sábado, 23 de fevereiro de 2019

Joaquim Rasteiro e as histórias da Península da Arrábida (Azeitão, Palmela, Sesimbra)



A revista O Arqueólogo Português começou a sua publicação em 1895 sob a direcção de José Leite de Vasconcelos (1858-1941), tendo-se dividido até hoje em cinco séries, a primeira das quais, em 30 volumes, a mais longa, publicada até 1938. A revista, uma referência indiscutível na área da arqueologia, surgiu no âmbito do Museu Nacional de Arqueologia, criado dois anos antes por Leite de Vasconcelos.
A temática sadina passou pelas páginas da revista desde o seu primeiro número, que teve também um colaborador setubalense, Manuel Maria Portela (1833-1906). No segundo número, de 1896, os temas das terras do Sado continuaram a ser abordados e outro setubalense ali assinou um texto, o arqueólogo António Inácio Marques da Costa (1857-1933). Foi ainda neste segundo número que Leite de Vasconcelos publicou a notícia “Questionários Arqueológicos”, dando publicidade a trabalho encetado a nível nacional dois anos antes: “A Comissão dos Monumentos Nacionais fez imprimir, em 1894, e distribuir por diversas pessoas, os seguintes questionários, com o fim de recolher elementos para o estudo da arqueologia portuguesa.” Seguia-se o referido questionário, dividido em assuntos gerais e em informações de carácter militar.
No número seguinte de O Arqueólogo Português, o terceiro, de 1897, surgia a primeira resposta a este questionário, devida a Joaquim Rasteiro (1834-1898), ocupando as primeiras 48 páginas da publicação sob o título “Notícias Arqueológicas da Península da Arrábida”, com a nota de rodapé que esclarecia ter sido o artigo escrito no período de 1893-1894. Ao longo do texto, outras notas vão aparecendo, devidas a José Leite de Vasconcelos, umas vezes contextualizando algumas informações, outras vezes estabelecendo relações com outros estudos.
Joaquim Rasteiro, azeitonense, autodidacta, investigador, político e proprietário, foi autor de diversas publicações sobre história local da sua região, de entre as quais se destaca Palácio e Quinta da Bacalhoa - Inícios da Renascença, editada em 1895 (que mereceu edição fac-similada em 2003). As “Notícias Arqueológicas da Península da Arrábida”, que redigiu, seguem o plano do inquérito da Comissão dos Monumentos Nacionais e abrangem os termos de Azeitão, Palmela e Sesimbra.
Recentemente, Bernardo Costa Ramos, azeitonense e divulgador da história da sua terra, promoveu a edição deste texto de Joaquim Rasteiro (Azeitão: A Páginas Tantas, 2018), mantendo a ortografia da época e assim justificando o trabalho apresentado: “por um lado, proporcionar a todos aqueles que se interessam pela nossa história de disporem em formato livro do texto original, tornando-o mais legível e de uma partilha mais célere; por outro lado, prestar homenagem aos grandes homens azeitonenses que contribuíram para fixar essa mesma história”. O livro contém ainda uma nota biográfica de Joaquim Rasteiro elaborada pelo filho, que mantinha o nome do pai, publicada no semanário dominical O Azeitonense, em 7 de Setembro de 1919. A iniciativa da edição de 2018 foi indiscutivelmente louvável, embora devesse ter tido maior divulgação e mais substancial tiragem.
A intenção de Joaquim Rasteiro não se limitou a constituir uma resposta ao inquérito da Comissão; a esse apelo, acrescentou o seu propósito de “segurar o que tende a cair no olvido, juntar o que há disperso, fazer que se saiba o muito que se cala”, vontade tanto mais acentuada quanto as duas instituições que mais perpetuavam a história e as artes - as “famílias religiosas” e a “instituição dos morgados” - estavam extintas e, assim, urgia “segurar por novos meios quanto tende[sse] a esvair-se”.
As descrições que Rasteiro apresenta no seu texto decorrem da sua observação, do seu contacto com os sítios ou com as peças que descreve, não especulando, mas chamando a atenção para as condições de sobrevivência dos testemunhos artísticos - por exemplo, quando se refere ao Palácio da Bacalhoa, considera ser “um monumento a que bem caberia a guarda do Estado” em virtude da “forma e disposição das suas construções, pelos seus azulejos e medalhões esmaltados, pela significação artística do conjunto”. O conjunto da sua descrição é valorizado pelas informações de cunho histórico (que na época eram conhecidas) associadas a cada um dos itens, estabelecendo a diferença entre o que é comprovável em termos de conhecimento e o que diz respeito a tradições ou crenças construídas - por exemplo, ao mencionar o paço dos Duques de Aveiro, diz que “modernamente inventou-se que dos reclusos [jesuítas ali custodiados]31 por 73 se finaram de tanto penar nas cadeias de Azeitão”, afirmação que imediatamente contesta: “É falso. Nem um só aqui morreu. Os livros do registo paroquial não acusam um óbito sequer de jesuíta.”
Pelo escrito de Rasteiro passam as antas (existência suposta na zona de Sesimbra), as cavernas ou grutas (lapas do Médico, de Santa Margarida e da Greta), as grutas artificiais pré-históricas (Quinta do Anjo), as pedras de raio, os restos de povoação (vestígios romanos na antiga freguesia da Ajuda), as moedas e outros objectos romanos, os objectos e moedas árabes, as tradições locais (ermida de Santa Maria da Vitória), as designações locativas (Azeitão, Coina-a-Velha, Vila Nogueira de Azeitão, Vila Fresca de Aseitão, Portela, Casal do Bispo), as fortificações ou edifícios atribuídos aos mouros na voz do povo (castelo dos Mouros, covas da Moura, castelo de Coina), os monumentos-palácios (Bacalhoa, Duques de Aveiro, Calhariz), as igrejas (de S. Lourenço e de S. Simão), as ermidas (do Bom Jesus, dos Remédios), os túmulos (na igreja de S. Tiago, em Palmela, e no mosteiro da Piedade, em Azeitão), os cruzeiros (das Necessidades), os brasões (Bacalhoa, capela das Necessidades, quinta do César, quinta Nova e quinta Velha, quinta das Torres, entre outras), as imagens de pedra, as imagens de barro, as pinturas em tela, as custódias, outros objectos de culto (alfaias diversas de arte sacra), as tapeçarias (em longo inventário), as inscrições (em enumeração pormenorizada), as antiguidades a que não pode marcar-se origem conhecida (lápides do chafariz de Aldeia Rica e da quinta do Visconde de Montalvo), os montes fortificados, os castelos de Sesimbra e de Palmela, as torres, os factos históricos das fortalezas (de Coina, Sesimbra e Palmela) e as fortalezas prisões de Estado (Palmela, Outão, paço dos Duques de Aveiro).
A leitura deste registo devido a Joaquim Rasteiro torna-se interessante porque o texto abdica de considerações laterais e vale na sua simplicidade, assertividade e objectividade; permite ao leitor uma viagem a um tempo e a um espaço de reconstrução da identidade; afirma uma riqueza patrimonial e histórica da região da península arrábida; é um elemento-base incontornável a ser considerado na bibliografia local.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Evocar Sebastião da Gama 8 - Aquele Fevereiro de 1952


