quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (5)

 

 

A ligação de Sebastião da Gama a Estremoz seguiu um caminho de intensidade crescente, numa simpatia mútua e na construção de uma rede de afectos, como testemunha uma sua carta dirigida a Albano Ferreira, em 7 de Setembro de 1951: “Devo estar mais um ano, pelo menos, em Estremoz. A terra é agradável, a gente é boa.” Esta permuta afectiva revelou-a ele a quem o ouviu quando, em Abril de 1951, a convite de João Falcato, repetiu no Colégio Estremocense a conferência que fizera em Setúbal sobre Bocage — a concluir a palestra, disse, numa linguagem de empatia e com não menos dose de simplicidade, ter sido “o prazer de pagar aos estremocenses com leite do meu gado o puro azeite da simpatia e do bom acolhimento.”

Estremoz foi também o espaço e o tempo de transformação e de criação para Sebastião da Gama, visível até nos gestos mínimos, provas da satisfação e do prazer de sentir e de partilhar a alegria e a vida, tal como contou em carta de 13 de Janeiro de 1951 a Joana Luísa: “Alegre, alegre mesmo com a chuva, é o mercado aos sábados. Hoje comprei - pelo prazer de comprar: dois molhinhos de rabanetes, que trouxe na mão como violetas; meio quilo de peros; um prato de barro para os pôr: no fundo tem um passarinho.” Há lá maneira melhor do que recriar a vida ao atribuir significado e força àquilo que impressiona o olhar de um poeta!...

Na obra Uma Outra Voz, de Gabriela Ruivo Trindade (Leya, 2014), romance baseado na figura de João Francisco Carreço Simões e na sua acção em Estremoz, Sebastião da Gama, designado como “professor” e como “poeta” ocupa quase três páginas, num retrato traçado a partir das memórias que deixou na cidade alentejana. É através da personagem José Eduardo Serrão, com 15 anos em 1954, que o leitor recebe o eco das lembranças do poeta da Arrábida que permaneceu em quem com ele privou.

“Do professor de português, o poeta, é que nunca mais me esqueci.” — assim começa a evocação. E, no final da passagem: “Depois de o poeta abalar — não gosto de dizer que morreu —, parecia que me tinha passado a vontade de rir. Comecei a ler cada vez mais.” A memória exposta vale como um testemunho do que para quem o conheceu em Estremoz significou a figura de Sebastião da Gama: a leitura que ele fazia de poemas, que se tornava motivadora, enchendo-se-lhe, por vezes, os olhos de lágrimas ao longo do poema; o professor que “falava da beleza das pedras, das cores das folhas no Outono, do azul do mar, da imensidão dos céus e da magia das estrelas”; as sucessivas chamadas de atenção para a beleza do outro e da Natureza; a abertura para que os alunos interviessem nas aulas e o prazer que os estudantes tinham no tempo de uma lição com aquele professor; os ensinamentos de solidariedade recebidos, convidando os jovens à partilha e à dedicação aos mais necessitados; as suas idas ao mercado estremocense para comprar flores... enfim, um conjunto de marcas que identificaram Sebastião da Gama no seu relacionamento com a vida e com o local. Se dúvidas existissem quanto à identificação deste professor e poeta, elas seriam desvanecidas com a referência à Arrábida, com a indicação da sua morada, “no segundo andar de uma casita do Largo do Espírito Santo”, com a alusão a uma prenda que a personagem recebera — “Não era à toa que lhe chamávamos poeta, pois, além de tudo isto, escrevia versos. Ainda guardo um livro de poemas seus chamado Cabo da Boa Esperança que me ofereceu.”

Para esta personagem, que tinha 13 anos aquando do falecimento de Sebastião da Gama, o desaparecimento do poeta volveu um quase-mistério: “Nunca percebi bem que doença tinha, e depois de ter abalado as pessoas também preferiram não falar disso. Foi-se embora durante as férias do Carnaval e, apesar de tudo, ia feliz por regressar à sua Serra da Arrábida, como dizia. É um lugar muito longe daqui, explicou, ‘onde os ares são muito puros e curam algumas doenças’. Com ele, pelos vistos, não resultou. Ouvi algumas conversas e também li no jornal. Vinha uma fotografia e um poema dele, que começa assim: ‘Quando eu nasci / Ficou tudo como estava...’ E depois, em baixo, a cruz preta. Penso nele muitas vezes com saudade. Foi a primeira pessoa de quem gostava que morreu. Sem contar com o meu pai, claro.”

Muito embora sendo o testemunho de uma personagem de ficção, a intensidade desta caracterização corresponderá ao que a sociedade estremocense da época ficou a conhecer de Sebastião da Gama, fosse pelo retrato chegado (e mantido) por via dos seus alunos, fosse por quem com ele conviveu na escola e na rua, no café, nas tertúlias e no Rossio. Manter a imagem do poeta através de uma obra de ficção é também uma forma de resolver o mistério que envolve uma partida aos 27 anos, sobretudo quando sentida por uma população juvenil que neste professor encontrava momentos de felicidade... como sucessivamente muitos foram lembrando ao longo dos tempos.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1468, 2025-02-12, pg. 10.

 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (4)

 


Acilda Fragoso, a aluna, teve no professor-poeta um amigo e também ela foi motivo de apresentação a Joana Luísa através de carta, em 1951 — em 11 de Fevereiro: “Ontem, (...) encontrei a Acilda e a Maria Emília. Tão bonitas ambas, sob a chuva! Comprei-lhes violetas.”; em 7 de Março: “A Acilda faz anos na sexta. Disse-me o Banha. E eu combinei oferecer-lhe três ou quatro dos poemas deste ano dentro de uma capa feita pelo Banha. Na capa: somos assim aos 17.” Cerca de 60 anos depois da morte de Sebastião da Gama, em 13 de Abril de 2013, Acilda Fragoso evocava-o em Azeitão, mantendo viva a imagem, tal como a senhora que indicou ao visitante onde era o Largo do Espírito Santo: “O pedagogo, o professor amigo e poeta, deixou-nos em 7 de Fevereiro de 1952; no entanto, a sua presença persiste indelével na memória de todos os que tiveram o privilégio de com ele conviver, especialmente dos seus alunos. O Poeta-Professor ou Professor-Poeta, único no seu todo, sabia como nos fazer sentir únicos e como buscar o melhor de cada um dos seus alunos, deixando-nos perplexos com a descoberta de nós próprios. (...) Nesta cidade, de gente pacata, todos conheciam aquele homem barulhento, e que até era o novo professor, sempre de boina na cabeça, trazendo às vezes flores nas mãos, além de livros, porque, falando alto com a sua voz rouca, com todos metia conversa.”

