terça-feira, 31 de julho de 2007

Luísa Todi na Rússia

"A aventura russa do rouxinol de Setúbal" é o texto que José Milhazes publicou no seu blog e que a edição online do Pravda, de 30 de Julho, reproduziu. O "rouxinol" é Luísa Todi, uma metáfora que lhe assenta bem, tão bem como aquele título que Maria Isabel Mendonça Soares (a que já aqui me referi, em 9 de Julho) inventou para um capítulo sobre ela - "Uma voz que encantou a Europa", aí incluindo a actuação na Rússia, naturalmente.


Painel de azulejos sobre Setúbal, na Escola de 1º Ciclo dos Pinheirinhos (Setúbal),
onde se pode ver a figura de Luísa Todi

No "Correio de Setúbal" de hoje

DIÁRIO DA AUTO-ESTIMA – 64
Manuel Alegre I – O artigo que o diário “Público” recentemente divulgou, assinado por Manuel Alegre, “Contra o medo, a liberdade”, agitou águas e demonstrou como são envernizadas as relações entre políticos, muitas vezes do mesmo partido. Alegre manifestou-se contra uma forma de estar na política e no poder que tem permitido o funcionamento da chamada “lógica de aparelho”, em nome da qual tudo vale, ela mesma erigida em ideologia. A oportunidade deste escrito resulta das situações apontadas como sendo “a delação e a confusão entre lealdade e subserviência”. Toda a gente sabe a que acontecimentos se refere Manuel Alegre e também não se pode ignorar que, não tendo que haver heróis, não ficaram bem os processos pelos quais os decisores tomaram as decisões relativamente aos casos de que se tem falado.
Manuel Alegre II – Poder-se-á dizer que o conteúdo desta mensagem não é novo nas intervenções do deputado-escritor. Mas o que não se poderá ignorar é a intervenção que Alegre tem tido sempre em prol da liberdade de expressão, seja nos seus poemas (que foram voz de muito “amordaçado”, que entusiasmaram por certo muitos dos políticos estabelecidos de agora), seja na sua prática de deputado, seja na sua visão de cidadania, haja em vista as vezes em que agiu por sua conta e risco, à margem do partido a que pertence.
Manuel Alegre III – Quando, após a divulgação do texto no “Público”, o histórico Almeida Santos falou numa emissora, dizendo que este texto era “humilhante”, não foi para se pôr ao lado de Alegre ou para criticar o partido, mas para, de alguma forma, minimizar os efeitos que a opinião do deputado poderia desencadear. Depois, houve comentadores que acentuaram a falta de novidade no discurso, como se todos os discursos tivessem que ter uma novidade, como se não fosse necessário falar muitas vezes do que é óbvio, porque sabemos que as evidências, de tão evidentes que são, se transformam muitas vezes em coisas esquecidas (como, por exemplo, a liberdade ou as restrições que lhe tentem impor). O ponto alto chegou com o Primeiro-Ministro a ir a reboque dos comentadores, considerando na televisão que esta opinião de Alegre faz parte do figurino, dizendo: “É um clássico. Alegre escreve de três em três anos um artigo a dizer que há medo. O PS é um partido de liberdade.”
Manuel Alegre IV – O que nenhum destes comentários conseguiu esconder foi uma certa dose de altivez, porque uma boa forma de levar ao esquecimento é ignorar ou fingir que se ignora o que se passa. Alegre foi mais bem-educado no seu texto. E conseguiu criticar, coisa que muitas opiniões geradas a partir dele não foram capazes de fazer, nem sequer de assumir como uma auto-crítica ou como um aviso. Não, em Portugal, tudo vai bem e a liberdade está garantida! Será mesmo assim?

domingo, 29 de julho de 2007

Para uma antologia da região de Setúbal (1)

