quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Ouvintes e falantes que somos...



Andamos em tempo de discursos promissores do paraíso na terra (sem que se diga como) e repletos de observações sobre os outros (que são os potenciais adversários), replicados e anotados em não menor estilo de campanha por quem se diz ser comentador... Vem à memória, para contrariar, um poema que corria nos manuais escolares da escola primária, “Vozes dos Animais”, jogo com os verbos que designam as vozes de quase quarenta animais e conclui com o humano: “A fala foi dada ao homem, / Rei dos outros animais. / Nos versos lidos acima, / Se encontram, em pobre rima, / As vozes dos principais.” O autor não se tinha em grande conta como poeta, mas o texto vingou e permaneceu e, em 1883, Antero de Quental, na sua recolha Tesouro Poético da Infância, incluía este poema de Pedro Dinis (1839-1896), nome de quem pouco se sabe. Camilo Castelo Branco também o antologiara no seu Cancioneiro Alegre (1879), escolhendo um outro texto, mas mencionando ser “Vozes dos Animais” o seu mais conhecido poema, um conjunto “de quadrinhas recitadas pelos nossos pequenos” onde “destila dos seios o leite da instrução primária em apojadura copiosa”.

Ao destacar o homem por ser a criatura que fala, Pedro Dinis intuía que tal superioridade advinha do acto de pensar e do saber, fases primeiras para que a fala seja consistente, fundamentada. Apesar de se saber isso, a verdade é que o esquecimento nos atraiçoa muitas vezes. Assim, na lembrança sobre a oportunidade da fala, recorra-se a Julian Barnes, que nos transmite, quase proverbialmente, o que deveria ser levado como máxima de vida: “Sobre aquilo de que não sabemos falar devemos guardar silêncio.” (in O Sentido do Fim, 2011) Contudo, atrever a incluir este princípio na argumentação é difícil... pois a qualidade da argumentação na discussão e partilha de opiniões nem sempre é preocupação e os hábitos legitimam o falar “porque sim”, confundindo as noções de direito adquirido, liberdade de expressão e ignorância.

Uma outra farpa no discurso é a das condicionantes com que o querem formatar, mais com o objectivo de destruir ideias ou quem as profere. Na narrativa Desisto (2006), Philippe Claudel chamou a atenção para isso, ao dizer: “Hoje em dia, toda a gente evita chamar as coisas pelos nomes: um cego é um invisual, um animador de televisão um artista, os mortos em breve serão não-vivos.” Esta observação ganha acuidade hoje, tempo em que os cuidados em torno dos substantivos (prefiro esta designação àquela que a gramática instituiu, designando-os como “nome”) e dos adjectivos utilizados condicionam a expressão e facilmente servem para fazer desmoronar uma ideia ou para se ser acusado de coisas que nem tinham passado pela cabeça do falante.

Com mais ou menos habilidade, quem fala facilmente pode chegar à falácia (um raciocínio incoerente e não fundamentado, aparentemente verdadeiro) e o objectivo do discurso como forma de aproximação entre humanos facilmente se esvai, com proveito apenas para uma das partes. Deve-se a Eurípedes, na peça teatral As Bacantes, uma análise como esta: “Quando falta o bom senso ao homem audaz e simultaneamente poderoso e hábil na palavra, ele torna-se um cidadão perigoso.” Eurípedes, vivendo no século V antes de Cristo, sabia o que pode um discurso hábil fazer, mesmo que assente sobre erros ou mentiras, sobretudo se não houver o discernimento necessário à análise e reflexão sobre o mundo. O papel do ouvinte, muitas vezes passivo ou na pele do adepto fervoroso, presta-se à situação, sobretudo se se valorizar o espectáculo ou o sentir grupal (venha ele por razões sociais, profissionais, políticas, desportivas ou outras). A verdade é que a responsabilidade do ouvinte é grande, mas, muitas vezes, anulada, como se infere do que escreveu Italo Calvino, em As Cidades Invisíveis (1972): “Eu falo falo, mas quem me ouve só fixa as palavras que deseja. (…) Quem comanda o conto não é a voz: é o ouvido.” Será pouco, convenhamos, para aquilo que deve ser um ouvinte...

Foi Ruben A. (falecido há meio século), com a sua causticidade e análise provocatória, que, no segundo volume do relato autobiográfico O Mundo à Minha Procura (1966), gravou este pensamento: “Sempre notei que na vida portuguesa não há qualquer relação entre os discursos que se proferem, parangonas que os jornais estampam, e a vida real do País. (...). Em discursos devemos ser o primeiro país do mundo, não só pela quantidade, mas pela diversidade de estilos e de assuntos que cada ser genial abarca diante de um público numeroso e atentamente interessado.”

Um olhar assim condicionado sobre a vida leva a que se siga o que Oscar Wilde desmascarou: “Aquilo de que se não fala nunca aconteceu. É apenas a expressão que dá realidade às coisas.” (in O Retrato de Dorian Gray, 1891) O problema parece residir, então, na selecção dos (prováveis) acontecimentos. E, consequência disso, com frequência, a discussão da actualidade passa pela discussão do que foi dito e como foi dito e não pelo tema do que foi feito ou do que falta ou do que deveria ser feito. E, já agora, do “como” deveria ser feito, uma tónica em que o discurso político é sempre hábil na arte da fuga e na arte (pouco) argumentativa...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1617, 2025-10-08, pg. 2.

     

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Catarina Pires e a descoberta da Filosofia

 


“A elaboração do presente trabalho teve como objectivo vincar alguns dos conceitos fundamentais dos principais filósofos abordados e analisados no decurso deste ano, os quais me permitiram ter uma visão mais ampla do conhecimento e da natureza dos valores humanos.” É assim que abre o texto introdutório à obra agora publicada, Glossário de Filosofia (Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos), da autoria de Catarina Pires, jovem que concluiu o 10.º ano na Escola Secundária D. João II, em Setúbal, livro que reproduz um trabalho feito no âmbito da disciplina de Filosofia.

O leitor é então levado para os “conceitos fundamentais”, uma espécie de reunião das chaves-mestras do pensamento, obedecendo, como o título deixa antever, a um inventário de ideias ou de nomes, seguindo a ordem alfabética, um ensaio de organização de descobertas e de aprendizagens havidas.