Desde que chegou a Estremoz, Sebastião da Gama (a viver inicialmente na então Rua das Areias) insistiu na procura de casa para viver com Joana Luísa após o casamento (que se realizou em 4 de Maio de 1951). É numa carta de meados de Março, que, depois de ter desistido de várias propostas e de ter encontrado uma do seu agrado, escreve para Azeitão: “Estou doido com a casa. Vê-se toda a cidade e metade do Alentejo. A praça é engraçada — em frente de duas torres, de um chafariz, de uma capela. A cozinha, triangular, é grande e engraçada. Da janela vê-se quase tanto como do terraço, que é no terceiro andar (no telhado). É inclinado, não serve para lá comer ou trabalhar. Mas para o banho de sol é excelente.” Poucos dias depois, nova longa carta faz nova descrição da casa, terminando com uma promessa: “Vamos gostar tanto da nossa casa e do repouso que tenho cá que não nos apetecerá sair, pois não?” Estava escolhida a morada futura e os preparativos foram acontecendo com a ajuda de várias pessoas, entre as quais, Acilda Fragoso e Guiomar Ávila. Em vista, estava o segundo andar do número 2 do Largo do Espírito Santo, endereço que daria título a poema em 9 de Junho de 1951, registando como local de escrita “Nossa casa”, oito quadras que a apresentam a partir do sonho de quem a habita, do interior do lar e de um “nós” que alimenta todo o poema, talvez um dos mais belos poemas de amor. Publicado pela primeira vez na revista Árvore, o título suscitou divergências com a direcção, pois havia quem não aceitasse que uma morada figurasse como título de um poema... Foi preciso que Sebastião da Gama se impusesse e escrevesse ao seu amigo Luís Amaro a não deixar alternativas para o título ou, de outra forma, não aceitaria publicar na revista.

As imagens de Estremoz perpassam também na correspondência que Sebastião da Gama vai trocando com amigos como Virgílio Couto (o seu professor metodólogo), Cristovam Pavia e Luís Amaro (ambos alentejanos, ambos poetas), António Manuel Couto Viana (poeta), Matilde Rosa Araújo e Lindley Cintra (colegas da Faculdade e professores), José Régio (escritor), António Sampaio (pintor), Pedro Lisboa (médico) ou Albano Ferreira (que fora seu aluno em Lisboa). Nestas missivas, há frequentemente notas sobre a vida em Estremoz, em pequenos apontamentos que constituem recortes interessantes sobre o quotidiano, como se pode verificar na carta enviada a Matilde Rosa Araújo em 13 de Outubro de 1951, relatando um episódio vivido num sábado: “Hoje, logo pela manhã, uma coisa de nada cheia de ternura: no lugar do mercado onde se vende loiça de barro, um prato (não é bem um prato: é fundo e ondulado na beira) com este nome no fundo: MATILDES ROSA! Ó Matilde: o que nós rimos e nos comovemos ao mesmo tempo! Matildes Rosa! Que lindo vai no ‘seu erro de ortografia’ - diria o António Nobre. Comprámo-lo, está à tua espera. Se aparecer outro ficará entre os que têm (esses encomendados) os nomes dos nossos sobrinhos. Para te lembrarmos e eu te lembrar um pouco mais ainda.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1463, 2025-02-105, pg. 10.

 

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (3)


Dedicatórias autógrafas de Sebastião da Gama para
Joaquim Vermelho, Maria Guiomar Ávila e Acilda Fragoso


Pelas crónicas estremocenses de Sebastião da Gama, vindas a público no Jornal do Barreiro, passa a paisagem, a festa de Carnaval, a cidade, o mercado, a simpatia das gentes, episódios do quotidiano do poeta, um jogo de futebol, os amigos... tudo num xadrez de observação e de contemplação enlaçadas em afecto, patente em exemplos como: a) ao referir a paisagem, diz ainda não a conhecer “senão da janela do quarto ou da Torre de Menagem — o campanário de Estremoz e o seu mirante, de onde os olhos se admiram para os olivais sem fim, para o verde que te quero verde dos trigos, para as searas onduladas”, umas pinceladas que nos remetem para outra vastidão, também ela “ondulada”, também ela podendo ser “verde”, como o mar que marca forte presença na poesia de Sebastião da Gama, assim como nos remetem para García Lorca, intertextualizando com o seu “Romance sonâmbulo”, quando diz “Verde que te quiero verde. / Verde viento. Verdes ramas.” (e sabemos bem quanto Sebastião da Gama conhecia e apreciava a poesia espanhola, como David Mourão-Ferreira testemunhou numa entrevista); b) ao olhar o Rossio estremocense, não duvida de que a cidade pode ser “uma caixinha de surpresas” e proclama, quase em jeito de provocação, que “o Rossio de Estremoz poderia tratar por tu o de Lisboa”; c) para referir a hospitalidade alentejana, inicia uma crónica em torno de uma reflexão tão cheia de simplicidade quanto “só estou bem onde estou”, reforçando não se ver como forasteiro, mas sentir-se “em casa”; d) finalmente, na última “carta”, atesta a sua identificação: “Sou de Estremoz e dos seus arredores — e aqui é verde e alegre. Este é um Alentejo de flores e pássaros, de colinas e fontes, de cantigas gárrulas no ar.” Lemos estas afirmações e mais sentido ganha a ideia de que um poeta como Sebastião da Gama não pode viver preso a uma geografia, ainda que dela se sirva para, como refere Ruy Ventura no ensaio que integra na antologia Por Mim Fora (2024), funcionar como “arquétipo simbólico, símbolo visto, criatura / pintura que torna presente, por meios misteriosos e ainda assim imperfeitos, o supremo Criador ou Pintor”.