Albert Jouvin e o Sal
O francês Albert Jouvin (de Rochefort), administrador de finanças em Limoges em 1675, era homem viajado. Em 1672, publicou a obra resultante dos seus itinerários, intitulada Le Voyageur d’Europe, où sont les voyages de France, d’Italie et de Malte, d’Espagne et de Portugal, des Pays-Bas, d’Allemagne et de Pologne, d’Angleterre, de Danemark et de Suède.
A narrativa da viagem que fez em Espanha e em Portugal consta no segundo dos oito volumes que compõem a obra. De Setúbal, Jouvin ouviu falar por causa do sal. Não esteve na terra do Sado, mas fez-lhe referência no escrito, metida na viagem entre Vendas Novas e Aldeia Galega [Montijo]: “há ali um rio que forma terrenos pantanosos, e que passámos, e onde encontrámos a pousada, de onde continuámos por bosques e areais até à povoação de Aldeia Galega, que está na margem do Tejo, sobre um pequeno golfo que o mar invade, acabando com grandes terrenos encharcados onde se produz sal, como em vários sítios de Portugal, principalmente na região de Setúbal, a cinco ou seis léguas daqui, e em Aveiro (…), que os ingleses, os suecos, os dinamarqueses, os holandeses, os escoceses, os hamburgueses e outros estrangeiros vêm carregar todos os anos como troca das suas madeiras para a construção de barcos, ou o seu pescado salgado, trigo, cobre, carvão mineral, ferro, chumbo e outras mercadorias que não há em Portugal. (…)”.
Não conheço tradução portuguesa da obra e a que apresento é feita a partir de uma edição em castelhano, publicada numa antologia organizada por J. García Mercadal, cujo segundo tomo estampa relatos escritos no século XVII (Viajantes Extranjeros por España y Portugal. Madrid: Aguilar, 1959).