Lápide descerrada em Azeitão, em 8.Fev.1953, homenageando Sebastião da Gama

Ao ar frio daquele Fevereiro de 1952 veio juntar-se uma outra frialdade, a da vida que se extinguia, a da saudade que o desaparecimento precoce de Sebastião da Gama deixava. Estava-se no dia 8 de Fevereiro e o jovem Nicolau, então com 18 anos, meteu pés ao caminho, calcorreando a distância que separava Palmela (onde vivia) de Azeitão, percurso que fez sozinho, correndo atrás da necessidade que tinha de se despedir do seu jovem mestre.
Da cabeça não lhe saíam as lições ouvidas nas aulas de Português na Escola Comercial e Industrial João Vaz, em Setúbal, proferidas por um professor que era também seu amigo, lhe abriu horizontes e o levou a ganhar vontade de saber e de estudar, Sebastião da Gama de seu nome. O mínimo que lhe devia era esta despedida para sempre. Assistiu à cerimónia fúnebre e o professor Medeiros, director da Escola, ao saber que o jovem viera a pé por não ter dinheiro para o transporte, no final, deu-lhe as moedas necessárias para que o regresso a Palmela fosse em autocarro.
Esta memória nunca abandonou Nicolau da Claudina porque também a influência que Sebastião da Gama nele teve foi determinante para a sua vida. O jovem Nicolau fez parte do vasto grupo de admiradores e de saudosos que choraram em Azeitão naquele dia, entre os naturais da vila, os familiares, os amigos, pessoas dali, pessoas vindas de fora, todas num gesto solidário.
Sebastião da Gama, com 27 anos, falecera no dia anterior, pela manhã, no Hospital de S. Luís dos Franceses, em Lisboa, exactamente o mesmo estabelecimento hospitalar em que, dezassete anos antes, se finara um outro poeta que o azeitonense muito admirara, Fernando Pessoa. A meningite minara-o e foi responsável por sucessivas falências até ao encontro com a morte. Nesse fatídico 7 de Fevereiro, David Mourão-Ferreira, amigo grande de Sebastião, estava em Mafra, no quartel onde cumpria o serviço militar e, no final do dia, escrevia no seu diário: “Meia-noite, caserna: Acabam de me entregar um telegrama de meu Pai, com a seguinte notícia: a morte do Sebastião da Gama. Outro! Outro que morre. Depois do Manuel de Almeida Júnior, do Maia de Jesus, do José-Aurélio, e do Manuel Belchior, e da Maria Henriqueta - o Sebastião!” Parece apenas uma enunciação, mas é muito mais do que isso: é a lista dos amigos jovens que já tinham partido, agora aumentada.
David Mourão-Ferreira foi também uma das presenças na despedida em Azeitão no dia 8 de Fevereiro, pelas 17h00. Provavelmente, ter-se-á cruzado com Nicolau, com a Matilde Rosa Araújo, com os que vieram de Estremoz (onde Sebastião leccionara) e com tantos outros. No dia seguinte, 9, em Lisboa, o diário de David receberia este espantoso desabafo: “Lisboa, 3 horas da tarde, Pastelaria Herculano: Ontem, enterro do Sebastião. Estava um dia lindíssimo: atravessei o rio e fui, de camioneta, até Azeitão; apeei-me precisamente no local onde, há cinco anos e meio, ele me esperara, quando da primeira vez que fui à Arrábida. Desta vez, porém, não subimos a serra. Acompanhei-o ao pequeno cemitério da vila, onde agora repousa no ‘campo aberto’ que ele próprio previra. Era o melhor de todos nós, o Sebastião: o menos literato de todos nós.”
A partir dali, o tempo não foi longo para que as homenagens surgissem. Ainda em 1952, a revista literária Sísifo, de Coimbra, no seu quarto número, iniciava uma secção com cartas de poetas e o primeiro era Sebastião da Gama, que respondia a um inquérito sobre a sua obra; contudo, a primeira página dessa mesma revista era ocupada com a notícia da morte do poeta - “Quando este 4º fascículo já estava em andamento, integrando no seu sumário o poema inédito ‘Anunciação’, recebemos, pela notícia singela de um jornal da tarde, o golpe duro da morte de um querido amigo - Sebastião da Gama.” O segundo número da revista Árvore, publicação sazonal do Inverno de 1951-52, era dedicado “à memória de Sebastião da Gama, ao poeta e ao amigo que perdemos”, e publicava o seu poema inédito ‘Ressurreição’ e a homenagem escrita de Luiz Amaro de Oliveira, António Luís Moita, Albano Martins, José Terra e António Ramos Rosa, além de um retrato de Sebastião da autoria de Bonifácio Lázaro em extra-texto. O número 16 da revista brasileira Sul, publicada em Florianópolis, continha o poema “Crepuscular”, uma carta de Sebastião sobre um livro de Salim Miguel (datada de 30 de Novembro anterior) e a notícia da morte do poeta.
O ano seguinte, 1953, teve, em 8 de Fevereiro, o descerramento da primeira lápide em homenagem ao autor de Serra Mãe: foi em Azeitão, na Rua José Augusto Coelho, na casa onde viveu até aos 14 anos, uma cerimónia a que acorreram muitos amigos, tendo depois havido uma conferência evocativa pelo testemunho de David Mourão-Ferreira. Em pedra, ali ficaram gravados versos: “Faltava-lhe a morte para ser completo. / A taça estava cheia / Faltava-lhe a pétala da rosa / Para transbordar”.  Em 15 de Junho, em Estremoz, foi o descerramento da segunda lápide evocativa, na casa onde viveu, no Largo do Espírito Santo, cerimónia com larga participação, em que interveio um dos seus professores e amigo, Hernâni Cidade. A memória de Sebastião da Gama dava-lhe assim a possibilidade que a vida lhe não dera: a da sua presença pela palavra e pelo testemunho.
Jornal de Azeitão: 2019-02

