Dor”, por, segundo a narração, ali terem perdido a vida dois apaixonados que viviam um amor contrariado (uma história à maneira da de Tristão e Isolda). Ainda que não pelos mesmos motivos, Montedor é a história do “monte da dor” deste protagonista que se conta, em conflito com a sociedade que lhe era imposta, fechada, limitada, subserviente, em busca da sua evasão, retrato forte de uma época em que o horizonte se relacionava com a mudança de vida.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1567, 2025-07-09, pg. 8.


quinta-feira, 3 de julho de 2025

Mané Gomes: o diário da Presidente da Junta

 

 

Em férias, em “La Serenissima”, uma chamada sobre o que se estaria a passar na Lagoa de Albufeira. “E lá ouvi a história e a preocupação da senhora, as suas opiniões ‘técnicas’ sobre a abertura da Lagoa, como era nos anos 80, etc. (...) Estive a elencar tudo o que foi e está a ser feito, as manifestações, reivindicações, propostas de futuro, etc. (...) O nome deste livro não podia ser mais adequado!” Este é o fim do registo de 4 de Agosto de 2024 do diário que Mané Gomes resolveu partilhar com os leitores, Sei que estás de férias mas... (ed. Autor, 2025). Como subtítulo, explica-se: “diário de uma inexperiente Presidente de Junta de Freguesia”, no caso, da freguesia do Castelo (Sesimbra), percurso de 365 dias, entre 29 de Agosto de 2023 e 27 de Agosto seguinte. No entanto, a “inexperiência” é apenas uma forma de dizer “aprendizagem”, assumindo a autora integrar ao longo do livro “160 conselhos para autarcas”, resultantes da sua experiência e ajustados a situações com que se deparou (e que surgem relatadas).

Quando Mané Gomes inicia o diário, já vai a meio do seu segundo mandato como presidente da Junta, tempo que lhe possibilitou olhar de forma crítica quanto ao que é exigido, quanto ao empenho e quanto ao que também é esperado pela sociedade. Logo na introdução, a justificação para esta partilha parece clara: “Precisava de escrever este livro. ‘Exorcizar’, como costumo dizer, as aventuras e desventuras da vida de autarca. Vida para a qual não me preparei e por que nunca pensei vir a enveredar.” Depois, enuncia três propósitos: o contributo desta escrita para o seu próprio desempenho, a intenção de o livro poder ser um guia “para aqueles que nestas tarefas se poderão sentir sozinhos e abandonados” e o carácter de homenagem a todos os que acompanharam o percurso.

Neste ano de registos, o leitor assiste, sobretudo, à acção decorrente da função que a autora desempenha, ainda que haja espaços para falar, de forma discreta, da família (a perda da mãe, o acompanhamento ao pai, as relações no núcleo familiar), dos gostos pessoais (rádio, teatro, desenvolvimento turístico, artesanato, actividades caseiras), das convicções religiosas e dos amigos (com a preocupação de, relativamente a muitos deles, registar os seus nomes, em jeito de tributo justificado).

Valores como o respeito pela tradição (nas festas e nos costumes), o “marketing territorial” local, a apropriação do espaço público pelos fregueses (com o que isso implica de cuidado e responsabilidade), a construção de pontes no auxílio à resolução de problemas ou à concretização de sonhos (mesmo sabendo que “gerir sonhos é uma matéria sensível”), o trabalho com os outros, a presença do político junto das pessoas ou a solidariedade vão passando, sobretudo nos momentos em que a escrita mais resvala para a reflexão sobre o acontecido.

Assumindo o cargo como uma opção pessoal, sem ignorar o efeito sobre os seus mais próximos, Mané Gomes sente o percurso com oscilações, ora pelo entusiasmo das pessoas quando lhe chamam “presidente do povo” ou estão disponíveis para colaborar, ora pela incompreensão presente em muitas críticas que circulam sobretudo nas redes sociais (por vezes, sob anonimato) ou em atitudes menos correctas que pretendem desvalorizar o trabalho da equipa (por maledicência ou por dificuldade em aceitar um “não” como resposta).