A presença de Sebastião da Gama em Estremoz passou muito pelas amizades aqui descobertas, várias registadas em poemas — além de António Bento, já referido, mencionem-se também Maria Guiomar Ávila (1919-1992), Joaquim Vermelho (1927-2002) e Acilda Fragoso (n. 1934). À primeira foram dedicados dois poemas, “Poesia depois da chuva”, de 12 de Fevereiro de 1951, e “Crepuscular”, escrito pelo S. João de 1951, este em torno da figura da Rainha Santa; o nome de Joaquim Vermelho figura na dedicatória de um dos mais icónicos poemas de Sebastião da Gama, “Viesses tu, Poesia”, de 10 de Fevereiro de 1951; finalmente, Acilda Fragoso, que teve o poeta como professor, viu os seus 17 anos coroados com o poema “A uma rapariga”, em 7 de Março de 1951.

Conhecer Maria Guiomar Ávila (que, em 1953, foi uma das responsáveis pela homenagem estremocense ao poeta) significou para Sebastião da Gama uma oportunidade para conviver com quem apreciava poesia. Em várias ocasiões falou dela à ainda noiva Joana Luísa, na correspondência trocada, um registo que funcionou muitas vezes como substituto de um diário para contar à amada as suas vivências no Alentejo — em Fevereiro de 1951: “Hoje, pelo telefone, já conheci a Guiomar Ávila. Encantadora. Encontrar-nos-emos na missa das 9 e trinta, no domingo (ela é muito religiosa, portanto não cobiça o homem do próximo; e não vai à das onze porque, diz ela, é uma parada de elegâncias)”. Guiomar Ávila e Joaquim Vermelho fizeram parte do grupo a quem Sebastião da Gama leu em primeiro lugar o seu Campo Aberto, acabado de sair, uma espécie de tertúlia que se reuniu na tarde de 11 de Fevereiro de 1951. Pertence a Joaquim Vermelho um sentido testemunho sobre o amigo poeta, intitulado “O rapaz da boina”, saído no Jornal de Almada quando passava o nono aniversário da falecimento de Sebastião da Gama, afinal um retrato da sua vivacidade e sentido de humor, da referência que constituiu para quem o conheceu — “O rapaz da boina veio da Serra-Mãe, descendo ao povoado sonolento e fechado como uma fortaleza antiga receosa de inimigo invisível. Olhos brilhando do sol das alturas. A boina tombada garridamente sobre a testa, sombreando os olhos como nuvem brincalhona a querer esconder-nos o brilho intenso e estranho da alegria que deles irradia, não vá ela ferir-nos profundamente no nosso doentio viver de janelas fechadas, de costas viradas para a luz. Como é que a alegria pode vir ter connosco se lhe fecharmos todas as janelas e portas, batendo-as intempestivamente na cara do convívio? O rapaz da boina desceu ao povoado e cantou as janelas fechadas em gargalhadas de rosa encarnada, num riso de criança feliz e despreocupada.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1458, 2025-01-29, pg. 10.

 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (2)

 

"A Companheira", primeira colaboração de Sebastião da Gama em Brados de Estremoz,
e fac-símile do manuscrito de "Janelas de Estremoz", primeiro poema que Sebastião da Gama escreveu naquela cidade


Dos 27 poemas que Sebastião da Gama escreveu entre a sua chegada ao Alentejo e o falecimento, apenas oito têm como registo de local de escrita o espaço de Estremoz, o que não admira, pela quantidade de trabalho que tinha, a saúde precária (que o levou a algumas temporadas na Arrábida), a preparação em curso de Campo Aberto (saído em Janeiro de 1951) e os preparativos do casamento (que ocorreu em Maio de 1951). O mais antigo poema aqui escrito, “Janelas de Estremoz”, datado de 21 de Janeiro de 1951, dedicado ao amigo António Bento — figura que Sebastião apresenta em carta dirigida à ainda noiva, Joana Luísa (1923-2014), dizendo ser “um rapaz de Nisa de quem já sou amigo e com quem falo, o meu maior companheiro” —, resulta do seu olhar e vaguear pela cidade, espantado por não ver rostos, por assistir a um desfile de janelas cerradas, situação que o levará a um desabafo em carta para a namorada nesse Janeiro de 1951: “Ouve: fiz os primeiros versos. Sofri-os. Sofro-os desde o princípio — e já tinham estado quase a acontecer. Sabes lá o que é, para um homem da nossa terra, ver dezenas de janelas, centenas de janelas, fechadas! Pois aqui é assim. Até as madeiras. Até, por vezes, as gelosias.”

Desejoso de se ligar ao local e às suas gentes, Sebastião da Gama rapidamente enceta colaboração no jornal local Brados do Alentejo, aí tendo a sua primeira publicação em 28 de Janeiro de 1951 com o poema “A Companheira”, seguindo-se-lhe “Janelas de Estremoz” na edição de 4 de Fevereiro, duas semanas depois de ter sido escrito. O jornal estremocense teria ainda mais três textos do jovem professor, crónicas intituladas “Entre quem é!” (na edição de 11 de Março de 1951), “Sábado em Estremoz” (saída em 22 de Julho de 1951) e “Encarcerar a asa” (publicada em 3 de Fevereiro de 1952). Esta última prosa, um gesto de louvor à vida através de um episódio em que é protagonista uma idosa que protesta por ver um pintassilgo ao frio dentro de uma gaiola, foi o último texto que Sebastião da Gama escreveu, datado de 25 de Janeiro de 1952 e publicado quatro dias antes do seu falecimento.

