terça-feira, 21 de abril de 2020

Camus e o homem que contou a peste



“Na manhã do dia 16 de Abril, o doutor Bernard Rieux saiu do seu consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. Nesse momento, afastou o bicho sem lhe prestar atenção e desceu a escada.” Estamos num ano da década de 1940, na cidade argelina de Oran, no arranque da história que Albert Camus conta na obra A peste (Lisboa: Livros do Brasil), de 1947.
Quem relata a acção vive na cidade e é muito próximo do médico Rieux e dos seus amigos, não se envolvendo nos casos apresentados. Percebe o leitor, no final, se o não suspeitou ao longo do romance, que o cronista é o mesmo Rieux, que “quis tomar o tom de testemunha objectiva” ao longo do relato.
Tudo acontece em dez meses, período que levou a cidade, dominada pela peste bubónica, ao isolamento, vidas fortemente condicionadas, um quase estado de sítio - as personagens “experimentavam assim o sofrimento profundo de todos os prisioneiros e de todos os exilados que vivem com uma memória que não serve para nada”, num espaço confinado que, “se era o exílio, na maior parte dos casos era o exílio em casa.” A Rieux, pela profissão que exercia, não lhe restou “senão conhecer o exílio de toda a gente”: o tempo da diferença - cortejos fúnebres suprimidos, desorganização da “vida económica e número considerável de desempregados”, relações sociais reduzidas ao impensável, derrota das crenças e das súplicas, choros e pesares sem fim, ausência de futuro, a condição humana. Num mundo em desmoronamento, Tarrou, amigo de Rieux (e que com ele agiria na assistência à comunidade), questiona o médico sobre o sentido da sua profissão - a resposta tem a humildade e a simplicidade do tamanho do ser humano: “Não sei o que me espera nem o que há de vir depois de tudo isto. Para já, há doentes e é preciso curá-los. Defendo-os como posso, aí está.”
Bem próximo do final, há personagens que discutem a mudança pós-flagelo, ficando-se pela incógnita: “O mais forte desejo dos nossos concidadãos era e seria fazer como se nada tivesse mudado - nada, em certo sentido, seria mudado, mas, noutro sentido, não se pode esquecer tudo e a peste deixaria vestígios, pelo menos nos corações.”
Camus viveu em Oran (de onde era sua mulher) entre 1941 e 1942. Depois, regressou a França, para território que seria ocupado pelos invasores alemães. “A peste”, relatando uma epidemia que não aconteceu, é uma reflexão sobre o Mal (que ninguém está preparado para receber), uma alegoria sobre o crescimento e efeitos do nazismo. Por isso, Rieux (que acudiu à sua comunidade e perdeu os mais próximos), perante a alegria dos conterrâneos aquando do fim da peste (equivalente ao período da libertação), que podia ser ameaçada, pensa, a fechar o livro: “o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos lenços e na papelada” e poderia vir “talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”
"500 Palavras", in O Setubalense: nº 376, 2020-04-17

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Memória: Nicolau da Claudina (1933-2020)



Acabei de saber há minutos e as saudades não se fizeram esperar. O amigo Nicolau da Claudina, que conheci há muitos anos, partiu. Como disse a quem me deu a notícia, ainda no fim de semana pensei em telefonar-lhe para conversar com ele e para resolver uma dúvida relacionada com Sebastião da Gama. Já não vai haver essa conversa... a vida é assim!
O meu contacto mais próximo com Nicolau da Claudina aconteceu por causa de Sebastião da Gama, na Associação Cultural Sebastião da Gama, muito embora a amizade já viesse de tempos anteriores. Sempre me impressionou este homem. Pelas memórias, pelos saberes, pela disponibilidade, pelo sentido de humor, pela partilha, pela sua sensibilidade em ser elemento de aproximação.
O movimento associativo de Setúbal e de Palmela muito devem a este homem que, na sua ânsia de saber mais, não hesitava em participar, em contar, em se aproximar com o ar da curiosidade permanente. Várias vezes me disse que o exemplo do seu professor Sebastião da Gama o tinha mudado, pois, caso contrário... Vi-o emocionar-se, chorar, quando falava dos ensinamentos e das vivências que teve com aquele professor - testemunhava sobre ele como se o último encontro entre os dois tivesse acontecido umas semanas antes, tão presentes eram a descrição dos gestos, as palavras, o calor da recordação. Só guardo boas recordações do Nicolau da Claudina. Muito boas. E essas continuarão enquanto a memória viver. Obrigado, Nicolau!
Na foto: Nicolau da Claudina, em Azeitão, na inauguração do monumento a Sebastião da Gama (2007-06-09)

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Guias para o jardim da Arrábida