‘Fazer’, ‘realizar’ e ‘acontecer’ são verbos que se adequam aos dias relatados, independentemente de a tarefa ser a solo ou com outros agentes (a equipa da Junta, o movimento associativo, cidadãos isoladamente). Daí também as considerações mais críticas quanto à eficácia de grande parte das reuniões, sobretudo aquelas que vivem do jogo político — depois de uma Assembleia de Freguesia: “Parece tiro ao alvo: a pessoa faz tudo pelo melhor, pela legalidade, com a preocupação de não falhar e ser transparente e depois vêm perguntas que não lembram ao diabo, das situações mais caricatas ou que já explicámos trinta vezes. Faz parte. Segundo me dizem, é política.” Daí também igual dose crítica quanto aos políticos que só se apresentam em tempos de conveniência eleitoral (numa procissão religiosa local, em 2024: “Este ano éramos só quatro autarcas. Para o ano, eleições... Vamos ter de tirar senha! Aparecem os atuais, os candidatos e sei lá mais quem!”), desejosos de serem fotografados e de ocuparem os lugares mais visíveis (“Cada vez importo-me menos se fico à frente para a foto. (...) ESTAR PRESENTE. Está em maiúsculas pois não basta aparecer, tirar uma foto, engolir um pau de vassoura para aparecer e dar uns sorrisos.”).

Publicar um diário como este quando ainda se está a exercer a função que o originou, implicando considerável grau de exposição, vale pelo desprendimento e pela necessidade de haver a voz de quem está do lado de lá, mostrando o esforço, o feito, as reacções, as dificuldades e a continuidade da acção. Assim contadas as coisas, esta partilha pode tornar-se aprendizagem de tolerância e consciência dos processos, muito embora a diarista não ignore os riscos, como confessa, com certo humor, quando o diário ainda vai a pouco mais de meio — “Tenho a leve impressão de que este livro dará origem a um sem-número de crónicas e ‘posts’ para sanguessugas... é só um palpite. Mas, como me considero uma empreendedora, sempre dou trabalho e inspiro outros!!!” Por inspiração... em tempos de eleições, a atenção aos “160 conselhos para autarcas” pode ser uma boa prática formativa, sobretudo se cada conselho for acompanhado da leitura do relato que o motivou...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1562, 2025-07-02, pg. 10.


sábado, 28 de junho de 2025

Onde fica o Paraíso?



“No princípio, Deus criou o Céu e a Terra.” Assim começa o primeiro dos livros bíblicos, o Génesis. Foi o aparecimento da luz, do firmamento, da terra, do mar. Sobre a terra, cresceu a relva e ervas com semente. Sobre o firmamento, foram criados dois luzeiros, um para a noite, outro para o dia. As águas foram povoadas por seres vivos e o firmamento por animais voadores. A terra ganhou animais domésticos, répteis e feras. E foram criados o homem e a mulher. “Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito bom.” E o homem e a mulher viveram no Éden, jardim onde nada faltava... até à descoberta do mal, vinda através da serpente...

De um momento para o outro, o paraíso virava dificuldade, dor, sofrimento. Tudo perante o olhar humano, frágil. Seria, talvez, uma primeira aprendizagem, dura, mas para a vida — a da brevidade das coisas. Sobretudo quando são belas e dotadas de fascínio. Nuno Gomes Garcia, num romance sobre a participação portuguesa na Guerra de 14, Arame Farpado - As Peripécias de um Soldado Republicano (2011), escreveu, numa frase rápida, essa perda do espaço edénico — “O paraíso é efémero e tende, tal como aconteceu na génese da humanidade, a terminar abruptamente.” Pior do que isto, só a crueza com que Agustín Fernández Paz registou, em Só Resta o Amor (Edições Nelson de Matos, 2008), a verdade iniludível segundo a qual “todos os paraísos têm uma data de validade.”

Imaginar o paraíso. Chegar a um local e achar que se está no paraíso. Porque sugere felicidade, porque é bonito, porque nos transcende, porque se celebra o nosso encontro com a beleza suprema, porque... não, talvez não o possamos imaginar. Numa crónica saída no Público (23.Maio.2015), Miguel Esteves Cardoso dizia porquê: “O paraíso nunca pode ser imaginado. Se é preciso imaginar é porque não se está lá. O paraíso pode ser sonhado mas nunca satisfaz porque, para ser um paraíso, é preciso consciência que se está lá, acordado, cheio de toda a sorte do mundo.”

Acontece então que os paraísos são sempre momentâneos e relacionam-se com o sentir. A felicidade pode ser permanente? Ela pode ser buscada, mas nunca deixará de se mostrar em curtos fragmentos, episódios, instantes. “Não há nada mais frágil e insubsistente do que a felicidade”, disse-o Domingos Monteiro num conto do livro Histórias das Horas Vagas (1966). Há quem lute contra isto, afirmando o seu estado de felicidade permanente com uma marca do género “sou feliz”. E duvida-se, porque, como noutras coisas, a felicidade não é uma via permanente, aí se percebendo a diferença entre o estatuto do verbo “ser” e a realidade do verbo “estar”... ainda que acreditemos que a vida é também o percurso em que se demanda a felicidade.

