Andamos em tempo de discursos promissores do paraíso na terra (sem que se diga como) e repletos de observações sobre os outros (que são os potenciais adversários), replicados e anotados em não menor estilo de campanha por quem se diz ser comentador... Vem à memória, para contrariar, um poema que corria nos manuais escolares da escola primária, “Vozes dos Animais”, jogo com os verbos que designam as vozes de quase quarenta animais e conclui com o humano: “A fala foi dada ao homem, / Rei dos outros animais. / Nos versos lidos acima, / Se encontram, em pobre rima, / As vozes dos principais.” O autor não se tinha em grande conta como poeta, mas o texto vingou e permaneceu e, em 1883, Antero de Quental, na sua recolha Tesouro Poético da Infância, incluía este poema de Pedro Dinis (1839-1896), nome de quem pouco se sabe. Camilo Castelo Branco também o antologiara no seu Cancioneiro Alegre (1879), escolhendo um outro texto, mas mencionando ser “Vozes dos Animais” o seu mais conhecido poema, um conjunto “de quadrinhas recitadas pelos nossos pequenos” onde “destila dos seios o leite da instrução primária em apojadura copiosa”.
Ao destacar o homem por ser a criatura que fala, Pedro Dinis intuía que tal superioridade advinha do acto de pensar e do saber, fases primeiras para que a fala seja consistente, fundamentada. Apesar de se saber isso, a verdade é que o esquecimento nos atraiçoa muitas vezes. Assim, na lembrança sobre a oportunidade da fala, recorra-se a Julian Barnes, que nos transmite, quase proverbialmente, o que deveria ser levado como máxima de vida: “Sobre aquilo de que não sabemos falar devemos guardar silêncio.” (in O Sentido do Fim, 2011) Contudo, atrever a incluir este princípio na argumentação é difícil... pois a qualidade da argumentação na discussão e partilha de opiniões nem sempre é preocupação e os hábitos legitimam o falar “porque sim”, confundindo as noções de direito adquirido, liberdade de expressão e ignorância.
Uma outra farpa no discurso é a das condicionantes com que o querem formatar, mais com o objectivo de destruir ideias ou quem as profere. Na narrativa Desisto (2006), Philippe Claudel chamou a atenção para isso, ao dizer: “Hoje em dia, toda a gente evita chamar as coisas pelos nomes: um cego é um invisual, um animador de televisão um artista, os mortos em breve serão não-vivos.” Esta observação ganha acuidade hoje, tempo em que os cuidados em torno dos substantivos (prefiro esta designação àquela que a gramática instituiu, designando-os como “nome”) e dos adjectivos utilizados condicionam a expressão e facilmente servem para fazer desmoronar uma ideia ou para se ser acusado de coisas que nem tinham passado pela cabeça do falante.
Com mais ou menos habilidade, quem fala facilmente pode chegar à falácia (um raciocínio incoerente e não fundamentado, aparentemente verdadeiro) e o objectivo do discurso como forma de aproximação entre humanos facilmente se esvai, com proveito apenas para uma das partes. Deve-se a Eurípedes, na peça teatral As Bacantes, uma análise como esta: “Quando falta o bom senso ao homem audaz e simultaneamente poderoso e hábil na palavra, ele torna-se um cidadão perigoso.” Eurípedes, vivendo no século V antes de Cristo, sabia o que pode um discurso hábil fazer, mesmo que assente sobre erros ou mentiras, sobretudo se não houver o discernimento necessário à análise e reflexão sobre o mundo. O papel do ouvinte, muitas vezes passivo ou na pele do adepto fervoroso, presta-se à situação, sobretudo se se valorizar o espectáculo ou o sentir grupal (venha ele por razões sociais, profissionais, políticas, desportivas ou outras). A verdade é que a responsabilidade do ouvinte é grande, mas, muitas vezes, anulada, como se infere do que escreveu Italo Calvino, em As Cidades Invisíveis (1972): “Eu falo falo, mas quem me ouve só fixa as palavras que deseja. (…) Quem comanda o conto não é a voz: é o ouvido.” Será pouco, convenhamos, para aquilo que deve ser um ouvinte...
Foi Ruben A. (falecido há meio século), com a sua causticidade e análise provocatória, que, no segundo volume do relato autobiográfico O Mundo à Minha Procura (1966), gravou este pensamento: “Sempre notei que na vida portuguesa não há qualquer relação entre os discursos que se proferem, parangonas que os jornais estampam, e a vida real do País. (...). Em discursos devemos ser o primeiro país do mundo, não só pela quantidade, mas pela diversidade de estilos e de assuntos que cada ser genial abarca diante de um público numeroso e atentamente interessado.”
Um olhar assim condicionado sobre a vida leva a que se siga o que Oscar Wilde desmascarou: “Aquilo de que se não fala nunca aconteceu. É apenas a expressão que dá realidade às coisas.” (in O Retrato de Dorian Gray, 1891) O problema parece residir, então, na selecção dos (prováveis) acontecimentos. E, consequência disso, com frequência, a discussão da actualidade passa pela discussão do que foi dito e como foi dito e não pelo tema do que foi feito ou do que falta ou do que deveria ser feito. E, já agora, do “como” deveria ser feito, uma tónica em que o discurso político é sempre hábil na arte da fuga e na arte (pouco) argumentativa...
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1617, 2025-10-08, pg. 2.