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Nicolau da Claudina: a experiência, o saber, a amizade e a disponibilidade



Nicolau da Claudina (n. 1933) é uma figura carismática de Palmela e de Setúbal. Nome ligado ao movimento associativo, passou pelas direcções do Vitória Futebol Club, do Palmelense Futebol Club, do Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela, da Sociedade Filarmónica Humanitária de Palmela e da Associação Cultural Sebastião da Gama, entre outras.
Homem de um saber e de uma experiência extraordinárias, alia a bondade, a disponibilidade e uma memória prodigiosa que, além de revelar histórias, transmite exemplo. Foi aluno de Sebastião da Gama, personalidade que venera e a quem reconhece ter tido um extraordinário papel na sua formação.
Alegro-me por ter Nicolau como amigo de há muito tempo. E agradeço a Simões Silva a iniciativa de recolher o depoimento e testemunho de Nicolau da Claudina. A ver!

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Sebastião da Gama: Nos 70 anos do "Diário", hoje



“Para começar, falou connosco durante uma hora o Senhor Dr. Virgílio Couto. De acordo com o que disse, vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam: um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente. E dentro dessa convivência, como quem brinca ou como quem se lembra de uma coisa que sabe e vem a propósito, ir ensinando. Depois, esta nota importantíssima: lembrar-se a gente de que deve aceitar os rapazes como rapazes; deixá-los ser: ‘porque até o barulho é uma coisa agradável, quando é feito de boa-fé’. Houve nesta conversa uma palavra para guardar tanto como as outras, mais que todas as outras: ‘O que eu quero principalmente é que vivam felizes.’”
Este início reproduz a abertura do Diário de Sebastião da Gama, escrita em 11 de Janeiro de 1949, quando o poeta e professor azeitonense tinha 24 anos e dois livros de poesia publicados - Serra-Mãe, de 1945, e Cabo da Boa Esperança, de 1947. Estava Sebastião da Gama a iniciar o seu estágio de professor na Escola Comercial de Veiga Beirão, em Lisboa, localizada mesmo ao pé do Convento do Carmo. Tinha como professor orientador Virgílio Couto (1901-1972), docente de larga experiência e autor de numerosas publicações didácticas, incluindo alguns manuais escolares, e, como colega de estágio e amiga, a escritora Matilde Rosa Araújo (1921-2010). A turma com que Sebastião trabalhou e que assume o papel de protagonista neste Diário era constituída por 31 alunos, todos nascidos entre 1933 e 1935, isto é, com uma diferença de idades relativamente ao professor entre os nove e os onze anos.
A anterior experiência docente de Sebastião da Gama fora na Escola Industrial e Comercial João Vaz (actual Escola Secundária Sebastião da Gama), em Setúbal, acontecida no ano lectivo de 1947-1948, e, apesar de o Diário ser respeitante ao ano em que leccionou em Lisboa, de vez em quando por ele passam evocações do tempo das aulas em Setúbal, com referência a alguns professores (Josefina de Noronha Gamito e Alberto Fialho, por exemplo) e a alguns alunos (entre outros, Manuel Valente, conhecido como “Mané Botas”, Rogério Vaz de Carvalho e Joaquim Fernandes de Oliveira, conhecido como “Zé Boneco”).
O tempo de trabalho com a turma do Diário iniciou-se em 11 de Janeiro de 1949 e concluiu-se em final de Janeiro de 1950. A 28 desse último mês, Sebastião da Gama relata o fim da experiência e, depois de referir a despedida que fez aos alunos, lembra a atitude do grupo no final da aula: “Foi então que o Artur se levantou com uma seriedade mil vezes diferente da seriedade de comédia que ele às vezes compõe, se despediu de mim. Que bonitas, que simples, comovidas, que sinceras palavras! Um abraço ao Artur. E depois todos a virem despedir-se de mim como se eu fosse para a guerra, alguns a pedirem autógrafos. Ah! Coração, coração, que não arrebentaste...”
O diário que Sebastião da Gama escreveu ao longo do seu estágio foi sob recomendação do professor orientador, tendo-se desenvolvido entre os dois uma intensa relação de respeito, amizade e admiração: Virgílio Couto foi autor da obra Leituras (1948), em dois volumes, destinada à disciplina de Português no Ensino Técnico, tendo, no segundo volume, inserido o texto de Sebastião da Gama “Pequeno Poema”, dando-lhe o título “Quando eu nasci”; ao longo do diário, que leu aturadamente, Virgílio Couto anotou as  reflexões de Sebastião da Gama, sempre com um ar de encanto e de abertura, sensibilizando-se com as referências que o jovem professor fazia aos alunos e ao ensino. Por sua vez, Sebastião da Gama tanta admiração teve pelo seu professor orientador que, um dia, quis oferecer-lhe o manuscrito do diário; contudo, Joana Luísa da Gama, a mulher do poeta, opôs-se a essa intenção, tendo-se disponibilizado para fazer uma cópia manuscrita do diário para, essa sim, ser oferecida a Virgílio Couto. A disposição foi cumprida e o diário original ficou na posse do seu autor.
Apesar de não ser nítida uma intenção de que este registo visasse a publicação, certo é que o escrito com o testemunho e a reflexão de Sebastião da Gama era um documento humano demasiado importante para ficar esquecido. Percepção desse interesse tiveram-na Joana Luísa e vários amigos, entre os quais Hernâni Cidade (que fora professor de Sebastião da Gama) e, assim, em 1958, o Diário era publicado na casa editorial Ática. Foi a segunda obra póstuma publicada, tendo tido, até hoje, catorze edições, a última das quais, datada de 2011 (Editorial Presença), com a versão integral da obra e anotada.
Nestes 70 anos sobre a escrita original (ou 60 sobre a publicação), o Diário teve apenas uma tradução: para italiano, de uma parte significativa de excertos, devida a Maria Antonietta Rossi (2010). Na introdução a essa edição, refere Rossi que Sebastião da Gama se preocupava com um conceito em particular: “ensinar com amor e afecto”. Essas duas linhas orientadoras são visíveis logo no primeiro texto do diário acima transcritas - as aulas devem ser um espaço de alegria e de sinceridade; ensinar deve ser um tempo de convívio e de acompanhamento da vida; o respeito pelo outro é uma aprendizagem para a felicidade. Ensinamentos cheios de actualidade, acreditamos!