sábado, 28 de julho de 2007

Couto Viana, Mourão-Ferreira e Sebastião da Gama: um trio numa geração

Um artigo de António Manuel Couto Viana na última edição da revista Prelo (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, nº 4, Janeiro-Abril.2007) reúne memórias sobre três figuras da cultura portuguesa nascidas na década de 20, que se tornaram emblemáticas na literatura a partir de meados da década de 40: David Mourão-Ferreira (1927-1996), Sebastião da Gama (1924-1952) e Couto Viana (n. 1923).
O texto acentua o seu cariz autobiográfico logo no título – “David Mourão-Ferreira nas minhas memórias de adolescente” – e poderá fazer parte de um já extenso rol de escritos memorialísticos de Couto Viana, cuja maior parte está reunida em livro – Coração arquivista (1977), As (e)vocações literárias (1980), Gentes e Cousas d’Antre Minho e Lima (1988), Colegial de letras e lembranças (1994), Escavações de superfície (1995) e Ler, escrever e contar (1999).
Ao longo das quinze páginas do artigo, Couto Viana relembra as afinidades culturais, literárias e geracionais com David Mourão-Ferreira a partir de um encontro ocorrido em 1946, ano em que, com 23 anos e vindo de Viana do Castelo, chegou a Lisboa. No ano anterior, já Sebastião da Gama tinha publicado o seu livro inaugural, Serra-Mãe. E é por aí que começa a relação – “Nesse ano de 1946, recebi de uma amiga de infância, Eugénia Aurora, a notícia de que o poeta Sebastião da Gama, autor do livro Serra-Mãe, por mim tão admirado, havia sido convidado por seu pai, Conde d’Aurora, para passar uns dias no seu solar de Ponte de Lima. (…) Eugénia falara-lhe de mim e desejava que nos conhecêssemos. Para isso, dera-lhe o meu contacto.” [sublinhado meu]
Regressado da sua viagem a terras do Lima, Sebastião da Gama não demorou a telefonar a Couto Viana, tendo sido aprazado encontro para o Café Chiado, em Lisboa. Quem esteve presente nesse encontro? Sebastião da Gama não apareceu sozinho; trouxe com ele Luís Amaro (n. 1923) e, no interior do café, juntaram-se a outro amigo de Sebastião, o jovem David Mourão-Ferreira. Assim se iniciava um caminho de amizade, em que todos os convivas estavam unidos pela poesia e a que muitos outros viriam a juntar-se...
Depois deste primeiro encontro, chegaram as afinidades culturais. E prossegue o memorialista: “Porque tínhamos amigos que prezavam a literatura, sobretudo a poesia, e partilhavam de iguais gostos estéticos, começámos a considerar-nos uma geração, bem diferenciada da anterior, a dos anos 40, voltada para o social, intitulando-se neo-realista.” Os encontros foram mais assíduos entre Couto Viana e Mourão-Ferreira, quer porque ambos moravam em Lisboa, quer porque ambos tinham também a paixão do teatro. Mas “a boémia nocturna espalhara-se por longos passeios na Lisboa pacata, às vezes na companhia de Sebastião da Gama”.
Tal convívio desembocou no aparecimento da revista literária Távola Redonda (que andava a germinar desde 1947, primeiro com o título proposto de Clima e, depois, de Arame Farpado, hipóteses que, na hora da decisão, acabaram por pender para o mito arturiano, aí se enaltecendo a poesia e a tradição, que viria a ser o encontro com o lirismo). “Com a concordância do núcleo fundador, o David, o Luís de Macedo, o Vaz Pereira, o Sebastião da Gama, o João Belchior Viegas, a Fernanda Botelho, o Fernando Guedes e o Fernando de Paços, Távola Redonda, ‘folhas de poesia’, vinha a lume no dia 17 de Janeiro de 1950, ainda que com a data de 15 desse mês. E prometia ocupar as bancas das livrarias, quinzenalmente.” Todos estes nomes viriam a assinar obra literária autónoma, com excepção de Vaz Pereira, que continuou a assinar na área do desenho e da ilustração.
O texto de Couto Viana continua, relatando a história do percurso literário que teve com Mourão-Ferreira. Mas, a partir daqui, os encontros, fossem eles físicos ou epistolares, entre Sebastião da Gama e Couto Viana foram ainda muitos, sobretudo por causa da Távola Redonda. Desde o Portinho da Arrábida, onde Sebastião da Gama vivia, as missivas para Couto Viana e para Mourão-Ferreira eram assíduas, tendo como motivo a qualidade e a publicação da revista, o aconselhamento, a crítica. Sebastião da Gama teve colaboração nos números 1, 6, 7 e 8 da Távola. Já postumamente, apareceram textos seus nos números duplos 16/17 e 19/20. A revista terminou o seu ciclo no vigésimo número, datado de 15 de Julho de 1954. Mas o número 16/17, saído em 30 de Abril de 1953, constituiu uma homenagem a Sebastião da Gama (que falecera em 7 de Fevereiro do ano anterior), vinda dos seus colegas de geração – Matilde Rosa Araújo (n. 1921), Júlio Evangelista (1927-2005), Couto Viana, Miguel de Castro (pseudónimo de Jasmim Rodrigues da Silva, a residir em Setúbal e “descoberto” para a poesia por Sebastião da Gama, n. 1925), Fernando Guedes (n. 1929), Mourão-Ferreira, Luiz de Macedo (pseudónimo de Luís Chaves de Oliveira, n. 1925), Cristovam Pavia (1933-1968), Artur Ribeiro (de Setúbal), Fausto Denis, João Sant’Iago (n. 1918) e Leonor de Castilho – e de alguns vultos já respeitadíssimos na cultura e na literatura portuguesa – José Régio (1901-1969), seu amigo, e Hernâni Cidade (1887-1975), seu professor e amigo. No texto “Para uma interpretação da poesia de Sebastião da Gama” aí publicado, Mourão-Ferreira escrevia que ela constituía “uma pessoalíssima e lírica epopeia de exaltação à Vida” e “uma das mais extraordinárias aventuras da Poesia portuguesa contemporânea”. Já Couto Viana exarou no poema “Lápide”, divulgado também nesse número, o desafio à memória: “Cada hora que somos nos desgasta: / O tempo é vil e a juventude é casta. / - Só merece viver quem morre cedo.” O ciclo da amizade firmou essa mesma memória.
[A primeira fotografia, de António Manuel Couto Viana, visto por Cília Costa, data de 9 de Junho de 2007, aquando da inauguração do monumento a Sebastião da Gama, em Azeitão; a segunda fotografia, captando um encontro entre Sebastião da Gama e David Mourão-Ferreira no Portinho da Arrábida, data de 1946.]