Voltemos ao Éden para lembrar Os Diários de Adão e Eva, que Mark Twayn (1835-1910) publicou em 1904 (o de Adão) e em 1906 (o de Eva), textos assentes sobre diários ficcionados, em que não faltam o humor nem um contributo para o entendimento do que têm sido as relações entre a mulher e o homem ao longo dos tempos. É Eva quem escreve, a dada altura, “depois da Queda”: “Quando evoco o passado, o Jardim é como um sonho. Era belo, incomparavelmente belo, e agora perdi-o e nunca mais o hei-de ver.” Mas, logo a seguir, diz sobre a sua conquista: “O Jardim está perdido, mas encontrei-o, por isso estou contente. Ele ama-me tão bem quanto pode; eu amo-o com todo o ímpeto da minha natureza passional.” Neste escrever para o diário (mesmo que ficcionado), Eva confessava essa ideia da procura e mesmo da construção da felicidade pela via do amor, um estado em que sonho, imaginação e alguma dose de realidade se misturam.

Pensando no Éden (ou no Paraíso), logo associamos o painel do tríptico “Jardim das Delícias”, de Hieronymus Bosch (1450-1516), que representa esse espaço, um cenário de equilíbrio e de coabitação pacífica e deslumbrante, completo e perfeito. Ainda que a descrição do Paraíso dependa do que dele se espera ou deseja, podemos subscrever o que algumas personagens nos passam, sobretudo retratos que não se preocupam tanto com a apresentação física, antes com o bem-estar, quase num momento de encontro do ser humano consigo. Sophia de Mello Breyner (1919-2004) permitiu que uma sua personagem nos antecipasse esse Éden numa narrativa como “A Viagem” (incluída em Contos Exemplares, obra de 1962): “Ali haveria tempo para poisar os olhos nas coisas. Ali haveria tempo para tocar as coisas. Ali poderiam respirar devagar o perfume das roseiras. Ali tudo seria demora e presença. Ali haveria silêncio para escutar o murmúrio claro do rio. Silêncio para dizer as graves e puras palavras pesadas de paz e de alegria. Ali nada faltaria: o desejo seria estar ali.” No entanto, o conto não deu para que a personagem ali chegasse...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1557, 2025-06-25, pg. 10.


quinta-feira, 12 de junho de 2025

Conceição Rendeiro: Sobre o rio das palavras



Impossível olhar para este título, Flúmen, e não associar de imediato o poema de Camões conhecido pelo seu primeiro verso, “Sôbolos rios que vão”, cenário e imagem escolhidos pelo poeta para falar do rio que de seus “olhos foi manado” porque, entre outras coisas, “ali, lembranças contentes / na alma se representaram”. E conseguimos, com um pouco de imaginação, acompanhar a narrativa de Jorge de Sena escrita em 1964, “Super flumina Babylonis”, que nos apresenta essa suposta noite em que Camões poderia ter escrito esse poema, numa luta pela memória e pelo reaver do passado, com todas as suas marcas de alegria e de tristeza, fazendo correr as palavras no flúmen, porque “bem são rios estas águas / com que banho este papel”. Flúmen, de Conceição Rendeiro (ed. Autora, 2025), conhecida médica pediatra em Setúbal, é, pois, um rio, o caudal dos sentimentos que a poesia permite expressar, o espelho que o poeta ajuda a construir e em que se revê.

Os poetas trazidos para epígrafe deste livro ajudam nesta interpretação, haja em vista o poema “Impressão digital”, de António Gedeão, afirmação do olhar individual sobre o mundo e o que o forma, ou um outro, “Inicial”, de Sophia de Mello Breyner, em que o mar, local maior de todas as águas, retribui o tempo inicial depois que agitou, entre ondas e torvelinhos, aquilo que se foi.

Surge este livro organizado em oito partes, indiciando um percurso, a avaliar logo pelo título da primeira, “Prenúncio”, que reúne dois poemas associados a circunstâncias históricas e pessoais, datados de 1969, ano de epopeia estudantil, poemas da busca da paz e da afirmação pela palavra, causa maior da geração, e outro, não datado, mas mais recente, de confessada adesão à leitura de Saramago, num revelar que tal simpatia advém da clareza e da coerência das palavras, apelativas que são para a construção alicerçada da solidariedade.