(Texto publicado no Jornal de Azeitão, em Janeiro de 2019)

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Efemérides de 2019



2019, designado como Ano Internacional da Tabela Periódica dos Elementos Químicos e como Ano Internacional das Línguas Indígenas,apresenta um calendário com efemérides bem importantes no plano histórico-cultural.
Quinhentos anos são passados sobre o falecimento de Leonardo da Vinci (1519-05-02) e sobre o início da Viagem de Circum-Navegação encetada por Fernão de Magalhães (1519-09-20). Quatro séculos decorrem sobre o nascimento de Cyrano de Bergerac (1619-03-06) e sobre o falecimento de Frei Agostinho da Cruz (1619-05-14). Duzentos anos se completam sobre os nascimentos de Walt Whitman (1819-05-31), Herman Melville (1819-08-01) e George Eliot (1819-11-22) e sobre o falecimento de Filinto Elísio (1819-02-25).
Referência especial merece neste ano o 150º aniversário do nascimento de Calouste Sarkis Gulbenkian (1869-03-23), o arménio que se apaixonou por Portugal e nos legou o seu património numa organização interventora como é a Fundação que tem o seu nome.
2019 é também o ano do primeiro centenário dos nascimentos de Fernando Namora (1919-04-15), de Jorge de Sena (1919-11-02) e de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-11-06), no respeitante a vultos da cultura portuguesa. Mas passa também o primeiro centenário dos nascimentos de J. D. Salinger (1919-01-01), de Primo Levi (1919-07-31) e de Doris Lessing (1919-10-22).
Quanto a acontecimentos históricos, são de referir os 100 anos sobre a assinatura do Tratado de Versalhes (1919-06-28), que assinalou o fim da Primeira Grande Guerra e que inauguraria, pensava-se, o tempo de abolição da guerra. Engano absoluto, pois, duas décadas mais tarde - passam neste 2019 os 80 anos -, a Europa começaria a Segunda Guerra Mundial (1939-09-01). É ainda de assinalar, no plano dos acontecimentos históricos, o 50º aniversário da chegada do Homem à Lua (1969-07-20), feito cometido pelos astronautas Aldrin, Armstrong e Collins, e, em Portugal, o 50º aniversário da Crise Académica de 1969 (com início em 1969-04-17).
O ano de 1969, sobre que passam 50 anos, foi também o do falecimento de António Sérgio (1969-02-12).
Em 2019, perfazem-se 70 anos sobre o primeiro registo diarístico que Sebastião da Gama fez no seu Diário (1949-01-11), obra apenas publicada em 1958.
Quanto a Setúbal, além das referências já feitas a Frei Agostinho da Cruz e a Sebastião da Gama, são de assinalar efemérides como os 200 anos sobre o nascimento Aníbal Álvares da Silva (1819-05-29), madeirense que foi vereador e presidente da Câmara sadina e que foi também deputado, função em que interveio e influenciou no sentido de a Setúbal ser atribuído o título de cidade, e de António Maria Eusébio, mais conhecido por “Cantador de Setúbal” ou “Calafate” (1819-12-15), poeta popular com valor reconhecido por nomes como Guerra Junqueiro ou Leite de Vasconcelos.
Há cem anos, Setúbal viu nascer o Orfanato Municipal (1919-05-18), instituição que mais tarde se chamou Orfanato Setubalense e, depois, Orfanato Municipal Presidente Sidónio Pais, e assistiu à inauguração do ramal da Linha do Sado (1919-12-13).