São cerca de 170 as definições apresentadas, a que se soma uma trintena de entradas elementares sobre outros tantos pensadores com indicação do seu período de vida e dos principais títulos que nos legaram, tudo organizado em onze capítulos, divisão que resulta das próprias áreas estudadas na disciplina de Filosofia — “Concepção filosófica geral”, “Ética e Moralidade”, “Filosofia Clássica e grandes nomes da Filosofia”, “Lógica e Raciocínio”, a Filosofia como suporte de diversas áreas (arte, ciência, linguagem, mente e moral, política e social, religião) e ainda “Outros conceitos filosóficos”.

Este glossário é uma tentativa de inventário do que foram o estudo e a pesquisa de um ano, não surgindo como uma caixa fechada, mas como um espaço que pode alimentar pontos de partida. Útil, porque organiza e mapeia os conhecimentos; desafiante, porque não fecha certezas e convida ao pensamento e à procura de sentidos.

Compreendidas alfabeticamente entre “acção contrária ao dever” e “véu da ignorância” (ainda que pertencendo estes conceitos a capítulos diferentes), as definições oscilam entre aspectos mais abstractos e outros mais próximos; no entanto, sempre oportunos e com a necessidade de serem olhados para justificar a vida e as suas atitudes, sobretudo num tempo (como o de hoje) em que parece ganharem terreno o desrespeito pelo outro, o discurso falacioso, a colisão com a liberdade, a aceitação da intolerância ou o desprezo pela argumentação... Está o leitor perante definições que, no mínimo, remetem muito mais para a reflexão do que para as certezas, deixando-nos o dever de aprofundar e de agir em conformidade. Repare-se em alguns exemplos de definições, desafiando-se o leitor para entender a que se refere cada uma delas: “crença ou juízo subjectivo que não possui garantia de verdade objectiva”; “condição de agir conforme a própria vontade, dentro dos limites impostos pela razão e pela ética”; “capacidade de uma pessoa ou grupo social aceitar e respeitar as crenças, práticas e os comportamentos de outra pessoa ou grupo que sejam diferentes das normas ou valores do seu próprio grupo”; “raciocínio errado com aparência de verdadeiro, argumento incoerente, sem fundamento e inválido, utilizado de forma a provar eficazmente o que alega”; “liberdades fundamentais que garantem a autonomia e dignidade de cada pessoa, incluindo direitos como liberdade de pensamento, de expressão, de religião, o direito à vida e à propriedade”, cuja protecção “é essencial à construção de sociedades mais justas e democráticas”; “conjunto de todas as características e eventos-chave que compõem o essencial da existência humana, incluindo nascimento, crescimento, emoção, aspiração, conflito e mortalidade.” Percebe-se, seguindo a ordem destas definições, que se está a falar, respectivamente, de “opinião”, “liberdade”, “tolerância”, “falácia”, “direitos individuais” e “condição humana”. Este glossário, além de sistematizar alguns conhecimentos, apresenta a vantagem de nos poder levar a reflectir sobre o quotidiano, seja para alicerçarmos as opções individuais, seja para respeitar e construir a sociedade de que fazemos parte.

Ao longo do livro, há lugar para algumas referências bibliográficas, espaço em que teria sido vantajoso a Catarina Pires libertar-se um pouco da fidelização ao manual escolar adoptado, podendo ter sido objecto de pesquisa outros títulos no mesmo âmbito, pelas portas referenciais que a pluralidade de reflexões poderia suscitar. Para trabalho de final de ano lectivo numa disciplina do ensino secundário, este Glossário de Filosofia demonstra a utilidade do aprender a pensar na formação do indivíduo, o prazer de assumir o risco da exposição numa área que se está a descobrir e o altruísmo da partilha de verdades fundamentais que têm aplicação na vida.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1612, 2025-10-01, pg. 4.


quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Alexandrina Pereira e Nuno David dão voz e cor à Arrábida



O livro Arrábida - Entre a Cor e o Verso, de Alexandrina Pereira, com ilustrações de Nuno David, recentemente publicado (com trabalho gráfico de Raul Reis), surge numa aliança de palavra e imagem, ambas criadas para servir a possível descrição dos sentimentos e emoções que a Serra consegue incutir-nos. Comecemos pelos dois primeiros textos, ambos premonitórios quanto ao que vamos encontrar — o de Alexandrina Pereira, que logo confessa resultarem os seus poemas de um “profundo amor pelos cantos e recantos de um lugar mágico e sagrado”, e o de Nuno David, que, num discurso anafórico, demanda, em oito perguntas, se “haverá outra serra” tão importante como a Arrábida pela sua localização e inspiração e como espaço de poetas e de santos, concluindo, de forma absolutamente decisiva: “Haverá? Não, não há!” Com certeza, os dois autores subscreveriam os três primeiros versos do longo poema à Arrábida assinado por Alexandre Herculano, essa referência da cultura portuguesa que bem viveu esta Serra, de dia ou de noite, a partir do Calhariz que o acolheu — “Salvé, ó vale do sul, saudoso e belo! / Salvé, ó pátria da paz, deserto santo, / Onde não ruge a grande voz das turbas!”

Aos referidos textos de abertura, seguem-se 30 poemas, que são outros tantos louvores da Arrábida, ora personificada, ora indescritível, ora magnífica na sua grandiosidade, sempre sugerindo e suscitando poesia, em viagem por caminhos, íngremes umas vezes, apaziguadores noutras, ao encontro da meditação, num trajecto em busca da palavra essencial, do sentido maior, da experimentação do que será uma via da transcendência, da oração, da fé.

Saltitam os versos por atalhos onde crescem o alecrim, a alfazema, o cardo, a esteva, o folhado, a giesta, a madressilva, o medronheiro, a rosa, o rosmaninho, a salva, o trevo ou a urze. Brotam as palavras por entre o respirar do arvoredo, olhando as aves, contemplando a vastidão, ouvindo o silêncio, com um fundo musical de vento e de cor, venha ela do rio ou da Serra, numa oscilação entre o azul e o verde. O discurso do espaço arrábido constrói-se sobre uma sinfonia de vozes rumorejantes — do mar, ali aos pés; do canto das aves, em escalas diversas; do sibilar da folhagem; do esgar sugerido pelo sorriso das flores; da fragrância mesclada no ar; dos esvoaçares que surpreendem ou levam o nosso olhar; das tonalidades de verde entre o azul da água e o azul do céu; dos passos que procuram, restolhando ou enxergando os degraus que conduzem ao céu...