Nos grupos “Breves” e “Ritmos”, os poemas são dominados pela força dos instantes (resultantes de um “sentir de comoção / que por momentos / nos sacode o peito / e os olhos ilumina”), valorizando o prazer de imaginar um abraço ou de sentir o deslumbramento provocado por um trecho musical, indicando propósito de vida e chamando a atenção para o jogo entre a brevidade que a vida é e a exigência imposta a esta “condição de passagem”, qual seja a do cuidado a haver com o legado, algo entre os valores recebidos e transmitidos. Por vezes, ressalta a poesia que emerge do quotidiano, provenha ela de situações presenciadas (como o cruzar com o homem das castanhas ou o passar pela rua adornada de jacarandás) ou de momentos em que se é absorvido pelo silêncio e pela paragem, contrariando o “viver / em constante sobressalto” como opção.

Em Flúmen, não estamos perante o desabafo de quem se encerra na sua teia, pois também por aqui passa a expressão de preocupações colectivas, como vemos no grupo “Sobressaltos”, em que vive mais um conjunto de textos que toma para tema situações como o confinamento, a guerra, as migrações, os desastres, mazelas de que o poema se apropria para reconhecer a perturbação causada pelo atraso da “alegria / o sentimento / da vida / habitual”. Acrescente-se ainda a este núcleo da vivência do colectivo o poema que fecha o livro, “Cubo mágico”, pelo tom crítico, em que o brinquedo serve para retratar o “mundo desconcentrado” (a que Camões poderia chamar desconcertado...). Também o segmento “Arte de cuidar” agrupa poemas que oscilam entre o olhar crítico e a mensagem a passar, por vezes motivados por situações da contemporaneidade, como as questões de género e as diferenças, ou por referências resultantes do percurso autobiográfico da autora, como surge patente nos olhares sobre as crianças ou, particularmente, no que se intitula “Mensagem de pediatra”, uma quase cartilha orientada pelo terceto inicial que anuncia: “Crescer é aprender / ganhar autonomia / fazer-se gente”.

Os dois últimos conjuntos de poemas, “Vida” e “In memoriam”, são aqueles em que perpassa mais a expressão lírica do eu, ainda que por razões diferentes. No primeiro, essa expressão assenta na admiração pelo outro, na partilha (de que é exemplo o texto “O meu 25 de Abril para ti”, forma emotiva de permitir a comunhão das vivências e a preservação da memória), na glorificação do amor e de tempos de êxtase, de emoção, visando a celebração dos mesmos. Já nos poemas reunidos sob o título “In memoriam”, assiste o leitor à valorização da lembrança que recompõe os últimos tempos da presença do outro, marcados pela dor da perda, anunciada e concretizada — o poema “Na hora do adeus”, à semelhança do que acontecia nas cantigas de amigo medievais, usa a estratégia do desabafo com a Natureza, “brisas trazei / afagos do meu amor”, apelo que acentua a dor, pois nas cantigas de amigo a jovem apaixonada queria saber notícias do amado temporariamente distante e, neste caso, a distância é definitiva.

Flúmen surge, pois, como o caudal que permite que as “lembranças contentes” na alma se representem, que lembra que “o tempo vale / pela qualidade testemunho / intensidade das nossas vivências / empenho e dedicação aos outros / exultação de alegria e prazer / dor pessoal e do próximo / cumplicidade de momentos únicos”. Os poemas são, por isso, uma forma de povoar a memória e também de valorizar o tempo, de usar a palavra para assinalar a intensidade da vida. 

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1548, 2025-06-11, pg. 10.

 

domingo, 8 de junho de 2025

Luís Amaro: o bibliógrafo de Aljustrel (2)

 


As observações de Sebastião da Gama sobre o livro Dádiva, de Luís Amaro, saído em 1949, tinham em consideração a amizade que, desde há quatro anos, os vinha aproximando: ambos se conheceram em 1945 na Portugália Editora, num terceiro andar da Avenida da Liberdade, e chegaram a ter quarto alugado na mesma residência, na capital, ainda que em tempos diferentes — na Rua das Taipas, em casa que pertenceu à fadista Adelina Fernandes, onde Sebastião teve quarto enquanto estudou em Lisboa, que, depois, passou para Luís Amaro. Pelo catálogo Dádiva - Luís Amaro - Uma Vida em Livros passam várias menções à relação entre o homenageado e o poeta da Arrábida: a propósito da relação editorial entre os dois (a partir do momento em que se conheceram, ano em que foi publicado Serra-Mãe, com a chancela da Portugália, mas com os custos da edição suportados pelos pais de Sebastião da Gama), do incentivo do poeta-professor junto do amigo para a publicação de Dádiva e de um encontro de trabalho de Amaro com Joana Luísa da Gama (1923-2014), em Massamá (em 1999), a propósito da obra inédita do poeta, que estava em preparação (momento de que é reproduzida fotografia).