domingo, 23 de dezembro de 2018

D. Manuel Martins: “Nascemos Livres”, uma mensagem com Direitos Humanos



São cinquenta as crónicas que se albergam sob o título Nascemos Livres (Porto: Fundação SPES, 2018), livro póstumo do primeiro bispo de Setúbal, D. Manuel Martins (1927-2017), inicialmente publicadas no Jornal de Matosinhos, entre Setembro de 2016 e Setembro de 2017, com abertura de José Ferreira Gomes (presidente da Fundação SPES) e prefácio de Eugénio da Fonseca (professor setubalense, presidente da Caritas e uma das pessoas que mais dialogou com D. Manuel Martins).
O título do livro não é inócuo: num tempo como o nosso, em que à liberdade são impostas muitas fronteiras que pouco têm a ver com a justiça, em que se assinalam os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem (assinada em 10 de Dezembro de 1948), em que continuamente ouvimos falar sobre limitações sociais, a voz de D. Manuel Martins encontra registo neste título, que era uma das suas frases de catequização e de intervenção.
As crónicas são curtas e também neste aspecto jogam a sua eficácia porque os textos vão ao encontro do essencial, partindo de situações concretas e sem rodeios. Logo na primeira intervenção, “Cidadãos abaixo do nível da pobreza”, o dedo é apontado aos responsáveis da “causa primeira desta lamentável situação” que “é a Filosofia Económica que guia o mundo”. A intervenção vai mais longe quando comenta, dando conta do ridículo de situações a que todos assistimos: “Quantas vezes apetece perguntar: mas, afinal, o que é isso de cidadania, de democracia, de direitos humanos? Aqueles (não todos, felizmente) que no-lo propõem ensinar-nos nem imaginam o espectáculo que oferecem a quem o ouve.” E a questão dos direitos humanos vai saltitando, espreitando-nos em quase todas as crónicas, às vezes explicitamente, às vezes implicitamente, suportada em frases tão límpidas quanto estas: “Ser feliz é o mesmo que ter acesso a todos os Direitos Humanos”; “é urgente levar os nossos cidadãos a conhecerem e a apaixonarem-se pela Declaração Universal dos Direitos Humanos”; “é no mundo que a Igreja se move e vive para cantar, promover e defender a dignidade do Homem, os Direitos Humanos são a sua profissão”; “a Declaração consta de trinta artigos e ficamos com a impressão de que são o Evangelho traduzido em linguagem do nosso tempo”.
A confessada adesão ao espírito do Papa Francisco (a quem chama “o Papa com o relógio acertado” ou o “Papa Profeta”) leva-o aos desafios que se põem à nossa relação com a Natureza ou com o dinheiro ou à mudança necessária dentro da própria Igreja - “Queremos padres no mundo, que se enterrem no mundo, para aí iluminarem e ajudarem a descobrir e a testemunhar os verdadeiros valores.”
Assunto das suas crónicas vão sendo os acontecimentos, o real com que as pessoas se confrontaram durante aquele tempo dos textos-encontro publicados ao ritmo semanal: as eleições em Portugal, em França ou nos Estados Unidos; as controvérsias em torno da Caixa Geral de Depósitos; a colocação de professores; as ameaças à paz; as dificuldades do cidadão comum; os falecimentos de Mário Soares e de Daniel Serrão; os exemplos de Abel Varzim, de Sebastião Soares de Resende e de António Ferreira Gomes; a celebração dos dias (do Doente, dos Namorados, do Natal, da Páscoa, do Carnaval, do Trabalhador, da Mulher, do 25 de Abril, da Mãe); a solidariedade como prática do quotidiano; o centenário das Aparições em Fátima ou a Semana das Vocações; os incêndios. A interpretação que D. Manuel Martins apresenta da vida tem, numa das mãos, os factos e na outra, a palavra bíblica, seja por referência directa ao livro sagrado, seja através de testemunhos relacionados com o mesmo livro.
Mesmo para os seus leitores matosinhenses, o primeiro bispo sadino não esqueceu nestas crónicas a referência à sua “querida diocese de Setúbal”, ao contar, com data de 26 de Setembro de 2016, um caso de “testemunho coerente e corajoso da nossa fé”, assente na Doutrina Social da Igreja - a criação do restaurante social e do consultório dentário social levada a cabo na paróquia de Nossa Senhora da Conceição pelo padre Constantino Alves, um gesto que dá alento ao slogan “todo o homem tem direito a sorrir” e que D. Manuel assim comenta, enaltecendo esta iniciativa da paróquia: “Eu vejo neste slogan o melhor compêndio do respeito pelos Direitos Humanos.”
Uma outra referência à margem do Sado surge pela poesia de Sebastião da Gama, quando, ao evocar as palavras do Papa na recepção que fez aos sem-abrigo, aconselhando-os a nunca deixarem de sonhar, D. Manuel Martins remata: “Pelo sonho é que vamos! Apetece acrescentar.”
A última crónica, “O nosso querido Bispo”, surge datada de 16 de Setembro de 2017, a evocar o prelado portuense D. António Francisco dos Santos (1948-2017), que falecera cinco dias antes. Logo no parágrafo inicial, é dito que este bispo conquistou o Porto em três anos, “em pouco tempo tornou-se alma do Porto”. Depois, são lembrados outros importantes prelados da diocese - D. António Augusto Castro Meireles (1885-1942), D. António Ferreira Gomes (1906-1989), D. Júlio Tavares Rebimbas (1922-2010) e D. Armindo Lopes Coelho (1931-2010) -, todos por razões diversas, mas com uma marca forte no cronista. A concluir, o texto questiona: “D. António Francisco como nos marcará, como marcará o Porto?” E a resposta fecha o artigo: “Para mim, como o nosso querido Bispo.”Não podemos ler esta última crónica sem pensar que, por vezes, a vida nos surpreende. Com efeito, D. Manuel testemunhava sobre prelados que conheceu, tendo como pretexto a morte repentina do “seu” bispo.
Uns dias depois de ter produzido esta crónica - oito, em 24 desse Setembro -, D. Manuel Martins partia também. A forma como fechou a sua derradeira crónica bem podia aplicar-se ao final que poderíamos escolher para um testemunho sobre D. Manuel Martins! Nascemos Livres, este livro, bem pode integrar um testamento espiritual legado pelo “nosso” primeiro bispo!