A cidade que o recebeu foi ainda o espaço para uma série de crónicas vindas a lume no Jornal do Barreiro (seis, no total), colaboração que Sebastião da Gama assim apresentou a Hipácio Dias Alves, director do jornal, em carta de 7 de Fevereiro de 1951: “pequena crónica em que diga da vida da cidade, no que ela possa interessar-me”. Resultam, pois, estas crónicas de um olhar de recém-chegado, ávido de entender e conhecer o meio no que ele tem de mais genuíno e participado, aspecto que não passou ao lado do Brados do Alentejo, que não hesitou em republicar a crónica “Sábado em Estremoz” (na edição de 22 de Julho de 1951), inicialmente saída no Jornal do Barreiro (de 15 de Março), com a seguinte explicação: “O poeta Sebastião da Gama, chegado a Estremoz para professor do Ensino Técnico, em pouco tempo se enamorou dos encantos da nossa terra, mesmo sem ter provado a água do Gadanha. Em pouco tempo se familiarizou até à intimidade com a nossa gente, que sem receio lhe abriu os braços, dado o seu carácter franco e lhano e o seu modo comunicativo de tratar. Hoje, Estremoz distingue sempre com um sorriso, um curvar de cabeça, um aceno de braço, o poeta do Campo Aberto, à janela, na rua, em qualquer parte onde ele apareça. Ele está com a cidade e a cidade está com ele. Estremoz passou a fazer parte das suas conversas, a ser motivo de alguns dos seus poemas e assunto de pequenas crónicas (...) em prosa simples, despretensiosa, límpida como o seu espírito de poeta, reflectindo a alta e rara sensibilidade de artista. É uma dessas ‘Cartas de Estremoz’ que (...) transcrevemos, em homenagem à sua admiração pela nossa terra e pela sua gente.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1453, 2025-01-22, pg. 10.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (1)


Homenagem a Sebastião da Gama em Estremoz, em 15 de Junho de 1953


Em Abril de 2006, o visitante estava no Museu de Arte Sacra de Estremoz e, no final do percurso, perguntou a uma senhora qual o trajecto para chegar ao Largo do Espírito Santo. Com ela, estava uma outra senhora que logo opinou: “Mas o senhor quer ver o Largo? Aquilo não tem nada de jeito, só montes de carros estacionados...” O visitante justificou que gostava de lá ir para ver a casa onde vivera Sebastião da Gama. “Mas conheceu-o?”, quis logo saber a senhora. Que não, que não o tinha conhecido, pois, quando nasceu, já Sebastião da Gama falecera havia meia dúzia de anos. “Mas eu conheci-o... Ainda o estou a ver. Com a boina, livros debaixo do braço, a sorrir, flores na mão, com a sua Joaninha...” E os olhos da senhora sentiam o prazer da memória, riam, viviam, poetavam o momento de recuo no tempo... e lá acabou por indicar o itinerário para o Largo do Espírito Santo. Impressionado com este efeito avassalador da memória, em que parecia que a senhora tinha visto Sebastião da Gama no dia anterior — quando, na verdade, já tinham passado 54 anos sobre a sua partida —, lá se encaminhou o viajante para o Largo, com uma história para contar.

Por isso, quando, dias depois, recordei este momento com Joana Luísa, mulher de Sebastião da Gama, ela sorriu enternecida e comoveu-se, lembrando vários alunos e diversas pessoas que conheceu em Estremoz no curto tempo de oito meses em que lá viveu. Cheguei, pois, ao Largo do Espírito Santo. E lá estava a casa, lápide na parede, em cenário que, mesmo com os automóveis estacionados a esmo, evocou a fotografia de 1953, protagonizada por vasto grupo de estremocenses que assinalou a colocação da lápide, gesto intenso de culto da memória. “Batei à minha porta, Irmãos, / entrai, / que eu tenho Amor para vos dar”, reza a inscrição, conjunto de três versos saídos do poema “A meus irmãos”, escrito na Arrábida em 30 de Agosto de 1944 e publicado no primeiro livro, Serra-Mãe, no ano seguinte. E, depois, o registo para a memória: “Sebastião da Gama viveu nesta casa de 11-5-1951 a 5-2-1952”.

Sebastião da Gama tinha 26 anos em 9 de Outubro de 1950, quando foi colocado na Escola Industrial e Comercial de Estremoz (actual Escola Secundária Rainha Santa Isabel), sendo seu director Irondino Teixeira de Aguilar (1914-1969), professor e autor de manuais escolares. Acabado o estágio e realizados os exames da parte pedagógica, Estremoz passou a ser o espaço de Sebastião da Gama, repartido com a Arrábida e com as lembranças de Lisboa, terra onde fez amigos, compôs poemas, leccionou, terra que deu a conhecer nas suas descobertas que partilhou em crónicas jornalísticas, semeando, talvez, alguns dos mais interessantes textos que sobre a vida da cidade se escreveram.

Chegado à Escola, Sebastião da Gama teve intenção de dar continuidade ao Diário que compusera nos dois anos lectivos anteriores. No entanto, poucas páginas nos legou, talvez por falta de tempo, como nos confessa no registo do dia 11 — “Está claro que não pode este diário ter a exacta feição dos dois primeiros volumes. Pôr aqui todas as aulas? Era preciso que eu fosse um professor extraordinário; o professor que eles quase pensam que sou. Pois se eu estou atrapalhado!... Não sei por onde, não sei como começar. Ou me está a faltar a genica ou me está a faltar a imaginação. O diário vai então servir, como há dois anos em Setúbal, para guardar o melhor do que me for acontecendo. E já não há-de ser pouco, que não tenho apenas, como em Lisboa, uma turmazinha.” Os registos diarísticos acabarão por respeitar apenas os primeiros dez dias, com observações que mais nos vão dizendo sobre o conhecimento que vai tendo dos novos alunos: o Francisco Graça, que “vem de bicicleta, todos os dias, de a dez quilómetros de Estremoz”; a Luciana, “uma carinha de riso”, em quem “até as tranças riem”; o Mário, que “trouxe flores de Vila Viçosa” e vários outros... enfim, alunos de diversas idades e ciclos, que  o levarão a escrever, ainda no dia 10, sobre uma turma: “Gente boa. Gente minha. Não há rapazes maus. Vou gostar destes e destas seis raparigas.” E sobre outra, numa apreciação global: “São uma porção de rapazes e cinco raparigas que vêm para aqui, parece-me, com a ansiedade de rapazinhos. Mas eu, sinto-o com tristeza, vou ficar muito aquém das suas esperanças. Delicados. Estremoz é boa terra. Ou então é defeito meu.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1448, 2025-01-15, pg. 10.


quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Quando Romeu Correia escreveu sobre Sebastião da Gama

 


Em 28 de Março de 1949, Romeu Correia (1917-1996) lavrava dedicatória no seu romance Trapo Azul (publicado no ano anterior), uma história em torno da confecção de fatos de ganga feitos em Almada e depois distribuídos nos fanqueiros de Lisboa: “Ao Poeta Sebastião da Gama, com a simpatia e a camaradagem do Romeu Correia”. Nessa mesma Primavera, o escritor almadense recebia de Sebastião da Gama (1924-1952) os dois livros que este publicara — Serra-Mãe, de 1945, com a dedicatória “Ao Romeu, romancista de à beira-Tejo e de à beira-(dizem...)-vida. Sebastião”; e Cabo da Boa Esperança, de 1947, com a inscrição “Ao Romeu Correia amigo, do Sebastião da Gama”.

Entre os dois escritores, houve vários encontros, frequentemente ocorridos a bordo do barco que atravessava o Tejo, de Cacilhas para Lisboa — na capital, localizava-se a entidade bancária em que Romeu Correia trabalhava, assim como a Faculdade de Letras ou a Escola Veiga Beirão, espaços frequentados por Sebastião da Gama, primeiro como aluno, depois como professor.

De tais cruzamentos deu notícia Romeu Correia no artigo “Sebastião”, vindo a público no Jornal de Almada, em 10 de Fevereiro de 1968 (republicado, com algumas alterações e diferente título, cinco anos depois, no Boletim Trimestral do Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do BNU, em Abril de 1973). Nesse texto profundamente memorialístico e testemunhal, Romeu Correia lembra o primeiro encontro, que terá ocorrido por 1948, descrevendo o jovem azeitonense: “um rapaz de cara redonda, franco e rude, que falava pelos cotovelos”, que, “quando sorria, os olhos alongavam-se-lhe num traço — e era da maneira mais contagiante que ele sorria”; tinha “estatura meã — cheio, sem ser gordo —, a voz um pouco velada e as mãos muito expressivas”; “usava boina espanhola e trajava modestamente.”

No entanto, o que surpreendeu Romeu Correia foi a apreciação crítica do jovem ao romance Trapo Azul, acabado de publicar: “Não teve papas na língua para alguns defeitos encontrados no livro, embora fosse, na sua opinião, das coisas mais vivas e autênticas que conhecia da gente nova. (...) ‘É espantoso! Você escreve como fala! Não usa nos seus livros a linguagem escrita, mas uma linguagem oral!...’ Naquela altura fiquei confuso. (...) Mas o meu interlocutor, apercebendo-se da minha confusão de autodidacta desprevenido, sossegou-me: ‘Não fique molestado por isto! Pelo contrário, você é autêntico, tudo brota de si como a água pura e fresca da rocha! Não tem parentesco com essa malta que anda por aí a fazer uma literatura da literatura! Você é você! Nada de confusões: é autor dos seus defeitos e das suas qualidades.’ E, apressado, como sempre o encontrei nos poucos anos que lhe restavam para viver, apertou-me a mão, muito risonho, os olhos a fecharem-se-lhe num leve traço, como se a vida fosse uma coisa simples, sem nada que a complicasse.”

A citação é longa, mas vale a pena pelo que transmite da essência do poeta de Azeitão — o louvor da autenticidade, a rejeição do artificial, o sentido humanista, a alegria com a vida. E Romeu Correia acrescenta ainda outros valores, como os da convicção católica e do amor e da amizade nas relações humanas.

Estes atributos permaneceram nos encontros que tiveram e na memória do autor de Trapo Azul, assim como a espontaneidade do jovem da Arrábida, que, onde quer que visse o seu amigo, o chamava: “Nos três anos em que o conheci, os meus ouvidos foram sacudidos por gritos seus. Gritos atrevidos, chocantes, escandalosos. Eu ia numa rua, ou num barco de Cacilhas, ou estava num café — e lá vinha o seu tremendo grito! Quando tal sucedia, era certo que o Sebastião me avistara.”

A última memória de Romeu Correia destas saudações assenta nos finais de 1951, a bordo de um “ferryboat” para Lisboa, entre carros e carroças, um grito relacionado com a literatura e com a mais recente obra do autor almadense, Calamento, sobre a vida dos pescadores da Costa da Caparica, publicado em 1950: “Oiço um tremendo grito, que me sacudiu: ‘Ó Calamentoso! Calamentoso!...’ A voz e o atrevimento eram-me familiares (...). Volto-me e aparece-me, por detrás de uma carroça, o Sebastião”, que fez “uma grande festa” e “riu-se (ele ria-se sempre, muito feliz, quando gritava por um amigo)”.