A Serra afigura-se como um cenário grandioso (de dia ou a horas crepusculares, à luz do sol ou em diálogo com as estrelas), onde o poeta constrói o seu altar para a celebração da poesia, um pouco na esteira dos seus muitos antecessores, com os nomes de Agostinho da Cruz e de Sebastião da Gama invocados diversas vezes, num acto de reconhecimento dos percursores que foram nesta celebração da Arrábida como templo de contemplação.

Os seis desenhos que Nuno David apresenta nesta obra abrem espaço para este hino à Arrábida, seja pelas imagens captadas dos caminhos e da amplidão da Serra, seja por aquelas que nos remetem para os recantos onde se exprimem manifestações do sagrado. As tonalidades discretas escolhidas deixam margem para a diversidade de tons que a paisagem apresenta, ao mesmo tempo que o traço adensa a dose de mistério e de descoberta. O olhar é convidado a ir ao encontro do que é mais importante, deixando que o linear escuro tanto sustente a natureza, o chão ou as formas construídas, num jogo entre a perfeição advinda do pormenor e a vastidão a descobrir. Estamos perante um olhar que se deixa impressionar por matizes essenciais e primordiais para o retrato da Arrábida, espaço dominado pela luz e por variações de verde e de azul.

Temos assim o verso e a cor em deambulação por esta Arrábida interiorizada, em poemas curtos de Alexandrina Pereira e em telas fecundas do que é essencial devidas a Nuno David, todas as composições vibrantes entre a grandiosidade dos momentos que o olhar permite e os instantes que prefiguram a reflexão e a oração.

Num texto datado de 1949, publicado na revista Flama, Sebastião da Gama escrevia sobre a serra com quem o Sado se encontra: “O mais difícil não é ir à Arrábida (...). Difícil, difícil, é entendê-la (...).” E, depois, justificava esta dificuldade com a necessidade de cada um demandar, sozinho, “a religiosidade que dá à Serra da Arrábida elevação e sentido”, o espaço onde “é fácil estar a sós com Deus”, descobertas possíveis pela persistência e pelo silêncio que têm permitido à Serra o seu estado de “meditação que já dura há séculos”. E não deixa de ser oportuno mencionar o aparecimento desta obra de Alexandrina Pereira e de Nuno David quando passam os 80 anos da publicação dessa outra que, por empréstimo, deu nome literário à Arrábida — Serra-Mãe, de Sebastião da Gama, surgida em Dezembro de 1945, primeiro livro do poeta azeitonense, que já invocava Agostinho da Cruz para patrono...

Os autores de Arrábida — Entre a Cor e o Verso, ambos experimentados em escrever e pintar o panorama e o coração da Serra, conseguem levar-nos até essa via do conhecimento que nos exige, a cada dia, “entender” a Arrábida.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1607, 2025-09-24, pg. 2.


sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Afonso Cruz e os vícios da leitura e da escrita

 


São cerca de quarenta crónicas em que predomina o “vício” do leitor, todas subordinadas a uma epígrafe de Jorge Luis Borges (ele próprio um ávido e “viciado” leitor), que explica, justifica e engrandece o estatuto do “vício”: “Há aqueles que não podem imaginar um mundo sem pássaros; há aqueles que não podem imaginar um mundo sem água; ao que me refere, sou incapaz de imaginar um mundo sem livros.” O primeiro texto puxa para título uma mescla resultante de leituras, associando Shakespeare e o prazer — “Ler ou não ser, eis a questão”, uma defesa intransigente do acto de ler, apesar do trabalho e das condições que a leitura exige. Estamos perante a obra O vício dos livros - II (Companhia das Letras, 2025), de Afonso Cruz (n. 1971), volume aparecido quatro anos depois do primeiro (em que não era anunciada sequência).

As crónicas são intervaladas com reproduções de pintura (devidas a nomes como Magritte, Massys, Rivera, Picasso, Larsson, Renoir ou Spitzweg, entre outros, num conjunto de dezasseis telas) que têm como condição permanente o livro enquanto objecto, sempre aberto, disponível para o leitor que as personagens dos quadros são, persistência que ganha eco numa crónica como “Livro aberto”, onde é dito: “É a leitura que cria o livro e o constrói a partir dos signos de tinta impressos em papel. (...) O livro, sem leitura, não existe. Aliás, com a notação musical ocorre um fenómeno semelhante: a partitura só é música quando é lida e executada.” Esta crónica é, aliás, a oportunidade para Afonso Cruz citar Massimo Recalcati, numa referência cheia de poesia a propósito da razão de ser e da identidade do livro — “um livro fechado é, na verdade, um contra-senso: não é um livro. Como o mar, o livro é uma imagem extraordinária do ‘aberto’. Abre o mundo em vez de o fechar. Um livro é um mar e não um muro.”

Questões como o acto de ler, a criação literária e a escrita, a censura ou as redutoras leituras apenas das parangonas dos títulos, a força imanente de uma biblioteca, a capacidade de descrever e de contar, a pluralidade da interpretação, a força do silêncio, o papel da literatura dita infantil, as marcas de autor, os livros que fazem e marcam um leitor, entre outras, povoam as crónicas aqui apresentadas, sempre num testemunho de paixão pelo livro e pela liberdade de ler, recorrendo à experiência de leitura, muito mais do que à teorização, e convocando nomes como Raul Brandão, Lao Tse, Steiner, Brodsky, Primo Levi, Tchékov, Rilke, Marguerite Duras, Eliot, Saint-Exupéry, Camus, Dostoievski, Joyce, Orwell, Umberto Eco, Lídia Jorge, Santo Agostinho ou Fernando Namora para sustentação das considerações feitas.