sábado, 22 de dezembro de 2018

Bruno Elias - Fotos da biografia de um rio, o Sado



Abre-se o livro, em formato álbum, e lê-se a explicação do autor: “Este trabalho surgiu de uma memória de infância”. Logo a seguir, insiste-se nesse período de vida: “com 6 ou 7 anos é-se capaz do deslumbramento nas pequenas descobertas”. Pelo meio dos três parágrafos (o livro não tem mais escrita do que esta), percebe-se que Rio de Moinhos, na margem do Sado, foi o paraíso infantil, a terra das “férias de Verão”, e que a vida se encarregou de mostrar que o que era ali um pequeno rio se tornava em Setúbal na baía que é. Está-se perante Sado (Setúbal: Visor / Krrastzepy Verlag, 2018), obra surgida nas livrarias no início deste Dezembro.
Depois, são 45 fotografias do trajecto do Sado, desde Ourique (onde nasce) até Setúbal (onde mergulha no oceano), a preto e branco, falando por si, mostrando, acompanhadas de uma legenda objectiva e lacónica que refere apenas o sítio e as coordenadas geográficas. No final do conjunto, há um mapa com o itinerário do rio, que refere também os poisos que permitiram ver, contemplar e fotografar o Sado.
Faça-se então o roteiro: Ourique (onde o percurso inicia, com a latitude norte de 37°37’43.0’’ e com a longitude oeste 8°14’13.9’’), Albufeira e Barragem do Monte da Rocha, São Romão de Panóias, Alvalade do Sado, Azinheira dos Barros, Santa Margarida do Sado, Monte da Quinta de Cima, Rio de Moinhos do Sado, São Romão do Sado, Casa Branca, Vale de Guizo, Alcácer do Sal, Carrasqueira, Setúbal (zona industrial, Parque Urbano de Albarquel e Outão, onde a latitude é de 38°29’15.8’’N e a longitude se cifra em 8°56’11.7’’W).
Quando o rio começa, manifesta-se na sua quase insignificância, um pouco na procura de destino, cabendo depois às fotografias mostrar o encorpar que vai construindo a identidade do Sado, harmonizando-se e construindo a Natureza, por vezes artificialmente domado, por momentos selvagem e revolto, em alguns pontos idílico e remansoso. Em Santa Margarida do Sado, parece rir-se da obra inacabada com os pegões de betão que suportariam a estrada; em Rio de Moinhos, parece segurar a tosca passagem de madeira que o atravessa; em Alcácer, espelha a cidade e alimenta o arrozal; em Setúbal, molda a paisagem urbana; frente ao Outão, o Sado despede-se.
A fotografia que Bruno Elias nos apresenta a preto e branco permite-nos colorir a paisagem, sabendo-se que o rio vai matizando o seu trajecto, ao mesmo tempo que vai adquirindo aquelas cores com que os seus admiradores o firmaram - ora o rio dourado que o padre Jerónimo Botelho requeria por 1758 ao dizer “não sei que de suas areias se tirasse ouro, mas não duvido que o tenham, se algum poeta quiser dar às águas do Sado o epíteto de douradas, aprovarei, porque, em muitos lugares, resplandecem como ouro”, ora o rio azul que o poeta e médico transmontano Cabral Adão trouxe para os versos no início da década de 1950.
Um Sado a revelar-se lentamente em cada fragmento da sua biografia e a desafiar o olhar que o contempla é o que a lente de Bruno Elias nos propõe.

