“Em qualquer língua, e muito mais na nossa, saibamos que a primeira e principal virtude da língua é ser clara e que a possamos todos entender.” Quem assim escreveu foi o aveirense Fernão de Oliveira (1507-1580?), autor da primeira gramática sobre a língua portuguesa, publicada em 1536, Gramática da Linguagem Portuguesa.
Começava assim, para o português, o que deveria ser um tratado sobre uma língua como factor de identidade e o estabelecimento de um conjunto de normas para afirmação dessa mesma estrutura. Ao longo dos tempos, esse fulgor normativo vingou, por vezes tentando sobrepor-se à criação literária (que, muitas vezes, se caracteriza pela capacidade de transgredir criativamente a norma), nem sempre tendo havido o doseamento necessário para que a gramática fosse vista como um auxiliar em vez de ser uma finalidade... por vezes, tentando sobrepor-se à literatura e nem sempre conduzindo ao gosto de ler, infelizmente.
Foi em 16 de Março de 1949 que Sebastião da Gama (1924-1952), então professor de Português na Escola Veiga Beirão, em Lisboa, escreveu no seu Diário, um pouco em jeito de desabafo quanto à obsessão da gramática de muitos docentes: “Olho para o passado e vejo a Gramática. A Gramática. A Gramática. Eu nem sei como aprendi a gostar de ler. Talvez por uma predisposição interior, uma fatalidade. Deve ser, sim: porque os meus companheiros não liam e estou quase certo de que não lêem. (...) Os outros também fechavam os livros (ou não chegavam a abri-los... ) mas era por causa da Gramática.” E explicava, a seguir: “Porque é que se não ensina a Gramática, já sistematizada, senão depois de os escolares poderem já ver o que ela é e sobretudo depois de já gostarem das palavras? A palavra, para os gramaticómanos, é um cadáver numa mesa de anatomia; quem pode amar um cadáver? Depois da dissecação do estilo, a beleza, a música, a personalidade de cada palavra já não pode ser gostada pela criança, receosa de errar o género, o número, a forma da palavra que tem em frente; e receosa do oito, do sete, do seis da tabela; e receosa do ponteiro com que certos professores ensinam, impõem a gramática.” Talvez estes exageros tenham sido os responsáveis pela pertinente observação “O meu ídolo é a gramática portuguesa, à qual faço constantes heresias.”, deixada por Agustina Bessa-Luís (O livro de Agustina Bessa-Luís, 2007), ou por outra, mais arrojada, devida a J. Rentes de Carvalho, ao registar no seu diário: “Não recordo obra-prima da literatura saída das mãos de um especialista da gramática.” (Pó, cinza e recordações, 2014).
É forte o desafio do poeta-professor azeitonense, um quase grito de revolta, que encontrava sustentação nos ensinamentos que bebia do seu professor metodólogo, Virgílio Couto (1901-1972), autor do programa de Português para o ensino técnico em 1948, que defendia que o estudo da gramática tinha “corrompido a lição de Português, tornando em estéril esforço de exegese o que houvera de ser fecundo estímulo de formação mental e estética” e advogava que ele devia ser “não sistematizado, feito em presença dos casos ocorrentes no trecho”, conduzindo à aprendizagem “das normas pela observação reflectida dos fenómenos”.
Quando escreveu as suas memórias do ensino, Frank McCourt (1930-2009) reflectiu sobre o papel da gramática de uma forma metafórica e pacificadora — “A psicologia é o estudo do comportamento das pessoas. A gramática é o estudo do comportamento da língua.” (O professor, 2009) Terá passado por pensamentos como este a prática do professor que Sebastião da Gama foi, quando, em 26 de Julho de 1948, escreveu à sua amiga Leonoreta Leitão, a contar a última aula que tinha dado em Setúbal: “Ontem gostaria que estivesses na minha aula das onze. Foi a última às minhas meninas de Português — as únicas que eu tive em Português e que ensinei a amar a Poesia. (...) Ora, depois de terem cantado, uma delas leu umas palavras estupendas que escrevera e que acabavam por um ‘viva o sr. doutor! viva a Poesia — abaixo a gramática!’”
Não se trataria de uma rebelião, mas de um olhar a gramática como algo diferente dos códigos punitivos, mesmo porque, como Álvaro Laborinho Lúcio registou no seu romance As Sombras de uma Azinheira (2022), “a gramática é o local onde as palavras fazem as pazes” e “a poesia é o lugar onde as palavras se entregam ao poder do pensamento livre”, porque ela “está acima das palavras”, “são elas que lhe obedecem, que se lhe entregam.” Voltando a Sebastião da Gama e ao seu Diário, em 20 de Abril de 1949, ele auto-receitava-se: “Talvez não seja errado, portanto, dar-lhes agora, uma vez por outra e por sugestão dos textos, aquilo que na gramática é fundamental e útil. Ir traçando um panorama geral da Gramática em linhas simples – e, a enfeitá-lo, rosas, rosas, muitas rosas...” Princípio simples, mas fundamental!
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1577, 2025-07-23, pg. 9.