O valor desta crónica de Romeu Correia advém de dois factores: por um lado, pelo tom testemunhal dado sobre Sebastião da Gama, evidenciando características que muitos dos que o conheceram também presenciaram; por outro, pela capacidade que o escritor de Almada (que, em 1952, quando faleceu Sebastião da Gama, tinha três obras publicadas e, em 1968, data da crónica de que aqui se fala, assinara já mais uma dezena de títulos, entre os quais a peça de teatro Bocage) evidencia numa cuidada construção de personagens.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1443, 2025-01-08, pg. 10.


quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Quando o peregrino Laffi passou por Setúbal (2)

 


A primeira descrição que Domenico Laffi faz em terras portuguesas nesta Viagem de Pádua a Lisboa acontece em Serpa, onde “as casas são pequenas, isto é, baixas devido ao vento do oeste, e todas com chaminé, ou seja, lareira onde se acende o fogo, decerto a coisa mais bonita delas”, construções que se apresentam “rodeadas de grandes muros, muito altos” e “feitas de várias maneiras e de vária arquitectura, de modo que, de longe, são agradáveis à vista.” Em Alcácer do Sal, “bela vila banhada por um braço do oceano”, surpreendem-no as salinas e o embarque de géneros.

É também neste cais que toma lugar num barco para chegar, pelo meio-dia de 14 de Setembro de 1687, a Setúbal, que classifica como “cidade bonita, com o seu porto de mar muito mercantil e capaz de conter qualquer armada e navios de qualquer lotação”. Na apresentação que faz da urbe, refere a história de Tubal, “neto de Noé, que lhe deixou o seu nome”, mas o que mais o impressiona é o momento em que, no dia seguinte, assiste à ida do Santíssimo “a um enfermo com muita solenidade e cortejo de gente e uma grande quantidade de tochas” por ruas “bem limpas e enfeitadas”, cheias de “tapeçarias nas janelas e nas montras das lojas, coisa muito bonita de ver e que transmitia grande devoção.”

Ao longo do relato, há mais três referências a Setúbal: ao apresentar a história do início de Portugal, repete a explicação do primeiro habitante, Tubal (“o primeiro que habitou este reino foi Tubal, neto de Noé, que deixou o seu nome à cidade de Setúbal”); quanto aos portos, refere que Portugal “possui diversos portos excelentes: o primeiro é o de Setúbal, o outro é o da cidade do Porto, na foz do Douro, mas o mais famoso é o de Lisboa”; ao fazer o balanço sobre a importância das localidades do reino, regista que, “além das cidades episcopais, há terras notáveis, como Vila Viçosa, Almeirim e Salvaterra, Setúbal, cidade de Espanha célebre pelas suas salinas, Avis, Palmela, em que há os conventos magistrais da Ordem de Avis e da Ordem de Santiago.”

Mas Setúbal era apenas um ponto no itinerário de Domenico Laffi e do seu companheiro peregrino, pois o objectivo era chegar a Lisboa, sítio onde nasceu Santo António. Por isso, a viagem é retomada, com saída de Setúbal pela “porta oeste, ladeando um grande e comprido aqueduto de duas arcadas sobrepostas”, de onde subiu até Palmela, aí contemplando a vista sobre Setúbal e Lisboa e conhecendo “os conventos magistrais da Ordem de Santiago e da Ordem de Avis”, logo seguindo pela Moita, onde embarcou para chegar, “com a ajuda de Deus, à tão suspirada cidade de Lisboa a 16 de Setembro do ano 1687.”

Na capital do reino, onde ainda assistiu aos festejos do casamento de D. Pedro II com a princesa da Casa de Neuburgh, passará Laffi três dias, com intenso programa de visitas à cidade que considera “a oitava maravilha do mundo” e “rainha dos mares”: torre de Belém, igreja e convento dos padres Jerónimos, santuário Madre de Deus, Santa Engrácia, Rossio, igrejas de S. Roque e do Carmo, entre outros pontos. O que mais o comove é a visita à zona da Sé, à “devota igreja de Santo António dito de Pádua, que era cidadão de Lisboa”, construção realizada “a partir da casa paterna onde nasceu o santo”: “com a ajuda de Deus disse missa nesta igreja a 18 de Setembro, com grande felicidade minha (...). Quem entra nesta igreja entra numa espécie de paraíso, não só pela santidade e devoção que transmite, como também pela riqueza e beleza com que brilha.”

A descrição que Laffi faz de Lisboa, onde só esteve por três dias, revela-se interessante porquanto acaba por ser um retrato do espaço urbano que o terramoto de 1755 acabou por alterar profundamente. Em 19 de Setembro, a viagem recomeça, com a opção de seguir pela costa até ao Norte do país para daí chegar a Compostela. Pelo caminho, vão ficando os registos do convento alcobacense, do “sumptuosíssimo templo” da Batalha, de Leiria (situada em “fértil planície, rodeada de montanhas igualmente frutíferas”), de Coimbra (onde “todas as construções se apresentam, olhando para elas da parte oposta da ponte, como se estivessem umas em cima das outras”), Porto (onde teve de permanecer seis dias “por causa de umas fortes dores nas costas”, situação que o impediu de descrever a cidade com pormenor), Viana do Castelo (onde há “lindos chafarizes espalhados, cá e lá, pela cidade” e um “porto de mar lindíssimo”, apesar da chuva) e Caminha (onde se impressiona com a vista sobre o outro lado do rio Minho).

Nesta Viagem de Pádua a Lisboa, Laffi é um viajante culto, observador, crítico, com sensibilidade artística, atento ao mundo, merecendo bem as palavras de Feliciano Novoa Portela, que disse ser a sua obra a “de um verdadeiro ‘homo viator’, para quem a vida é uma contínua viagem para encontrar o enigma da existência, na busca de uma constante que explique o passado, o presente e também o futuro.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1438, pg. 2.


sábado, 14 de dezembro de 2024

Quando o peregrino Laffi passou por Setúbal (1)

 


Por meados de Setembro de 1687, no dia 14, dois religiosos italianos, peregrinos e viajantes, passavam em Setúbal — eram eles o padre Domenico Laffi e o frade Giuseppe Liparini, vindos desde Bolonha, de onde tinham partido em 24 de Maio desse ano. Dessa passagem ficou registo no livro de Laffi intitulado Dalla tomba alla culla è um lungo passo: Viaggio di Padova ove morse il glorioso S. Antonio a Lisbona ove nacque, que teve primeira publicação em 1691, em Bolonha, e cujo itinerário português foi editado em 1988 pela Università degli Studi di Perugia, em trabalho a cargo de Brunello De Cusatis. Uma década depois, em Portugal, surgia a obra O Portugal de Seiscentos na ‘Viagem de Pádua a Lisboa’ de Domenico Laffi, estudo crítico também assinado por De Cusatis (Editorial Presença, 1998), incluindo o capítulo de Laffi dedicado a Portugal.