domingo, 9 de dezembro de 2018

Sebastião da Gama e o Natal


Fragmento do manuscrito do poema "Presépio", de Sebastião da Gama

Nas férias escolares de Natal de 1949, Sebastião da Gama (com 25 anos, exercendo funções docentes nesse ano lectivo na Escola Veiga Beirão, em Lisboa) registava no seu “Diário”: “O maior calor do meu Natal vem-me das Boas-Festas dos meus rapazes. Não foram os seus cartões — alguns tão belos!, todos, para o meu coração, tão belos! — quase não sentia o Natal; ou sentia mas era uma dor, um vazio, um sonho a desfazer-se.” Razões apontadas para este desconforto ultrapassado pelas mensagens chegadas dos seus alunos eram várias: a vida dos pais muito ocupada nessa altura (o trabalho que tinham na Estalagem de Santa Maria da Arrábida, no Portinho da Arrábida, muito movimentada nesta quadra do ano), a dedicação do irmão Sérgio à sua nova família e o facto de Joana Luísa, sua namorada, ainda não estar com ele. E comenta Sebastião: “tudo isto dispersa as brasas da lareira que eu neste dia queria ver todas unidas, todas uma”. Um pouco adiante, há ainda lugar para uma referência à quantidade de missivas chegadas: “tive, em todos os correios de férias, os cartões das raparigas e dos rapazes. E a alegria é maior quando, como agora, se lembram de mim os que eu menos contava que se lembrassem — e quando são os alunos que o já foram os mais presentes. De alunos velhos, tive até hoje 21 cartões; de alunos de agora três apenas. Com que amor os guardo! — são as minhas comendas, as minhas grã-cruzes.”
O Natal foi para Sebastião da Gama uma quadra com tudo o que de mais espiritual, fraterno, familiar e partilhável se possa imaginar, a acreditarmos nos registos que deixou. É de 13 de Dezembro de 1941 um poema de três quadras, ainda inédito, que intitulou “Carta de Boas Festas”, por onde perpassa o ambiente histórico, económico e social que se vivia (estávamos em tempo da Segunda Grande Guerra), ao mesmo tempo que nos deixamos deslumbrar com o sentido de humor e de oportunidade que animava o jovem Sebastião, então com 17 anos: “Natal à porta. E eu, minhas amigas, / doces espigas deste meu trigal, / qu’ria dar-vos, sim, ofertar-vos broas, / que são tão boas cá em Portugal. // Mas, como sabeis, a maldita Guerra / lavra na terra, tudo leva após. / Açúcar levou, levou a canela... / Broa qu’é dela? Qu’é dela a filhós? // No Porto busquei, busquei em Lisboa; / não vi ‘ma broa, sequer rasto destas. / Desculpai-me pois se eu dou, neste dia, / não que devia, mas só boas festas.”
Uns dias depois, em 24 de Dezembro, o Natal voltava a ser motivo de poema, que, dedicado a Júlia de Carvalho, assim dizia, em jeito de quem conta uma história: “Falta só um dia, meninos, ouvi, / para fazer anos que, na Nazaré, / a doce ovelhinha fazia mé-mé, / Jesus, nas palhinhas, fazia chi-chi, / sorria, encantado, o bom S. José. // Jesus foi crescendo: no chão foi dispor / um’árvore bela chamada Verdade, / que tinha por frutos a santa Bondade, / rosados quais peros, de estranho dulçor, / que sempre comê-los só dava vontade. // À sombra tão larga se vinham sentar / os bons caminheiros da estrada da Vida. / E, debaixo de si, a paz tão pedida, / os frutos gostosos, os vinha encontrar / quem perto passava e a via florida. // Vieram as chuvas, vieram os ventos / que, feros, quiseram abaixo deitá-la. / Nem ventos nem chuvas, não vinham quebrá-la / que, sempre aprumada no meio dos rebentos, / só vinham movê-la, mui pouco vergá-la. // E os frutos gostosos são cada vez mais; / e as folhas de esp’rança voando mais vão; / e alguma pernada queimada ao fogão / produz luz tão forte, produz chamas tais / que são claro dia nesta escuridão. // Falta só um dia: Jesus, nas palhinhas, / sorria aos reis magos, sorria a José. / A doce ovelhinha fazia mé-mé / e Deus, a Maria, maior das rainhas, / olhava e sorria lá na Nazaré.”
Três anos passariam para, em carta a Joana Luísa (ainda sua namorada), escrever: “Hoje é dia de Natal! Hoje é dia de Natal! Nas capelas todas, os sinos todos toquem! Cantem a minha Alegria por ser dia de Natal! Porque será que a minha Alegria é assim suavezinha como uma saudade, como um cair de Tarde?” Um pouco adiante, na mesma carta, transcrevia um poema feito nesse dia: “Eu não tenho razão pra estar triste... / Eu hoje sou a Estrela e os Reis Magos / e sou a ovelhinha do Presépio... // Mas vou triste, Menino de Belém. / Não me lembra que faltam / trinta e três longos anos pra que eu seja / a dor que há de matar a Tua Mãe.” A concluir a carta, despedia-se: “Pois adeus, Luísa. Eu não venho desejar-te, como toda a gente, um Natal muito feliz e um ano novo cheio de prosperidades. Venho desejar-te um Natal igual ao meu: um Natal que é uma brasa na lareira; que é uma espécie de perdão.” Haverá melhor mensagem natalícia a transmitir?
O mais conhecido poema de Sebastião da Gama sobre o Natal será, porventura, “Presépio”, datado de 24 de Dezembro de 1950, inserido no livro póstumo Pelo Sonho é que Vamos. Escrito na “véspera de Natal de 1950”, nesse mesmo dia integrou um postal que de Azeitão foi endereçado ao seu amigo, também poeta, Cristovam Pavia. Além de indicar quando partiria para Estremoz e de transcrever o poema, o importante da mensagem era: “Hoje quero só mandar-lhe um grande abraço de Ano Bom”. O poema, conterá, talvez, o mais franciscano retrato do que é o Natal, em busca de uma autenticidade que era apanágio do jovem azeitonense: “Nuzinho sobre as palhas, / nuzinho - e em Dezembro! / Que pintores tão cruéis, / Menino, te pintaram? // O calor do seu corpo, / pra que o quer tua Mãe? / Tão cruéis os pintores! / (Tão injustos contigo,  / Senhora!) // Só a vaca e a mula / com seu bafo te aquecem... // - Quem as pôs na pintura?”
Este poema, além de ter sido gravado por Victor de Sousa no cd “Pelo sonho é que Vamos” (Setúbal: Ruquisom, 2000), consta em três antologias, duas delas sendo referência literária sobre a época natalícia: em O Natal na Poesia Portuguesa, organizada por Luís Forjaz Trigueiros (Lisboa: Dinalivro, 1987); em Anunciação e Natal na Poesia Portuguesa, organizada por António Salvado (Lisboa: Polis, 1969); em Antologia de la Nueva Poesia Portuguesa, devida a Angel Crespo (Col. “Adonais”. Madrid: Ediciones Rialp, 1961), onde recebeu o título “Nacimiento”.
in Jornal de Azeitão: nº 267, 2018-12, pg. 15

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Frei António das Chagas, o frade de Brancanes