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Fernando Paulino: um poema

A noite é um lugar sem som
estas palavras não têm amanhã saltam os muros
da alma pernoitam na sombra dos alpendres
plantam sementes de poemas entre as estrelas do dizer

transportam um novo ciclo de escrita
onde tudo se repete no teu olhar de folha solta

entre as densas paredes da casa desarrumo versos
nos arrabaldes do silêncio a noite é um lugar sem som

Fernando Paulino (n. Setúbal, 1961) é autor de Livro do sol (1983), À face da luz (1997) e A luz e a rosa (2001), tem colaboração em diversas antologias e está ligado a vários grupos de poesia. Recebeu já o prémio "Manuel Maria Barbosa du Bocage", atribuído pela LASA (Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão). "A noite é um lugar sem som", que agora se publica, é o primeiro de um conjunto de poemas sob esse título.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Sobre Sophia e os "Contos Exemplares"

Nos cruzamentos dos cinco livros, a Teresa Lopes escolheu textos de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e, ao dizer que apreciava na sua escrita "a claridade das coisas e das palavras, a medida, o rigor, os valores que podemos passar sem ser moralistas, o simples prazer de ler, apenas por ler", pôs lá muito do que caracteriza a escrita poética ou ensaística de Sophia.
Há um seu livro que sempre me impressionou - Contos Exemplares (1962), com particular atenção sobre as narrativas "A Viagem" e "Homero".
Na primeira, há sabedoria sobre a vida ("Todas as coisas pareciam acesas. (...) É o meio da vida."), sobre o feminino ("Na concha das suas mãos a mulher bebeu e deu de beber ao homem." ou "O perfil da mulher recortava-se entre as flores."), sobre a ecologia ("Ouvia-se o silêncio dos musgos e da terra." ou "Mas só ouviu o silêncio palpitante da terra."), sobre a memória ("Viu que, quando as raízes se rompessem, não se poderia agarrar a nada, nem mesmo a si própria. Pois era ela própria o que ela agora ia perder.")
Na segunda, há a força que ressalta da personagem Búzio, que era "como um monumento manuelino", e a valorização da palavra e do discurso - o título do conto é, de resto, emblemático - a tal ponto que a personagem narradora recorda, muito tempo volvido e em jeito de memória, o discurso de Búzio ao mar: "Lembro-me de que eram palavras moduladas como um canto, palavras quase visíveis que ocupavam os espaços do ar com a sua forma, a sua densidade e o seu peso. Palavras que chamavam pelas coisas. Palavras brilhantes como as escamas dum peixe, palavras grandes e desertas como praias. E as suas palavras reuniam os rostos dispersos da alegria da terra. Ele os invocava, os mostrava, os nomeava: vento, frescura das águas, oiro do sol, silêncio e brilho das estrelas." Homérico? Sim, por ser uma homenagem à língua e à literatura.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Sete notas depois de ler Steiner sobre o livro