Sobre a biografia de Laffi, o autor do relato, pouco se sabe, não se ignorando, contudo, o rol bibliográfico que assinou e teve ampla repercussão (textos teatrais e narrativas de viagem — a Compostela, a Lisboa e à Terra Santa). Nascido em 3 de Agosto de 1636 em Vedegheto di Savigno, foi para Bolonha ainda na infância. Em 1666, quando já era sacerdote, fez a sua primeira peregrinação a Compostela, local que visitou várias vezes — em 1670, aquando da segunda viagem, redigiu a obra Viaggio in Ponente a San Giacomo di Galitia e Finisterre per Francia e Spagna, publicada em Itália em 1673, título que teve reedições em 1676 e em 1681 e graças ao qual Laffi é considerado pela Xacopedia “um dos peregrinos mais importantes da história de Santiago por ser autor do relato de peregrinação de maior significado e relevância conhecido até agora”.

A vinda a Portugal acontece pela razão que o título da obra sobre essa viagem indica — peregrinação a partir de Pádua, onde está sepultado Santo António, para chegar ao local do seu nascimento, Lisboa, percurso justificado com a transcrição da frase “dalla tumba alla culla è um lungo passo” (“do túmulo ao berço é um longo passo”), aforismo que resulta de adaptação do último verso de um soneto do pós-renascentista Giambattista Marino, nas suas Rime (1602), ao afirmar que “da la cuna a la tomba è um breve passo” (“do berço ao túmulo é um pequeno passo”).

A entrada de Laffi em Portugal aconteceu nesse Setembro de 1687, em dia não indicado, na zona de Aldeia Nova de São Bento, num trajecto que passou por Serpa, Cuba, Torrão e Alcácer do Sal, até chegar a Setúbal (no dia 14); a viagem prosseguiu por Palmela e Moita, com paragem em Lisboa dois dias depois; a 19, a partida leva os viajantes por Loures, Torres Vedras, Caldas da Rainha, Alcobaça, Leiria, Coimbra, Porto, Viana do Castelo e Caminha, para posterior entrada na Galiza, rumando a Compostela, onde chegaram a 15 de Outubro. Logo no início da obra, é justificada a narrativa: “Eu, para satisfazer as curiosidades discretas e indiscretas de todos, direi, com mera verdade, ter feito esta viagem, não sei se impelido mais por natural propensão, por talento sujeitado à curiosidade de ver coisas novas, ou por espírito de piedade para o glorioso Santo António de Pádua. Fui àquela cidade para adorar, naquelas sacras cinzas, vivas sementes de eternidade, e recolher copiosa messe de graças.” Quanto à decisão de passar a escrito o visto e vivido, explica: “senti-me na obrigação de fazer um sucinto relato para dar prazer a quem goza deste tipo de leitura, como também para agradar a quem se sinta movido, por devoção, a fazer peregrinação semelhante. Isso fiz com o estilo que me pareceu mais adequado para uma simples narração.” O relato que o leitor tem ao seu alcance está eivado de informações que Laffi recolheu nas leituras sobre o país e fortemente alicerçado naquilo que testemunhou, aspectos que, na edição portuguesa referida, merecem adequadas notas de contextualização por De Cusatis.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: 2024-12-11, pg. 10.

 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Contributo de Daniel Pires para a bibliografia setubalense (3)

 


Para a bibliografia setubalense, o contributo de Daniel Pires tem sido eloquente também quando se fala do ambiente social e cultural do século XVIII, tempo que fez Bocage. É assim que se valoriza uma obra como Setúbal, Palmela e Azeitão Vistas por Estrangeiros, de 2012, recolhendo testemunhos de oito autores que olharam Setúbal entre 1766 e 1800, destacando nesta antologia o olhar da diversidade e o cosmopolitismo e não escondendo o preconceito ou a isenção presentes nas várias abordagens. Outros dois títulos relacionados com a época são Padre Gabriel Malagrida: O Último Condenado ao Fogo da Inquisição, de 2012, e O Marquês de Pombal, o Terramoto de 1755 em Setúbal e o Padre Malagrida, de 2013, duas peças importantes pela quantidade de documentos que são postos a descoberto ou relembrados, numa transcrição encaixada na narrativa resultante da pesquisa, fundamentais para se perceber o ambiente cultural da época, a acção dos jesuítas em Setúbal, as rivalidades entre a política e a religião, o papel desempenhado pela liberdade de opinião ou pela sua falta, o retrato que de Setúbal ficou após o terramoto.

Outras duas figuras sadinas mereceram a atenção de Daniel Pires num trabalho que não pode ser esquecido: Paulino de Oliveira e António Maria Eusébio, o poeta popular “Calafate”. Do primeiro, fez Daniel Pires ressurgir o livro autobiográfico Em Ferros d’El-Rei (2012), com um prefácio que valoriza a prática da cidadania e destaca a acção do autor como jornalista, poeta, pedagogo, republicano e divulgador da cultura portuguesa, considerando ser esta “uma das obras mais emblemáticas de Paulino de Oliveira, não obstante ser uma das menos conhecidas”. Quanto ao segundo, o poeta popular setubalense, Daniel Pires foi responsável, com Ana Margarida Chora, em 2020, pela edição da obra António Maria Eusébio, o Calafate - Uma Evocação, título que reúne textos da homenagem que Setúbal lhe fez em 1902 (em cuja organização estiveram Ana de Castro Osório, Paulino de Oliveira e Henrique das Neves), parte significativa dos testemunhos que Henrique das Neves coligiu numa obra antológica publicada em 1908 e alguns contributos mais recentes para o conhecimento da importância da obra deste poeta.