Nestas crónicas não faltam as marcas de poesia, sobretudo para provar que a literatura pode dar imagem do real, mas ultrapassa esse real, recriando-o a partir da emoção, da criatividade e do olhar, erigindo-o em arte, como quando se recorre ao exemplo da descrição da casa: “Quando descrevo a minha casa de forma concisa, objectiva e despersonalizada, deixo inevitavelmente de parte algumas das suas dimensões mais essenciais. Estou a descrever uma casa, mas não estou a descrever um lar. As emoções que o lar convoca escapam a uma descrição factual. No entanto, é isso que constitui o lar: não só o espaço, mas a experiência que nele é vivida. Um lar não se reduz a espaço e tempo (como conceitos físicos), é lugar e história. A casa, enquanto entidade física, é perfeitamente apreensível. (...) A casa pode ser medida, esquadrinhada, modelada em software, reduzida a dados e projecções. O lar esquiva-se a essas descrições. Ao despersonalizar a casa, estou a desabitá-la simbolicamente, a desumanizá-la. Torno-a um lugar genérico, qualquer casa. Mas o lar é sempre singular. É feito daquilo que não se vê: os hábitos, os afectos, os silêncios e os ruídos íntimos que ali se repetem. Só as artes são capazes de descrever o lar. (...) A casa importa, mas é o lar que tem significado.”

A todo o momento o leitor sente a presença do princípio deste livro, em que se equaciona a tarefa de ler, mediante três questões: “Como pomos os adultos a ler mais? Como pomos os jovens a ler mais? Como se formam leitores?” A pertinência das interrogações aumenta quando se sabe que a leitura “não tem uma gratificação imediata”, contribui para o nosso isolamento dos outros e do mundo, requer atenção e “obriga ao esforço da descodificação”, em suma, dá trabalho. Mas é a compreensão de tudo isso que leva à descoberta das compensações e ao fascínio do que é ler — assim, poderemos sorrir quando testemunhamos histórias como as que Afonso Cruz evoca: “alguém está a ler num transporte público, quando ouve uma voz dizendo: ‘Não mude de página, que ainda não acabei.’”; ou a que é retirada das Confissões de Santo Agostinho, que “ficava admirado ao ver Santo Ambrósio ler em silêncio, uma prática incomum na época”, porque o “impressionava como os olhos de Ambrósio percorriam o texto, deixando em descanso a voz e a língua”. Encantos com pequenas coisas que só o silêncio do leitor consegue entender!...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1602, 2025-09-17, pg. 9.


segunda-feira, 15 de setembro de 2025

João Aldeia conta o 25 de Abril de 1974 em Sesimbra



A primeira manifestação sesimbrense sobre a Revolução de 1974 em Sesimbra aconteceu em 30 de Abril desse ano, graças ao entusiasmo do mestre de pesca João Caparica, que chamou à participação a fanfarra dos Bombeiros com os intervenientes usando uma camisa “à pescador”; já no dia seguinte, em 1 de Maio, surgiu uma outra manifestação, ainda mais participada, em cuja liderança estava também gente ligada ao mar. O episódio é evocado no livro A Revolução de 1974 em Sesimbra, o mais recente título de João Augusto Aldeia, uma obra repleta de história(s) e de memória(s) sobre a vida e a sociedade sesimbrense antes e depois de 25 de Abril, num percurso a que não é alheio o facto de o próprio autor ter sido protagonista em algumas das acções, condição que é logo assinalada de início: “O facto de ter participado nos acontecimentos de um determinado período, numa dada comunidade,  constitui uma vantagem ou uma limitação para escrever sobre esses acontecimentos?” A resposta junta as vantagens e as desvantagens, umas e outras devendo ser pesadas criticamente.

É por isso que, a seguir, João Aldeia justifica esta obra: “As ‘leituras’ feitas em Sesimbra em torno da comemoração dos 50 anos da Revolução de 1974 — quer as oficiais, quer as outras — primaram pela indigência, omitindo aspectos relevantes da Revolução (causas, consequências, efeitos positivos e negativos na comunidade). Foi repisada a versão de que ‘antes não acontecia nada’ e que depois tudo foi ‘magnífico’, tudo ‘conquistas da Revolução’, com destaque, neste contexto municipal, para o ‘poder autárquico’. Ou seja: nem uma sombra de dúvida, nem a mínima assunção de aspectos negativos, nenhuma reflexão sobre as iniciativas das populações ou os actos da administração, e o respectivo sucesso ou insucesso.” A intensidade do comentário serve para apresentar globalmente o conteúdo do livro — “um relato sucinto da vida social, cultural e política, anterior e posterior à Revolução de 1974”.

João Aldeia perpassa, depois, por uma diversidade de áreas, tendo em vista um retrato tão completo quanto possível do que foi Sesimbra nesses dois tempos históricos, apresentando dados sobre a população, a actividade económica (pesca, agricultura, turismo, pequena indústria), a guerra colonial, a habitação, as tentativas de preservação ambiental, a actividade política, a questão assistencial, a cultura, a educação, o movimento associativo.

Ao longo da apresentação de dados, o autor não deixa de ser crítico, como quando refere a exaustão dos “pesqueiros” (“nunca foram feitos estudos científicos sobre o problema, uma das mais gritantes falhas do nosso sector científico”), ou quando aprecia a criação em 1998 do Parque Marítimo da Arrábida (que, “sem sólido fundamento científico, foi apenas um placebo”), ou a propósito da construção clandestina na Lagoa de Albufeira (em que poucas demolições aconteceram devido a interferência de Marcelo Caetano), ou sobre a definição dos limites territoriais do concelho (lamentando que a Câmara não tenha ripostado, aquando da publicação do inerente normativo em 1972, às exigências dos concelhos vizinhos de Almada e Seixal, “uma neutralidade difícil de explicar e de aceitar”), ou relativamente às intervenções com razoável conflitualidade levadas a cabo por um autarca como Ezequiel Lino durante os sucessivos mandatos (com consequências políticas e sociais locais).

O trabalho de João Aldeia é fortemente apoiado em dados estatísticos, em registos de imprensa, em documentação da época, em testemunhos diversos e na sua própria memória de participante (que várias vezes menciona, ainda que com modéstia e discrição). Este levantamento serve também para fundamentar a crítica feita à celebração do cinquentenário de Abril, que, não atendendo aos circunstancialismos locais e não procurando reflectir sobre a história, passou ao lado da “dinâmica comunitária” e da “saudável confrontação entre as diversas ideologias” que animaram o período pós-Revolução — exemplo claro dessa ausência de leitura crítica é o de não ter havido uma reflexão sobre as causas que terão levado ao declínio do movimento cooperativista em Sesimbra, muito forte a partir de 1975, ano em que foi criada a Cooperativa dos Apanhadores de Algas Estrela do Sul, ou sobre o aumento da abstenção nos actos eleitorais, no que isso tem a ver com a participação cívica.