Um livro que acabei de ler hoje e de que gostei: O silêncio dos livros, de George Steiner, numa edição (Lisboa: Gradiva, 2007) que acrescenta um texto, também ensaístico, de Michel Crépu, referente à leitura e com o freudiano título de Esse vício ainda impune. Num tempo em que se volta a falar da(s) liberdade(s) e do direito que a ela(s) temos, é pertinente dizer também sobre a liberdade dos livros. E registo algumas notas.
1. O poder do texto escrito é imenso, entrando no domínio do normativo. Por essa razão, não chegam as intenções anunciadas por um governante; é preciso que elas sejam plasmadas na escrita para fazerem lei. Isto conduz-nos a duas evidências: o poder de quem é letrado e a possibilidade de um texto ser refutado ou questionado apenas com outro texto.
2. “A escrita debilita o poder da memória”, porque “aquilo que fica escrito e que, portanto, pode ser armazenado, já não precisa de ser confiado à memória.” As histórias transmitidas oralmente procedem à actualização da memória, hoje tão maltratada, de resto. A questão da memória é mesmo preocupante e vê-se o seu menosprezo um pouco por todo o lado, como, por exemplo, nesta história: há tempos, numa turma em que havia um aluno originário de um país do leste europeu, um colega interpelou-o para saber a razão de ele ser muito bom aluno em Matemática, o que melhores resultados obtinha na turma, apesar da dificuldade linguística. A resposta foi lapidar: no seu país de origem, as calculadoras só são permitidas em níveis de estudo mais avançados; para ele, tinha sido novidade chegar a Portugal e ver a calculadora a ser utilizada logo desde os níveis mais elementares… Saber a tabuada? Oh, mas isso vê-se na calculadora, no telemóvel ou no relógio… aprende-se no quotidiano escolar.
3. A censura, ainda que travestindo-se de variadas formas, tem acompanhado os tempos e a História, “é tão velha e omnipresente como a escrita”. Bastará, nos tempos de hoje, pensar-se no que significa o “politicamente correcto”… uma metáfora da mesma censura, curiosamente um dos mecanismos que o acto censório incita, na medida em que a palavra se recria e o discurso se inventa para dizer o proibido.
4. A leitura pressupõe bibliotecas e é amiga do silêncio. O frenesim crescente da humanidade tem vindo a destruir estas duas condições, sobretudo a segunda, e, por vezes, as bibliotecas viram centros de convívio, lugares de ruído e de tudo, menos de amizade aos livros e à leitura.
5. A leitura pode desumanizar. Basta que o leitor atinja o grau do cúmulo enquanto leitor e passe a “acreditar” na ficção, a revoltar-se com a “eternidade” das personagens; a sua relação com o freudiano “princípio da realidade” irá por água abaixo. E questiona Steiner, depois de invocar Montaigne, Yeats e Wagner: “Enquanto professor, alguém para quem a literatura, a filosofia, a música ou as artes são a verdadeira substância da vida, como poderei eu exprimir a necessidade que sinto de uma lucidez moral, consciente das necessidades humanas e da injustiça que torna possível uma cultura a tal ponto elevada?”
6. Como será a leitura do/no futuro? “É possível que o tipo de leitura (…) clássica venha a ser de novo uma espécie de paixão particular, ensinada em casas de leitura (…) ou como a leitura que era praticada nas escolas monásticas ou nos refeitórios conventuais da Idade Média.
7. Michel Crépu, em Esse vício ainda impune, reunido no mesmo livro, “lê” questões que Steiner deixou. Insiste na falta de paciência e de silêncio que nos vai caracterizando e questiona-se quanto ao efeito desta realidade na leitura tal como hoje a concebemos. Em surdina (ou talvez não), vai surgindo “esta guerra aos desacatos do vício ainda impune, em nome do desenvolvimento e da rentabilidade tanto psicológica como comercial, (...) conduzida por um exército de patetas radiantes de estupidez e de uma ambição feroz”. Todos reconhecemos essa classe estúpida e betinha, cheia de falta de cultura e até de sentido. No final, fica, todavia, a esperança de nos cruzarmos com alguém que também se sinta incendiado “por uma palavra nascida nas profundezas de uma biblioteca”.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Camilo e (alguma) moda