A história do jornalismo setubalense passa também pelo trabalho de Daniel Pires, facto interessante porquanto o jornalismo tem constituído para si fonte de informação e objecto de estudo. Se, em 1986, na sua obra Dicionário das Revistas Literárias Portuguesas do Século XX, na longa lista de entradas aparecem três títulos setubalenses, já no Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX, editado entre 1996 e 2000, o número de entradas sobe para 26, num trabalho repleto de dificuldades por não existirem colecções completas dos títulos, mas que prova a importância da imprensa periódica nos domínios da polémica, da afirmação de movimentos culturais, da liberdade de opinião e da ligação à sociedade e dá a conhecer as figuras agentes da intervenção nestas áreas ao nível local e nacional.

As obras com que Daniel Pires nos tem presenteado ou que nos tem revelado, “remos para guiar a jangada” (lembrando Tolentino Mendonça) ou testemunhos que provam “a aventura do homem” (recorrendo a Serafim Ferreira), possuem também marcas de uma forma de estar e de olhar o mundo, conseguindo-se perceber a indignação perante as atitudes despóticas, o desrespeito relativamente à memória, a crueldade na recusa dos direitos inalienáveis, os jogos de poder que juntam intenções ardilosas, como se entende a simpatia por uma forma de estar próxima da intervenção em benefício da sociedade e das manifestações culturais, pelo ideal republicano, pelos princípios éticos e pelos direitos humanos. Naturalmente, são contributos importantes para uma bibliografia setubalense, ainda mais relevantes quando o leitor se confronta, no final de cada uma delas, com referências bibliográficas exaustivas e rigorosas e, muitas vezes, com indicação dos locais onde as obras podem ser encontradas, num trabalho que é importante para o presente, mas que também garante que a jangada do conhecimento e da identidade possa vogar no futuro...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1427, 2024-12-04, pg. 8.


segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Contributo de Daniel Pires para a bibliografia setubalense (2)

 


As imagens da região de Setúbal vindas através da poesia tinham já ocupado Daniel Pires em 2001, quando uma equipa que integrou também Fernando Marcos e António Quaresma Rosa organizou a exposição Setúbal - Terra de Poetas e Cantadores, reunindo uma centena de autores e 349 títulos, recenseados em catálogo, em cuja introdução se insistia na “dinamização cultural da cidade de Setúbal e reconstituição da sua memória”, surgida de “investigação aturada” que pretendia uma “perspectiva diacrónica da poesia de matriz setubalense”, coligindo os nomes conhecidos e “os populares e os menos consagrados”. Assim se originava uma obra que, mais do que uma lista, se transformou num elemento de estudo, fornecendo pequena antologia e notas biográficas sobre os autores, atitude que visava a luta contra a efemeridade das exposições, “fazendo a ponte com os investigadores vindouros que pretendam conhecer a identidade cultural da cidade”, afinal uma obra para poder ser uma referência de estudo e de conhecimento.

A criação do Centro de Estudos Bocageanos (CEB) em 1999 surgiu de uma intervenção de Daniel Pires no Forum “Pensar Setúbal”, realizado no mês de Maio desse ano, em que defendeu a criação de um centro de estudos e de informação sobre o vate sadino, com a preocupação de o âmbito de estudos ser alargado a outras temáticas locais. A ideia conseguiu agregar cerca de 80 pessoas, que foram os sócios fundadores do CEB, e, nos estatutos, publicados em 1 de Outubro seguinte, eram claras as intenções: divulgar a obra e a personalidade de Bocage, “fazer o enquadramento dos escritores locais e nacionais e dinamizar culturalmente a cidade de Setúbal”. Cerca de um mês e meio depois, em 22 de Dezembro (no dia a seguir ao que marca o falecimento de Bocage), o jornal O Setubalense incluía o primeiro número do que foi a “Página Cultural” do CEB, assinando Daniel Pires um texto que revelava uma antiga e rara tradução italiana de um poema bocagiano. A “Página Cultural”, de publicação mensal, prolongou-se até ao número 155, saído em 29 de Abril de 2013, sempre com uma abordagem de assuntos de interesse local e regional, por onde passaram investigadores, escolas e criadores artísticos, numa pluralidade de saberes. Daniel Pires, além de ter sido seu co-coordenador durante uma temporada, aí fez ampla divulgação de textos esquecidos e publicou ensaios relacionados com figuras locais (como Bocage, o poeta popular Calafate e o historiador João Carlos de Almeida Carvalho), com a implantação do regime republicano e suas marcas em Setúbal ou com histórias da educação, entre outros temas, chegando a defender que o CEB deveria ser o motor da constituição de uma Biblioteca de Fundo Local com vista ao “estudo do património cultural da cidade”.

Nesta missão divulgadora, Bocage tem sido, sem dúvida, a figura mais tratada por Daniel Pires, estudo em que nunca esquece a contextualização de Setúbal à época da juventude do poeta, seja colhendo elementos descritivos, seja pela demanda de iconografia sua contemporânea, reveladora do que eram o espaço e a vida sadinos, como se pode ver, por exemplo, nesse repositório de imagens que é a obra Bocage - A Imagem e o Verbo, editado em 2015. Outros contributos como a colecção de postais Bocage na Prisão, de 1999, o baralho de cartas designado Bocage e a sua Época, de 2005 (em colaboração com Manuel de Vilhena), ou a reedição das Fábulas de Bocage, em 2000 (a partir da edição de 1905), mantendo o mesmo espírito de ligação do poeta à região, apresentam também objectivos de divulgação junto do grande público, particularmente em idade escolar, visando o desfazer de imagens fáceis construídas em torno do poeta, como a do herói das anedotas, e dando-lhe a visibilidade merecida como actor de uma época ideologicamente conturbada.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1422, 2024-11-27, p. 10