Se 1949 foi o ano de publicação da obra poética de Luís Amaro que os amigos tanto desejavam ver, também foi o ano de reabilitação na saúde deste aljustrelense, que passou por grave crise relacionada com tuberculose pulmonar.

O catálogo, fortemente ilustrado, vai dando os traços biográficos essenciais do homenageado, assinalando a década de 1950 como a do aparecimento da revista Árvore, subintitulada “Folhas de Poesia”, resultado de iniciativa de Luís Amaro, António Luís Moita, António Ramos Rosa, Raul de Carvalho e José Terra, um projecto que teve apenas quatro números (1951 a 1953) e fim ditado pela censura do Estado Novo. A finalizar essa década (1959), é mencionado o casamento de Amaro com Amélia Magalhães, colega de trabalho, relação que durou até ao falecimento dela, em 2013.

O trabalho de Luís Amaro como tradutor e revisor manteve-se na Portugália até Março de 1970, altura em que passou a trabalhar na Fundação Calouste Gulbenkian (até 1989), na revista Colóquio - Letras, projecto que, sob as direcções de Hernâni Cidade, Jacinto do Prado Coelho, David Mourão-Ferreira e Joana Morais Varela, sempre teve o cunho esmerado do bibliógrafo, tal como foi reconhecido, no número de Março de 1989, sob a pena de Morais Varela, ao assinalar-lhe a sua “excepcional capacidade de trabalho” e retratando-o como “tão minucioso e apaixonado nas tarefas mais humildes como na investigação mais especializada”.

O tempo da aposentação ocupou-o Luís Amaro nas tarefas de que sempre gostou — a pesquisa contínua, a organização de bibliografias, a disponibilidade para ajudar investigadores com eles partilhando o seu saber (tendo continuado como consultor editorial da Colóquio - Letras), a correspondência intensa com amigos. Tão grande abertura e atenção aos outros levou a que, em vários momentos, tenha havido reconhecimento público do valor e do serviço prestado por Luís Amaro à cultura portuguesa — se houve espaço para algumas acções de cariz social e cultural, houve também oportunidade para esse reconhecimento ser feito através daquilo que sempre orientou o trabalho deste investigador, o livro: em 2005, o poeta aljustrelense via ser publicada a obra Para Lá da Névoa - Homenagem a Luís Amaro (Caixotim Edições), conjunto de dezassete depoimentos, entre os quais se contam os de Eugénio Lisboa, Fernando J. B. Martinho e Fernando Venâncio, para só mencionar nomes recentemente desaparecidos, e, três anos depois, a Câmara Municipal de Aljustrel atribuía o nome de Luís Amaro à Biblioteca Municipal, decisão honrosa para quem dedicou a vida ao livro e aos autores. Um livro constituiria ainda um outro momento de homenagem, mas póstuma, quando, em 2020, saiu Evocar Luís Amaro (Cosmorama Edições), duas dúzias de testemunhos, organizado por António Cândido Franco, António José Queiroz, Francisca Bicho e Paulo Samuel.

Por este catálogo passam ainda citações de homenagem de catorze autores, todas constituindo prova do importantíssimo contributo que este bibliógrafo aljustrelense deu à cultura portuguesa, de que destaco duas: se Fernando Venâncio reconheceu que Amaro “fez tanto pela literatura portuguesa como departamentos de universidade inteiros” (ele, um homem que apenas passou por uma Universidade, a Portugália, como mencionou numa carta que me endereçou), Sofia Santos considerou “uma tarefa tantálica elencar todas as contribuições que Luís Amaro dedicou à literatura portuguesa e aos seus autores”.

Indiscutivelmente, a sua “dádiva”, resumindo a sua obra, encontra eco em dois títulos: no que foi dado à exposição e a este catálogo, organizados pela Associação Do Fundo à Superfície, e no que foi atribuído à tertúlia realizada em Aljustrel em 13 de Junho de 2024: “Luís Amaro: um homem que era a memória viva da literatura portuguesa”.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1544, 2025-06-04, pg. 10.


sábado, 31 de maio de 2025

Luís Amaro: o bibliógrafo de Aljustrel (1)

 


“Meu Alentejano bisonho (Isto é por fora: por fora é que é o Alentejano bisonho, o bicho do mato; por dentro é um homem cheio de humanidade, de compreensão, de ternura. Por isso é que começou a nossa amizade, que já tem escrito algumas páginas bonitas).” Assim começa, em 20 de Julho de 1946, uma carta saída da Arrábida, assinada por Sebastião da Gama (1924-1952), dirigida a Luís Amaro (1923-2018), uma das mais antigas na densa relação epistolográfica entre o poeta azeitonense e o seu amigo de Aljustrel, à data a trabalhar em Lisboa, na casa Portugália Editora. A apresentação que é feita de Luís Amaro no início desta carta vai ao encontro do que Ernesto Rodrigues testemunhou e é reproduzido no catálogo resultante da exposição que celebrou o centenário do poeta e bibliógrafo alentejano: “Nome fundamental, no ‘silêncio perfeito’ que o poeta deseja, generoso, elegante”. 