A obra é concluída com uma “Cronologia resumida do século XX em Sesimbra”, cujo primeiro registo data de 11 de Abril de 1900, assinalando a “greve dos pescadores das armações de pesca, com intervenção militar que provoca três mortos e numerosos feridos”. Curiosamente, o último registo desta cronologia respeita também à pesca, datado de final de 1999 — “em consequência da não renovação do acordo de pescas entre a União Europeia e Marrocos, a frota sesimbrense da pesca com aparelho de anzol (com cerca de 600 pescadores) ficará parada e a receber subsídios, durante dois anos.” A história local é, muitas vezes, uma boa imagem daquilo que é a história da participação...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1597, 2025-09-10, pg. 10.


quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Lucien Descaves e as andorinhas numa sociedade em guerra

 


“A guerra não dizima apenas os combatentes e os feridos, ou os doentes, a quem a paz pôs fim rapidamente. Também têm de constar nos boletins informativos de perdas os pais e as mães que respiraram esses gases asfixiantes, a angústia e a saudade, e que morreram obscuramente.” A citação surge a poucas páginas do final do romance Uma Andorinha no Telhado, de Lucien Descaves (E-Primatur, 2024), uma narrativa que ocorre num tempo entre Dezembro de 1914 e Julho de 1919, algures no Norte de França, numa vila designada pelos topónimos fictícios de Bourg-en-Thimerais ou Bourg-en-Forêt, que ganha protagonismo por acolher refugiados vindos da região francesa do Aisne durante a Primeira Grande Guerra.

Descaves (1861-1949) teve uma vida que lhe permitiu assistir a três grandes conflitos bélicos — a guerra franco-alemã de 1879, a Primeira Grande Guerra (1914-1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) —, experiências que o tornaram crítico da vida militar e da actividade política. Tendo publicado desde cedo, a sua última obra, de cunho autobiográfico, data de 1946, mas o derradeiro romance que publicou, Uma Andorinha no Telhado, é de 1924 (a edição portuguesa ocorreu no centenário da obra), originariamente divulgado em 41 folhetins diários no periódico Le Journal, entre 11 de Junho e 21 de Julho de 1923. Logo que a narrativa saiu em livro, o crítico Georges Le Cardonnel escrevia no mesmo jornal (28.Abr.1924) que se estava perante uma obra importante no domínio do romance histórico, pois seria possível, numa leitura mais tardia, “encontrar a atmosfera e a cor de uma pequena cidade durante a Grande Guerra”, considerando-a, sobretudo, “um romance de costumes” em torno de figuras, “com os seus defeitos, qualidades, virtudes e baixezas”, que caracterizam “o formigueiro humano”.

A história revela-nos características da sociedade de província, espaço em que todos se conhecem (nas coisas boas e menos boas), em que as divergências políticas acentuam os julgamentos sobre as atitudes de uns e de outros, em que a maledicência entre adversários ou produzida pela coscuvilhice se alimenta da perfídia (que “adora o mistério e as subtilezas”), em que se adoptam rivalidades silenciadoras do contacto e do bom relacionamento, em que se jogam opiniões fabricadas para desmerecer o outro. Simultaneamente, o leitor acompanha o percurso de uma personalidade romântica que morre por amor (amava e julgava-se amada, optando pelo suicídio quando soube que o homem por quem se apaixonara tinha morrido na frente de batalha), assim como entra na vida de outra personagem que, à boa maneira naturalista, gira em torno dos cogumelos, procurando-os e explicando tudo o que a ciência sobre eles sabe, bem como se confronta, ao modo realista, com uma sociedade alicerçada sobre problemas resultantes da chegada de outros (migração interna de mulheres e de crianças, motivada pela fuga dos locais em que a guerra mais atingia os mais frágeis, ou espaço de refúgio para feridos em recuperação).

O título deste romance assenta na simbologia associada à andorinha, mensageira da Primavera ou boa companhia temporária, metáfora da esperança, personificada na presença de duas crianças refugiadas, oriundas da mesma região, uma em cada família de acolhimento, que vão sendo o garante da crença que essas famílias têm de que os seus filhos (um de cada) regressem da frente de guerra sãos e salvos — as crianças funcionam assim como substitutos de outros jovens (ainda que mais velhos) que regressarão às suas origens quando estes chegarem do campo de batalha (se o ciclo não se quebrar), processo não alheio ao fenómeno da superstição, que o próprio narrador teoriza: “Uma crença não é imune a superstições, pelo contrário. As superstições são as plantas parasitas do jardim religioso. Não as arrancamos; deixamo-las invadir as áleas que não embelezam, mas consideramo-las medicinais, e é isso que as salva.”

Constituído por 22 capítulos, o ritmo deste romance não é alheio àquilo que se exige da publicação em folhetim, um constante apelo à atenção do leitor para o cativar. As descrições não são longas, o diálogo e a acção são intensos, os comentários críticos (muitas vezes, irónicos) aos contextos são expressivos pelo que retratam ou pelo que fazem pensar, o desfecho de algumas situações surpreende o leitor. Não sendo um romance sobre a frente de combate (tema em que a literatura francesa sobre a Grande Guerra é rica, seja no domínio do autobiográfico, seja no da ficção), é, sem dúvida, como dizia o crítico já mencionado, Georges Le Cardonnel, “um pequeno estudo sobre a humanidade e sobre a sociedade, num terrível período em que o país se teve de reorganizar na guerra”.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1592, 2025-09-03, pg. 10


quinta-feira, 28 de agosto de 2025

António Gamito Chaínho: Um romance na Comporta



Quando Henry Palmer, na sua mansão em Gorey, recebeu missiva da empresa a convidá-lo para assumir a administração da Herdade da Comporta, não se espantou — era, afinal, o reconhecimento, depois de ter passado por várias partes do mundo a servir a organização, como acontecera no Quénia e no Brasil. É sobre esta aceitação e consequente nomeação que assenta o primeiro capítulo do romance A Papoila dos Arrozais (jornal Ecos de Grândola, 2025), de António Gamito Chaínho (n. 1950).