Frei António das Chagas (Biblioteca Nacional de Portugal); Cartas Espirituais (1957) 

António de Sousa Soares (1631-1682), alentejano da Vidigueira, teve vida aventurosa e repartida e passou várias vezes por Setúbal, onde foi comandante do terço de cavalaria. Um dia, sugestionado pela leitura de Frei Luís de Granada, decidiu enveredar pela vida eclesiástica, ingressando na Ordem Franciscana. Contudo, em função do seu percurso, foram-lhe levantadas dificuldades várias. Apesar dessas adversidades, a persistência não o abandonou e, em 1663, tomava o hábito no convento de Évora, passando a usar o nome de Frei António das Chagas. Tornou-se pregador e guia espiritual e passou por Setúbal (onde está consagrado na toponímia, na zona de Montalvão) em ocasiões diversas, estando o seu nome ligado à criação do convento de Brancanes.
Na colecção “Clássicos da Sá da Costa”, publicou Manuel Rodrigues Lapa um volume de correspondência de Frei António das Chagas, aí reunindo uma centena de cartas (das inúmeras que escreveu e distribuiu por um vasto leque de correspondentes), em que duas são redigidas a partir de Setúbal e numa outra há referência a uma sua vinda a Setúbal para acompanhar a fundação do seminário de Nossa Senhora dos Anjos de Brancanes.
Lê-se este volume das Cartas Espirituais (2ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1957) e contacta-se com um espírito sábio e delicado, feito pelas agruras da vida, usando a ironia e a objectividade, defendendo a humildade, por vezes de forma dura, e assumindo a vida como acção e caminho. Deixo alguns sublinhados por serem ensinamentos importantes.

Apetite- “Calar os apetites é conhecida ganância da alma, porque é dura violência da natureza.”
Árvore- “Árvore que com pequena tempestade cai ou tem poucas raízes ou é muito tenra ainda.”
Caminho- “O negócio de quem caminha consiste em não parar e ir por diante, ou seja por serras ásperas ou por vales aprazíveis ou por flores de consolação ou por espinhas de tribulação, apesar de que picam e magoam.” 
Conduzir- “Destreza é dos pilotos saber mudar as velas, de modo que se não perca o caminho na tempestade e que os mesmos ventos contrários nos metam no porto.”
Dizer- “Umas coisas se dizem porque se sabem dizer sem se chegar a sentir; outras, porque de senti-las nasce o dizê-las.”
Espelho- “Quem se vê muitas vezes ao espelho disforme, de algumas se deseja compor.” 
Excesso- “Tanta ruína padecemos às vezes por acendidos como por areados, tantas pelo fogo que nos abrasa, como por um mar que nos cerca; porque, se naquele o ardor é o maior perigo, neste a frieza não vem a ser menor dano.”
Fogo- “O fogo sempre deita faíscas que nos ferem quando não haja chama que nos queime.”
Governar- “Quase todos os que governam sabem por onde esta nau se vai ao fundo, e por onde entrou o mar da relaxação e distraimento, que especialmente é por ambições de mando, séquito e governo; e por carear votos e séquito se não repara na insuficiência e incapacidade dos sujeitos, e ficando nestes as prelazias imprimem em seus súbditos as suas semelhanças, dando cargos e vivendo para passar a subir e merecer ao humano, com pouca atenção ao divino.”
Herói- “A Hércules convidaram-no os conflitos e fizeram-no Hércules os trabalhos.”
História- “O fim principal da história é fazer presentes para a nossa doutrina os séculos passados e estender na duração das memórias aquelas posteridades da fama a quem faz ordinariamente injúria o esquecimento dos tempos.”
Mal- “As coisas más não se podem tratar sem medo.”
Mundo- “Não é o mundo lugar para o descanso.”
Nada- “O nada não faz ruído.”
Notícia- “A verdade é alma das notícias.”
Prémio- “Quem vai buscar o tesouro na mina vai por baixo da terra às escuras, não só com escuridades, mas com fadiga, abaixando sempre a cabeça. Depois dessas trevas, há-de vir a luz e, em dando na mina, veremos que todo o trabalho é pouco e toda a fadiga leve para o prémio que se acha e para o bem que se logra, que excede a toda a comparação.” 
Queda- “A queda, que para o vidro é ruína, para a pedra é descanso e sossego: os fracos como o vidro quebram, em caindo perdem-se, quebrando-se-lhe o coração, o ânimo e a confiança; e maior dano lhe faz a sua fragilidade que a sua queda. A pedra, como é forte, na sua queda descansa; e quanto é maior o baixo a que se despenhou, maior segurança adquiriu, porque no mesmo precipício achou fundamento para maior fortaleza.”
Rio- “Um rio, por pequenino que nasça, por fonte que comece, rio continua e mar acaba, se persevera.”
Santidade- “A santidade não consiste em muito contemplar, senão em muito obrar. Mais vale um dia, em que andais fazendo obras de caridade ou de humildade ou de obediência ou de paciência, que estar um mês em contemplação, êxtases e em raptos. Porque isto é comer a iguaria sem a merecer e aquilo é merecê-la, ainda que a não chegueis a comer.” 

domingo, 11 de novembro de 2018

Sebastião da Gama: O mais antigo (e mais jovem) poema (em que se fala de reis e de Portugal)




Sebastião da Gama tinha 10 anos quando escreveu aquele que é hoje o seu mais antigo poema de que existe prova escrita. Trabalho escolar, sobre os reis de Portugal, a ele se referiria no Diário para datar um episódio da sua vida. Vale relembrar o poema; por isso, aqui reproduzo texto que foi publicado no mensário Jornal de Azeitão, em Novembro (n.º 266, 2018-11, pg. 15).
A acompanhar o texto, uma fotografia de parte do manuscrito do poema.