A mostra, intitulada Dádiva - Luís Amaro - Uma Vida em Livros, acontecida entre Junho e Setembro de 2024 na biblioteca que o tem como patrono na sua terra-natal, teve continuidade em Maio através da publicação do respectivo catálogo, edição a cargo da Associação Do Fundo à Superfície (Associação de Defesa do Património Mineiro Cultural e Ambiental do Concelho de Aljustrel). O texto de abertura desta obra deve-se a Guilherme d’Oliveira Martins, que assim o apresenta: “Luís Amaro representa a memória viva da cultura e das letras portuguesas. (...) Foi poeta, bibliófilo, estudioso e investigador, tornando-se raro mestre em matéria bibliográfica, a quem qualquer editor competente podia recorrer com segurança quando houvesse dúvidas ou hesitações. (...) Sempre discreto, os maiores especialistas reconheceram-lhe essa excepcional qualidade, só possível a um grande conhecedor e a um trabalhador incansável.”

Oriundo de uma família humilde, Luís Amaro cedo começa o seu itinerário na causa dos livros — acabada a instrução primária, são um ajudante-farmacêutico, a biblioteca da Associação dos Operários Mineiros e Adeodato Barreto (advogado e poeta, em cujo cartório Luís Amaro começa a trabalhar aos 12 anos) os responsáveis pelo culto pelas letras e por um trajecto que sempre o aproximará dos livros e da leitura, passando por um estágio no “Diário do Alentejo” quando tinha 13 anos, por um emprego na Biblioteca Municipal de Beja, por colaboração jornalística em diversos periódicos (Ala EsquerdaO ArraiolenseBrados do AlentejoRevista Transtagana, entre outros), até chegar a um emprego em Lisboa, na Livraria Portugália (onde foi caixeiro-livreiro). Daí, transitaria para a Portugália Editora como revisor de provas, sob cujo olhar criterioso passaram as obras de alguns dos mais conceituados escritores portugueses do século XX — Aquilino Ribeiro, Fernando Namora, Jaime Cortesão, José Saramago, José Régio (uma leitura do volume da correspondência trocada entre Régio e Amaro, editado em 2024 pela editora Colibri, trabalho devido a Ernesto Rodrigues, demonstra bem o cuidado e a qualidade de revisor-editor que Luís Amaro praticou), Manuel da Fonseca, Sebastião da Gama, Soeiro Pereira Gomes, entre muitos mais.

Com o cuidar da obra dos outros e com o espírito reservado que o caracterizava, só em 1949 publicou a sua obra, depois de muitos incentivos de amigos, entre os quais Sebastião da Gama. Dádiva foi o título atribuído, escolha que Sebastião da Gama assim comentou no seu Diário (registo de 18 de Fevereiro de 1949): “Ao escrever isto — ‘ser professor é dar-se’ —, lembro-me do Amaro. Pobre querido Amigo, tão nobre, tão modesto, tão púdico da sua intimidade. Um António Nobre que chegou tarde, uma flor que o vento magoou... Há três anos que lhe peço o livro: ele, tímido, recusa sempre mostrá-lo ao Mundo. (...) Pois há uma semana encontrei o Amaro. Acompanhei-o. Junto de um portal, com medo de que alguém que passasse o ouvisse, segredou-me: ‘Vou publicar.’ “Diário Íntimo?’ ‘Não. DÁDIVA.’ Senti cá dentro uma lágrima que era a compreensão exacta e comovida daquele nome. Dádiva. Dádiva. Dádiva.” Luís Amaro conheceu esta opinião do amigo uns meses depois, quando, em 2 de Outubro, recebeu de Sebastião da Gama longa carta (uma das mais longas no seu epistolário para o amigo), apreciando o livro e transcrevendo este excerto do seu diário. Diário Íntimo - Dádiva e Outros Poemas viria a ser o novo título da obra, ampliada, em 1975 e em 2011, enquanto em 2006 se intitularia Diário Íntimo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1539, 2025-05-28, pg. 6.


quarta-feira, 21 de maio de 2025

José-António Chocolate: o que baila num poema

 

 

Deverá o poeta tentar explicar o que perpassa pelos seus versos? Caber-lhe-á mostrar as lágrimas que podem correr de desalento ou de paixão no interior do poema? Serão necessárias mais palavras para explicar a palavra? Estas questões serão mera retórica, mas vão ao encontro do que José-António Chocolate se propôs na obra À Descoberta de um Verso (Colibri, 2025), um objecto com finalidade didáctico-pedagógica, deixando perpassar a poesia e debruçando-se sobre ela, trazendo momentos de transfiguração surgidos a partir das telas, que assumem novas interpretações.