A acção corre na década de 1960, sem que seja apontada uma data específica, mas com indicações epocais como a da utilização de um Peugeot 403 (modelo de viatura que teve franca adesão no início dessa década), a referência à guerra colonial na Guiné (onde a luta armada existiu desde o início de 1963), a menção da falta de estrada entre Alcácer e a Comporta ou a informação, lá mais para o final da narrativa, de que a ponte sobre o Tejo, em Lisboa, fora inaugurada havia pouco tempo (o que aconteceu em 1966).

A história da chegada do novo administrador constitui um forte pretexto para o leitor, seguindo a personagem e o seu feitor, ir descobrindo como era o território da Comporta ou como eram as vivências dos naturais e dos trabalhadores temporários, para ir assistindo a cenas como a da matança do porco ou a chegada dos vendedores ambulantes à aldeia, para relembrar o papel das bibliotecas itinerantes e, sobretudo, para conhecer as fases e agruras no cultivo do arroz. Nas deslocações que Henry efectuava com o seu feitor, o fascínio pela herdade comovia-o, pois ela parecia “um mosaico de pequenas povoações ao longo das encostas abrigadas e sempre próximas de água”; por outro lado, Henry era sensível para a necessidade de introduzir melhoramentos locais, quer do ponto de vista tecnológico para o tratamento do arroz, quer do ponto de vista comunitário. Com Olivia, a mulher do administrador, o leitor assiste ao fomento do pacto social, intervindo ela em aspectos que pudessem melhorar as condições de vida, como a valorização da educação, para o que dialogou com as professoras da região no sentido de modernizar a escola e as práticas pedagógicas, ou como a valorização de competências das pessoas.

A narrativa desemboca numa história de amor, à primeira vista uma relação difícil por causa da estratificação social, mas com um final feliz, entre Beatriz, “a rapariga mais bela de entre todas as que trabalhavam nos arrozais”, conhecida como “Papoila”, e John, filho dos ingleses, na altura em que veio passar uma temporada à herdade com os pais. Ela, uma rapariga cheia de capacidades artísticas, leitora (não perdia as visitas da biblioteca itinerante), e ele, impressionado desde que a olhou, constroem uma história de aproximação, vencendo as distâncias sociais e a língua afiada de algumas vizinhas, constituindo também um pretexto para o envolvimento entre a administração da herdade e a população local, uma viagem de aproximação e de construção comunitária.

A história tem uma construção linear e fácil, com agradável tratamento das personagens. Contudo, esta obra mereceria algum cuidado de revisão em dois aspectos: por vezes, em algumas construções em que discurso directo dos intervenientes e discurso do narrador se colam devido à pontuação utilizada; por outro lado, numa situação de anacronismo, verificada quando, no início da relação de Beatriz com Olivia, a jovem menciona títulos de várias obras que lera e de que gostava, referindo, entre outras, O Delfim, de Cardoso Pires, e O Ano da Morte de Ricardo Reis, de Saramago, que nunca poderiam ser referências, pois ambas são de publicação posterior ao tempo em que a história ocorre (de 1968 e de 1984, respectivamente), e ainda, numa situação de lapso, no momento em que Beatriz diz gostar de poesia e cita o soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”, de Camões, atribuindo-o a Florbela Espanca.

Valorize-se, na construção de A Papoila dos Arrozais, a preocupação que o autor teve na procura de “detalhes do quotidiano local”, aprendizagem que, no início do livro, agradece a vários informadores que com ele partilharam o seu conhecimento, o que permite assinalar também um cunho histórico-etnográfico que embala esta história, de onde não estão arredios também momentos de reflexão, nos diálogos, sobre aspectos como a vida e a morte, a paixão e a inveja ou a sedução e o riso, questões que passam também pelo discurso e pelos pensamentos das personagens que animam esta narrativa.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1587, 2025-08-27, pg. 10.

 

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Teresa Martins Marques e o romance de Miguéis

 


O assunto é a biografia de José Rodrigues Miguéis (1901-1980), escritor nascido em Lisboa, com passagem por Setúbal em 1925 (onde foi delegado do Procurador da República), que, a partir de 1929, viveu no estrangeiro (em Bruxelas, por quatro anos, e em Nova Iorque, desde 1935 até ao falecimento) e que, em Portugal, teve intensa acção na imprensa (Seara NovaDiário de LisboaDiário PopularO Globo, entre outros). No entanto, é uma biografia com marcas inovadoras e surpreendentes esta, que cruza o biografado com uma sua amiga, a cientista Maria de Sousa (1939-2020), e com a própria autora, várias vezes mencionada no seu estatuto de estudante e de investigadora da obra do escritor. O próprio título da obra chama a atenção do leitor para uma forma de biografar distante do convencional — Nos Passos de José Rodrigues Miguéis - Uma Biografia como um Romance, obra devida a Teresa Martins Marques (Âncora Editora, 2025), cuja primeira obra publicada sobre o mesmo autor data de 1994, O Imaginário de Lisboa na Ficção Narrativa de José Rodrigues Miguéis (Editorial Estampa).

Ler uma vida como se o leitor esteja perante um romance, pois. Miguéis e Maria de Sousa foram amigos e tiveram muitas horas de conversa. Este foi o primeiro pretexto para Teresa Martins Marques fazer destes dois nomes as personagens necessárias para a acção desta obra, num diálogo imaginário, em que ele se conta e ela o ouve e inunda com perguntas e observações. Se a longa entrevista é fruto da imaginação da autora (visando interligar os tempos e as acções, problematizar e informar sobre os contextos, aprofundar o pensamento do biografado, enfatizar o percurso utilizando a narração na primeira pessoa), o seu conteúdo é consequência de aturada leitura e investigação, que passou por: conversas com pessoas que foram próximas de Miguéis (Maria de Sousa e Camila Miguéis, sobretudo) e com estudiosos da sua obra  (David Mourão-Ferreira e Onésimo Teotónio de Almeida, por exemplo); conhecimento exaustivo da obra publicada em livro e em periódicos e de materiais não publicados; leitura intensa de documentação alusiva a Miguéis, particularmente na vertente epistolográfica, em que se destacam destinatários como José Saramago (1922-2010), David Ferreira (1897-1989), Jacinto Baptista (1926-1993) ou Taborda de Vasconcelos (1924-2009), entre outros.