Ontem, escrevi sobre uma exposição de moda de que gostei. Hoje, apresento uma leitura da moda de há 150 anos, cuja escrita me diverte. As imagens são da exposição a que ontem aludi: a primeira, da época rococó, e a segunda, contemporânea do escrito cuja leitura sugiro, apesar da extensão...
Em 1856, Camilo Castelo Branco colaborava no periódico vianense A Aurora do Lima (criado em Dezembro de 1855, ainda hoje editado, e em continuidade, o que o torna no mais antigo jornal do continente português em publicação), assinando umas crónicas críticas sob o pseudónimo de João Júnior. Saiu em 23 de Setembro de 1856 o texto que contém o excerto que a seguir reproduzo, meio século mais tarde recolhido em Folhetins de Camilo Castelo Branco publicados n’A Aurora do Lima - 1ª série (Viana do Castelo: 1911). Nele pode o leitor ver a linguagem forte e irónica de Camilo, a crítica intensa aos barões e à sociedade, a graça camiliana em todo o seu esplendor.
Ó meu redactor, se V. soubesse quem as elegantes do Porto arremedam no seu andar requebrado, mórbido e voluptuoso!... Benzia-se!
As saias-mirinais aumentam gradualmente o bojo. Em rua estreita, o encontro de mulher-balão com homem gordo é um perigo. Eu de mim, espadela humana, achato-me como inteligência de barão e deixo passar o leviatã de pano cru e barba de baleia.
A respeito destas saias quer o meu amigo ver o que há mais de cem anos disse um folhetinista português? A coisa é um diálogo:
'SOLDADO: No tempo da minha avó, quando tinha caído nesta terra uma praga de donaires que aqui andou e fazia inchar a gente de sorte, que uma mulher, por magra que fosse, parecia um tonel, que em lugar de alguma aduela, que lhe faltava, tinha muitos arcos de sobejo – perguntei eu a um curioso de antigualhas se sabia donde eram oriundos aqueles inchaços? E ele me respondeu: que as mulheres tanto morreram por andar à moda que a moda lhes pagou o afecto em lhes oferecer aqueles mausoléus ou essas em que jaziam embalsamadas para espectáculo do povo; mas ainda esta razão me não quadrava, e não achei quem me desse outra, antes me disseram que a não havia.
LETRADO: Olhai: arremataram o contrato da mentira, um poeta e um alfaiate, e para que mais lhe rendesse, disse aquele que as damas não tinham pernas, e este então inventou aquela forma de peanhas em que assentassem os meios corpos que lhes atribuíam para com mais decência serem veneradas estas figuras. Se não foi este despropósito, não tenho até agora notícia doutro que engendrasse aquele.'

Não lhe comunico o fragmento como coisa muito engraçada, mas é para que fiquem sabendo os que o não sabiam que tivemos, há mais de um século, folhetinistas com juízo e senhoras que podiam muito bem fingir que o não tinham. As de então chamavam-se almotacés da bizarria, as de hoje são janotas. Ora o folhetinista ninguém hoje fala dele: chamava-se Silvestre Silvério da Silveira e Silva. Os de hoje não têm tantos SS, mas têm mais TT.
Lá por Lisboa já há quem ponha em letra redonda que o tal balão é necessário para o enfeite da mulher. Quem tal diz é um herege do senso comum e reclama um sedenho na nuca e panos de água fria na cabeça! É abusar muito dos tipos! É querer fazer depender o mérito duma mulher de mais oito varas de paninho, quatro arráteis de pós de goma e dois costais de algodão. É preconizar a impostura, fomentar a traição aos olhos da humanidade. É colocar um marido, no seu primeiro dia de felicidade, na dolorosa alternativa do divórcio ou da resignação com os ossos da esposa que se lhe tinham perfidamente mostrado cobertos de túmidos rofegos e velas de mezena. Celibatários, ponde os vossos olhos nisto! Não vos caseis sem um atestado reconhecido da costureira da noiva. Um homem, que tem na fronte escrito o lema glorioso do seu destino, não deve casar-se com mulher-mirinae. As mulheres vestem de modo que falsificam o Evangelho. O marido não pode dizer da mulher: a carne da minha carne; metade é algodão em pasta.