Neste livro, poesia, crónica (por vezes, analítica) e ilustração entrelaçam-se, na proporção de um poema para um desenho e para um texto em prosa, funcionando este como descodificador de símbolos, a orientar o caminho, eivado de memórias, de reflexões, de chamadas de atenção, afinal, no cumprimento de uma intenção: sensibilizar para a poesia, “procurar conquistar o leitor para o gosto e uma leitura de poesia, através da desmistificação da palavra e dos versos, tantas vezes associados a alguém fora da realidade e pairando num ambiente lunático”, por um lado, e abrir a fonte do “entendimento da palavra poética”, por outro.

Fala-se, pois, de sensibilização para. E correrá o leitor os caminhos da produção poética, das motivações, do dizer, onde são sinais a força da palavra, a chamada do silêncio, o colorido das memórias, o efeito trazido pelo deleite e pela voluptuosidade de momentos ou de visões. Vê o leitor que todas as vidas se transformam em palavras — o lu(g)ar, simultaneamente conforto, protecção e tempo; a aldeia e as vivências da infância; a labuta e as dificuldades da vida; a paisagem entre a planície e o mar alentejanos; a brutalidade da realidade; o sorriso e a indignação; a sensualidade de momentos; as operações que se fazem com o tempo, às vezes longo, às vezes não mais do que instantâneo; o equilíbrio entre o eu que se expõe e o espelho que o olha; o pacto de quem se diz com a avaliação do caminho feito; a faceta sensorial que nos liga ao mundo; a casa que se constrói em torno do que se é; os sentimentos, por vezes contraditórios, ora libertadores, ora opressivos; a predestinação que quase nos impomos...

Pelos intervalos, passam as palavras de outros, como as perguntas do eterno questionador Pessoa ou o deslumbramento do caminho trazido pelo sevilhano Antonio Machado, passam os retratos dos mais antigos aconchegos, passam os reflexos deixados pelas experiências. Passa também a interpelação, exigindo a conivência do leitor, num trabalho que tem a preocupação de levar a pensar a poesia (ou de a construir), abrindo caminhos a leitores, independentemente da sua maturidade leitora, conjugando o poema (valorizado pela palavra essencial) com a prosa, que lhe giza um possível mapa e ajuda a entendê-lo, e com a arte do traço, outra forma de perscrutar o sentir do mundo, espelhado por autores como Carlos Pereira da Silva, Eduardo Carqueijeiro, Fátima Falcão, Paula Falcão de Lima e Nuno David.

Duas linhas de força correm em paralelo: a ideia de que o poeta não é um “lunático”, antes uma entidade que se expõe pela palavra, reinventando-a e constituindo-a como força metafórica; o princípio de que a poesia leva o seu criador e o seu leitor à descoberta, verdadeiro acto de fé que contempla a epopeia da simplicidade do quotidiano nesse trajecto da procura de quem somos. É este percurso da procura de sentido que José-António Chocolate nos proporciona, ora num acto de revisitação da sua própria poesia, ora com poemas novos, sempre tentando descobrir os seus versos ou dando-os a descobrir, contando histórias, contextualizando, apontando linhas de sentido ou de leitura, num trabalho que tem também a sua dose de didactismo e de desocultação do acto de poetar. É que a poesia é algo que adorna o mundo, assim a saibamos sentir — isso ensinou-nos Miguel Torga num livro de 1950 (que nem sequer é de poesia), quando construiu uma bela metáfora sobre o texto poético: “Poema é toda a página aberta diante de mim, caligrafada de esperança e de calma. Poema é o facho de claridade que incide sobre as coisas e os seres, acariciando com a mesma ternura inefável o bom e o mau, o perecível e o imperecível.” (em Portugal, 1950). O que é preciso então é partir... à descoberta de um verso e das suas cores!