Se a palavra “romance” no subtítulo da obra serve para garantir a fluência narrativa, a verdade é que a sua estrutura, fortemente apoiada no género entrevista, vive de tipologias muito diversas de escrita — do monólogo da personagem, ora em tom diarístico ora em exercício de reflexão e de anotação sobre as histórias que fizeram a sua vida; do ensaio, que surge como leitura feita pelo próprio biografado à medida que os trabalhos sobre a sua obra vão chegando ao seu conhecimento; da epistolografia, que suporta muitas das ideias do correspondente e contextualiza as vivências, permitindo uma proximidade maior ao leitor; do resumo de algumas obras, recurso importante pela dimensão autobiográfica que muitas delas apresentam, contendo mesmo chaves de descodificação dessa marca de vivência pessoal.

Nos Passos de José Rodrigues Miguéis é a biografia necessária para o leitor se aproximar de um autor que, sempre preocupado com o que se passava em Portugal, teve de fazer a sua vida distante do país (numa situação entre a emigração e o exílio), não só em termos geográficos, mas também de mentalidade, pois não teve afinidades com o regime político que “Salatzar” ou “Salaczar” marcou, teve a sua acção controlada pela polícia política, recusou o Prémio Nacional de Novelística (apesar de o dinheiro lhe fazer falta) e afirmava o seu tom contestatário “contra gregos e Caetanos”.

Miguéis, que publicou durante 60 anos (no levantamento da bibliografia activa que Teresa Martins Marques apresenta, o primeiro texto publicado sai em Abril de 1921 no jornal O Sol, de Beja, e o último em Agosto de 1980, no Diário Popular, apesar de não ter sido este o seu derradeiro texto), surge vivo na sua argúcia crítica (sobre os outros e sobre si mesmo, com diálogos construídos sobre citações suas), na sua vida complexa e recheada de muitos dissabores e sofrimentos, na sua qualidade de escritor a ser lido e pensado pelo seu olhar sobre Portugal sem tibiezas. Teresa Martins Marques, cuja obra se estende pelo ensaísmo e pelo romance, conseguiu aliar estas duas tónicas em prol de uma biografia necessária, que passará a ser de consulta indispensável para um mais profícuo entendimento da obra de José Rodrigues Miguéis.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1582, 2025-07-30, pg. 10.


quinta-feira, 24 de julho de 2025

Entre a gramática e as rosas

 


“Em qualquer língua, e muito mais na nossa, saibamos que a primeira e principal virtude da língua é ser clara e que a possamos todos entender.” Quem assim escreveu foi o aveirense Fernão de Oliveira (1507-1580?), autor da primeira gramática sobre a língua portuguesa, publicada em 1536, Gramática da Linguagem Portuguesa.

Começava assim, para o português, o que deveria ser um tratado sobre uma língua como factor de identidade e o estabelecimento de um conjunto de normas para afirmação dessa mesma estrutura. Ao longo dos tempos, esse fulgor normativo vingou, por vezes tentando sobrepor-se à criação literária (que, muitas vezes, se caracteriza pela capacidade de transgredir criativamente a norma), nem sempre tendo havido o doseamento necessário para que a gramática fosse vista como um auxiliar em vez de ser uma finalidade... por vezes, tentando sobrepor-se à literatura e nem sempre conduzindo ao gosto de ler, infelizmente.

Foi em 16 de Março de 1949 que Sebastião da Gama (1924-1952), então professor de Português na Escola Veiga Beirão, em Lisboa, escreveu no seu Diário, um pouco em jeito de desabafo quanto à obsessão da gramática de muitos docentes: “Olho para o passado e vejo a Gramática. A Gramática. A Gramática. Eu nem sei como aprendi a gostar de ler. Talvez por uma predisposição interior, uma fatalidade. Deve ser, sim: porque os meus companheiros não liam e estou quase certo de que não lêem. (...) Os outros também fechavam os livros (ou não chegavam a abri-los... ) mas era por causa da Gramática.” E explicava, a seguir: “Porque é que se não ensina a Gramática, já sistematizada, senão depois de os escolares poderem já ver o que ela é e sobretudo depois de já gostarem das palavras? A palavra, para os gramaticómanos, é um cadáver numa mesa de anatomia; quem pode amar um cadáver? Depois da dissecação do estilo, a beleza, a música, a personalidade de cada palavra já não pode ser gostada pela criança, receosa de errar o género, o número, a forma da palavra que tem em frente; e receosa do oito, do sete, do seis da tabela; e receosa do ponteiro com que certos professores ensinam, impõem a gramática.” Talvez estes exageros tenham sido os responsáveis pela pertinente observação “O meu ídolo é a gramática portuguesa, à qual faço constantes heresias.”, deixada por Agustina Bessa-Luís (O livro de Agustina Bessa-Luís, 2007), ou por outra, mais arrojada, devida a J. Rentes de Carvalho, ao registar no seu diário: “Não recordo obra-prima da literatura saída das mãos de um especialista da gramática.” (Pó, cinza e recordações, 2014).

É forte o desafio do poeta-professor azeitonense, um quase grito de revolta, que encontrava sustentação nos ensinamentos que bebia do seu professor metodólogo, Virgílio Couto (1901-1972), autor do programa de Português para o ensino técnico em 1948, que defendia que o estudo da gramática tinha “corrompido a lição de Português, tornando em estéril esforço de exegese o que houvera de ser fecundo estímulo de formação mental e estética” e advogava que ele devia ser “não sistematizado, feito em presença dos casos ocorrentes no trecho”, conduzindo à aprendizagem “das normas pela observação reflectida dos fenómenos”.

Quando escreveu as suas memórias do ensino, Frank McCourt (1930-2009) reflectiu sobre o papel da gramática de uma forma metafórica e pacificadora — “A psicologia é o estudo do comportamento das pessoas. A gramática é o estudo do comportamento da língua.” (O professor, 2009) Terá passado por pensamentos como este a prática do professor que Sebastião da Gama foi, quando, em 26 de Julho de 1948, escreveu à sua amiga Leonoreta Leitão, a contar a última aula que tinha dado em Setúbal: “Ontem gostaria que estivesses na minha aula das onze. Foi a última às minhas meninas de Português — as únicas que eu tive em Português e que ensinei a amar a Poesia. (...) Ora, depois de terem cantado, uma delas leu umas palavras estupendas que escrevera e que acabavam por um ‘viva o sr. doutor! viva a Poesia — abaixo a gramática!’”