domingo, 22 de julho de 2007

"O Papel da Moda" em papel

Até 28 de Julho, os interessados ainda podem viajar pelos percursos da moda se visitarem a exposição "O Papel da Moda através da História", em exibição no último piso do "El Corte Inglés", em Lisboa.
Particularidades desta exposição são: o facto de ela mostrar a moda feminina de quatro milénios, desde o Egipto faraónico; o pormenor de as indumentárias serem construídas em papel e igualarem o tamanho real; a associação que é possível ser feita entre moda e sociedade, entre moda e tempos da História; a presença de personagens históricas (rainha Santa Isabel e outras), de cenas saídas de quadros (das "Meninas", de Velázquez, por exemplo), de muitas latitudes (Egipto, Inglaterra, França, Espanha, Itália, etc.), de personagens incontornáveis no mundo da moda (Chanel, Dior, Ricci, Ruiz de la Prada, entre outras).
Por aqui passa aquilo que seria o "glamour" de cada época. E por aqui passam também algumas referências a especificidades portuguesas: é sumptuosa a encenação do Marquês de Pombal com as suas acompanhantes, em tons de azul, usando vestimentas que reproduzem azulejos; é surpreendente o último quadro da exposição, que retrata o trajo regional dos "Noivos de Viana do Castelo".
Cada figurino está acompanhado pela respectiva legenda, que o contextualiza na História. O visitante poderá ainda guardar como recordação um desdobrável que reproduz fotografias dos 80 modelos expostos. Segundo informação constante nas legendas e no desdobrável, a produção destes quadros deveu-se a uma "equipa de investigadores e de especialistas da área da moda", coordenada por Roberto Comas (70 anos, a trabalhar no"El Corte Inglés" desde os 15).

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Pagelas Setubalenses - 3

Ânforas do Sado
Setúbal não tem nenhuma Rua das Ânforas, mas a relação entre as ânforas e o peixe funcionou, nas margens do Sado, durante, pelo menos, quatro séculos. Hoje, a ânfora é a figura principal do logótipo do Agrupamento Vertical de Escolas Cetóbriga, com sede na Escola Básica de 2º e 3º Ciclos de Aranguez.
A tradição conserveira sadina justifica-se por condições locais de favor, como a riqueza piscícola do estuário e a qualidade do seu sal. Aqui se implantaram fábricas de preparados piscícolas, conforme pode ser observado nas salgadeiras ("cetárias") mostradas na Travessa Frei Gaspar (Setúbal) ou nas ruínas de Tróia ou em restos existentes na Comenda e no Creiro (Arrábida). De forma subsidiária prosperou também a olaria à custa da produção de ânforas para o transporte dos preparados de peixe.
Entre Alcácer do Sal e Setúbal, na margem direita do Sado, são conhecidas sete fábricas ligadas à produção anfórica. Saídas das olarias, as ânforas destinavam-se a ser enchidas com preparado de peixe. A temporada trazia à volta de 1890 barcos de pequena envergadura até Tróia ou cerca de 370 cargueiros de envergadura média, sabendo-se que tais embarcações podiam atingir os quarenta metros e transportar largas centenas de ânforas. O carregamento fazia assentar o pé da primeira camada de ânforas sobre estrutura adequada, alojando-se o pé das ânforas das camadas superiores nos espaços livres criados entre os colos de cada conjunto de quatro ânforas. Depois, era a viagem com destino a Roma, seguindo a rota mediterrânica.
DOUTROS TEMPOS: "A Sociedade Arqueológica Lusitana, organizada no ano de 1849, mandou fazer [em Tróia] algumas escavações, em resultado das quais se descobriram muitos vasos de diferentes formas e matérias, lâmpadas, ânforas, lacrimatórios, muitos fragmentos de louça, troços de coluna, instrumentos agrários, instrumentos de osso apropriados para o fabrico de redes, pedaços de mosaico e restos de paredes de casas revestidas dele, salgadeiras, termas e mais de duzentas medalhas romanas e algumas de maior antiguidade.” (Manuel Maria Portela, Notícias dos Monumentos Nacionais e Edifícios e Lugares Notáveis do Concelho de Setúbal, 1882)