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1534, 2025-05-21, pg. 10.


quarta-feira, 14 de maio de 2025

Papa Francisco: um “viva” para a poesia (3)

 


Um dos textos intensos, em termos de percurso histórico-cultural e de defesa dos poetas, presente em Viva la Poesia!, do Papa Francisco, é a carta apostólica de Março de 2021, surgida a propósito do sétimo centenário da morte de Dante Alighieri, exercício que passa pelas leituras pontifícias que o poeta italiano possibilitou no século XX (através de Bento XV, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI) e pela adesão de Francisco ao autor de Divina Comédia, obra que se afirma como “um grande itinerário, assim como uma verdadeira peregrinação, seja pessoal e interior, seja comunitária, eclesial, social e histórica”. Entendendo Dante como “paradigma da condição humana”, Francisco atribui-lhe a missão de ser “poeta da esperança” pelo caminho que fez entre uma visão do inferno, “a condição humana mais degradante”, e a visão de Deus, como possibilidade de “uma nova humanidade que aspira à paz e à felicidade”, irmanando-o com Francisco de Assis.

A construção deste caminho, com invocações históricas, recheado de símbolos e de imagens intensas, apresenta Dante como referência de um tema que é caro a Francisco: “paladino da dignidade de todo o ser humano e da liberdade como condição fundamental tanto das opções de vida como da própria fé”. Quase no final do texto, Francisco considera que, em Dante, “podemos quase vislumbrar um precursor da nossa cultura multimedia, na qual palavras e imagens, símbolos e sons, poesia e dança se fundem numa única mensagem”, razão adicional para que a obra do poeta florentino seja apresentada aos jovens como mensagem forte e importante.

Esta preocupação de apresentar a literatura, particularmente a poesia, como determinante para a formação dos agentes pastorais constitui tema da carta em que Francisco abordou esse papel, datada de Julho de 2024, logo de início defendendo “o valor da leitura de romances e de poesia no caminho do crescimento pessoal”. Seguindo uma perspectiva didáctica da leitura, porque “uma obra literária é um texto vivo e sempre fecundo”, Francisco elogia a capacidade criativa que a leitura traz, em vantagem sobre outros meios — “Diferentemente dos meios audiovisuais, onde o produto é mais completo e a margem e o tempo para enriquecer uma narrativa ou interpretá-la costumam ser menores, na leitura de um livro o leitor é muito mais ativo. De alguma forma, ele reescreve a obra, amplifica-a com sua imaginação, cria um mundo, usa as suas capacidades, a sua memória, os seus sonhos, a sua própria história cheia de drama e simbolismo.” Para reforçar a importância da literatura na formação, Francisco valoriza a forma como o quotidiano a influencia e recorre ao jesuíta Karl Rahner (1904-1984) quando disse que ela parte dos “acontecimentos reais como a ação, o trabalho, o amor, a morte e todas as coisas pobres que preenchem a vida.” E conclui o Papa: “O olhar da literatura treina o leitor na descentralização, no sentido dos limites, na renúncia ao domínio cognitivo e crítico sobre a experiência, ensinando-lhe uma pobreza que é fonte de riqueza extraordinária. Ao reconhecer a inutilidade e talvez até a impossibilidade de reduzir o mistério do mundo e do ser humano a uma polaridade antinómica de verdadeiro/falso ou certo/errado, o leitor acolhe o dever de julgamento não como instrumento de dominação, mas como impulso à escuta incessante.”

O elogio (e desafio) aos poetas consta numa carta que lhes é dirigida, publicada em 2024, numa antologia de poesia religiosa. Apresentando-os como aqueles que são “olhos que olham, mas também sonham”, elege-os como excelentes mensageiros, pois “o artista é o homem que vê mais profundamente, profetiza, anuncia uma maneira diferente de ver e de compreender as coisas que estão diante dos nossos olhos”, apresentando “tanto as belas quanto as trágicas realidades da vida”. Chamando-os à sua função para a Humanidade, Francisco enaltece o trabalho dos poetas — “dar vida, dar corpo, dar palavras a tudo o que o ser humano vive, sente, sonha, sofre, criando harmonia e beleza” —, ao mesmo tempo que lhes atribui a responsabilidade de poderem “ajudar a entender melhor Deus como o grande ‘poeta’ da humanidade.” Em jeito de exortação, este texto conclui com o incentivo aos poetas: “Segui em frente, sem cansar, com criatividade e coragem!”

Este texto acaba por justificar todas as mensagens sobre poesia que Francisco nos lega neste Viva la Poesia!, dirigindo-se aos leitores, aos formadores, aos que escrevem, aos responsáveis pelo mundo, assumindo a poesia como uma manifestação de aprendizagem do humano, absolutamente necessária, porque “uma pessoa que perdeu a capacidade de sonhar não tem poesia, e a vida sem poesia não funciona.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1524, 2025-05-14, pg. 14.