Não se trataria de uma rebelião, mas de um olhar a gramática como algo diferente dos códigos punitivos, mesmo porque, como Álvaro Laborinho Lúcio registou no seu romance As Sombras de uma Azinheira (2022), “a gramática é o local onde as palavras fazem as pazes” e “a poesia é o lugar onde as palavras se entregam ao poder do pensamento livre”, porque ela “está acima das palavras”, “são elas que lhe obedecem, que se lhe entregam.” Voltando a Sebastião da Gama e ao seu Diário, em 20 de Abril de 1949, ele auto-receitava-se: “Talvez não seja errado, portanto, dar-lhes agora, uma vez por outra e por sugestão dos textos, aquilo que na gramática é fundamental e útil. Ir traçando um panorama geral da Gramática em linhas simples – e, a enfeitá-lo, rosas, rosas, muitas rosas...” Princípio simples, mas fundamental!

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1577, 2025-07-23, pg. 9.


sexta-feira, 18 de julho de 2025

Um dicionário para a história de Setúbal

 


São 474 entradas devidas a 74 colaboradores, num trabalho coordenado por Albérico Afonso Costa (n. 1951) sob o título Dicionário de História de Setúbal, agora apenas o primeiro volume (de um previsto conjunto de três), abrangendo as cinco primeiras letras.

Por coincidência, o primeiro artigo remete-nos mesmo para o imaginário do que são as “primeiras letras”, nota sobre “ABC”, um quinzenário que, em Abril de 1915, se anunciava em Setúbal a pretender dizer “bem alto a Verdade e a Justiça, tendo por lema o tradicional doa a quem doer”, mas que teria duração efémera, saindo apenas cinco números. A última referência deste volume vai para “Expostos (Casa da Roda dos)”, prática que expunha recém-nascidos, abandonados por razões diversas, à caridade pública, explicando contextos e indicando localização e alguns números desta prática em Setúbal.

No essencial, esta obra bem se equipara a um “dicionário enciclopédico” de carácter local, reunindo os assuntos por ordem alfabética (à semelhança dos dicionários) e carreando para cada um deles uma quantidade de informação, em forma sistematizada, à maneira das enciclopédias, assim conjugando ordem e saber, numa tentativa de facilitação de procura e de acesso a informação e de lançamento de pistas que podem constituir pontos de partida para investigações mais aturadas, não faltando mesmo indicações bibliográficas de apoio em grande parte dos verbetes.

Se a historiografia de Setúbal já tem alguns títulos de ordenação sistematizada no domínio das biografias — devidos, por exemplo, a Fran Paxeco (1874-1952), em Setúbal e as suas Celebridades (1930), a Óscar Paxeco (1904-1970), em Setubalenses Homens Ilustres da Igreja (1966), a Ricardo Correia (1917-2004), em Vultos Setubalenses (1986) e em Figuras Populares de Setúbal (1987), ou a João Francisco Envia (1919-2010), nos dois volumes de Setubalenses de Mérito (2003 e 2008) —, o mesmo não acontece relativamente a momentos, espaços ou temas que tenham tido repercussão na história sadina (ainda que, quanto ao jornalismo, haja um catálogo, A Imprensa em Setúbal - 1855-1983, devido a Idília Martins, editado em 1984) ou que a liguem a momentos históricos nacionais, apesar da vasta bibliografia e cronologias setubalenses elaboradas por investigadores locais como Albérico Afonso Costa, Almeida Carvalho, Álvaro Arranja, Carlos Mouro, Carlos Tavares da Silva, Diogo Ferreira, Joaquina Soares ou Rogério Peres Claro, entre muitos outros.

Dicionário de História de Setúbal dá um contributo para essa ordenação de acesso facilitado, seguindo o alfabeto, ao reunir informação diversificada — a título de exemplo, a letra A, com 113 entradas, estende-se pelo historial de uma dúzia de títulos de imprensa, de meia centena de biografias, de mais de 30 instituições e de mais de uma dúzia de entradas relativas a acontecimentos, especificidades ou situações (como “Anticlericalismo Republicano”, “Aqueduto de D. João II” ou “Atentado contra Almeida Carvalho”, por exemplo).

Valerá a pena prestar atenção a dois objectivos desta obra apontados no texto introdutório, da responsabilidade do organizador: pretende-se uma afirmação contra a “estranha época de esquecimento planificado” em que, frequentemente, nos sentimos viver, como se perspectiva “entregar à cidade partes do seu passado”, entendendo-se a “cidade” como a sociedade ou como a identidade que a fazem. Ao ser estabelecido como critério que, quanto aos biografados, aparecerão apenas os já falecidos, terá o leitor de olhar para este “Dicionário de História de Setúbal” como algo que se vai actualizando, que vai seguindo o rumo dos acontecimentos humanos, assumindo-se que nunca está obra completa, independentemente das “ausências” que desde já sejam notadas e que podem vir a ser supridas num eventual espaço de “adenda” ou de “actualização” a ser inserido no último volume...

É sabido que a consulta dos periódicos acaba por, no domínio das reconstituições históricas e da verificação de factos, assumir um papel de importância para a investigação, sobretudo no domínio da história local. Francisco Rito, director de O Setubalense (editor desta obra), refere essa dimensão dos jornais em nota introdutória em que não falta o tom compromissivo, ao dizer que “os jornais vieram para guardar o tempo até ser ressuscitado”. É, por isso, interessante que a iniciativa de publicar uma obra deste género, além da responsabilidade do seu coordenador e dos autores, tenha o peso da responsabilidade de um jornal regional, atitude que faz jus ao princípio que alimenta qualquer periódico — o de contar a história do quotidiano do mundo, transformando os dias em história, alimentando o romance do ser humano e dos acontecimentos (como o podemos verificar desde que, em Dezembro de 1641, se começou a publicar o mais antigo jornal português, a Gazeta em que se relatam as novas todas que houve nesta Corte e que vieram de várias partes no mês de Novembro de 1641). Este Dicionário de História de Setúbal não será perfeito, mas contribui para a construção da perfeição que sempre se deseja, possibilitando olhares múltiplos sobre o passado e sobre os caminhos que permitiram a chegada ao presente.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1572, 2025-07-16, pg. 10.