A Arrábida provoca o deslumbramento com a tela da serra, como provam dois roteiros de ajuda: o primeiro, Flores da Arrábida - Guia de Campo, de José Gomes Pedro e Isabel Silva Santos (Assírio & Alvim, 2010), com primeira edição em 1998, a tempo da Expo-98, caracterizando 200 flores, traçando um retrato do habitat que a Arrábida constitui, e completando-se com esclarecedor glossário técnico e índices por nomes científicos e por nomes vulgares atribuídos às plantas; o segundo, Flora da Arrábida e Espichel - Guia de Campo, de Francisco Luís Rasteiro (Núcleo de Espeleologia da Costa Azul, 2019), que identifica 633 espécies vegetais da serra, “resultado de quinze anos de registos fotográficos” e de pesquisa botânica de três anos, apresentando igualmente índices por família e pelo nome científico.
As duas obras são interessantes pela recolha, pelo cuidado científico (descrição das formas florais, das folhas, das inflorescências, das características eco-fenológicas), pela intenção pedagógica (recomendações e conselhos sobre o uso das plantas) e pelo apontamento fotográfico de todas as plantas referidas.
Passeie o viajante na Arrábida com os guias na mão que vai descobrir muito. Por exemplo, plantas fortemente ligadas à serra - por serem endémicas, umas; por estarem ligadas a características que marcam a cultura local, outras, como o “carrasco” (hospedeiro da grã, que produz a tinta escarlate já conhecida pelos Romanos), o “cardo-do-coalho” (indispensável para o fabrico do queijo) ou a “murta” (importante para o licor arrabidino).
Mas também pode o leitor descobrir nestes guias um mundo de associações... As designações vulgares atribuídas às plantas, talvez derivadas do poder sugestivo que estas apresentam, dão interessante percurso pelo poder metafórico da linguagem. Nessas classificações, os nomes de animais ou de partes do corpo animal são frequentes, como se pode ver nos casos de: “abelhinhas” (ou “quilhão-de-galo”), “arrebenta-boi” (ou “uva-de-cão”), “barba-de-falcão”, “boca-de-lobo”, “corno-de-veado”, “cristas-de-galo” (ou “calças-de-cuco”), “erva-abelha”, “erva-borboleta”, “erva-carapau”, “erva-das-pulgas”, “erva-percevejo”, “erva-vespa”, “flor-dos-macaquinhos” (ou “flor-dos-rapazinhos”), “flor-dos-passarinhos”, “focinho-de-rato”, “língua-de-cão” (ou “orelha-de-lebre”), “língua-de-ovelha”, “olho-de-mocho”, “pé-de-burro”, “pé-de-corvo”, “pé-de-galinha”, “rabo-de-cão”, “rabo-de-lebre”, “rabo-de-raposa”, “testículo-de-cão” e “tripa-de-ovelha”. Outros nomes, com cariz mais poético, também devem ser lembrados: “beijos-de-estudante”, “bela-luz”, “bons-dias”, “cardo-beija-na-mão” ou “saudades”. A imagem fradesca igualmente perpassa pela terminologia em casos como “capuz-de-frade” e “orelha-de-monge”, ainda que esta também surja conhecida por outra designação muito pouco conventual como seja “umbigo-de-vénus”, em todo o caso uma imagem bem mais reservada do que a sugerida por “dama-nua”...
As flores povoam frequentemente a literatura e, apesar de a escolha quase não ter limites, há duas a não esquecer: a “bonina” (ou “margarida”), imagem que Camões escolheu para lembrar a face de Inês de Castro, e a “esteva”, que titulou em 2004 obra póstuma de Sebastião da Gama, que bem recheou de flores arrábidas a sua poesia.
A quantidade de flores e de plantas que vivem na Arrábida bem teria ali justificado um passeio da deusa Flora e do seu apaixonado Zéfiro pelo deslumbramento entre o casal e pelo encanto da Natureza... Na dúvida se eles por ali terão passado, façamos nós essa incursão, mesmo que através da leitura...
in O Setubalense: 2020-04-08

segunda-feira, 30 de março de 2020

Fotografias para viajar no passado - Setúbal na série "Memória de Portugal"



O fascínio das fotografias a preto e branco advém de, imediatamente, sermos transportados ao passado, numa viagem pelo tempo que suscita a comparação das épocas, das paisagens, das vidas, das pessoas. “Memória de Portugal - Dois séculos de fotografia” (Atlântico Press, 2020) é colecção de trinta títulos que tem como parceiros a Torre do Tombo, o Centro Português de Fotografia e a Visapress e acompanha as publicações Correio da Manhã e Sábado. Organizada tematicamente, é caucionada pelos trabalhos dos mais conhecidos fotógrafos portugueses, como Américo Ribeiro (1906-1992), António Passaporte (1901-1983), Artur Pastor (1922-1999), Augusto Cabrita (1923-1993), Aurélio Paz dos Reis (1862-1931), Emílio Biel (1838-1915), Joshua Benoliel (1873-1932), entre outros, ou marcas como a Fotografia Alvão ou Estúdio Horácio Novais, por exemplo. As fotografias apresentadas nos vários volumes vivem pelo que mostram, sendo acompanhadas de legenda que tem como função principal completar a informação prestada no corpo de texto do livro.
Publicados os primeiros dez volumes, Setúbal surge em quatro deles. No título inaugurador, Grandes Tradições, com texto de Helena Viegas, a mostra incide sobre festas religiosas ou cíclicas, costumes ou rituais, havendo lugar para uma fotografia da colecção de Américo Ribeiro sobre a procissão do “Enterro do Senhor”, em Sexta-Feira Santa, em Setúbal. 
No volume Praias e Turismo, de Filipe Garcia, há referência às praias da Arrábida e de Tróia, que tiveram crescimento, respectivamente, a partir das décadas de 1930 (pela criação de uma estalagem no forte, devida ao pai do poeta Sebastião da Gama) e de 1950 (pela facilidade crescente na travessia do Sado e pela influência do complexo turístico instalado em Tróia a partir de final dos anos 60). A Costa da Caparica merece também alusão como alternativa de praia para os lisboetas, sobretudo a partir de 1925, quando foi considerada estância turística. Do mesmo autor é o título Vida familiar, que apresenta a evolução das casas e dos bairros familiares no país, mostrando que, em 1911, Setúbal e mais sete distritos do litoral concentravam já 53% da população portuguesa e que, a partir de 1930, o programa de Casas Económicas foi alargado a várias cidades “onde a indústria conserveira era mais expressiva”, como, por exemplo, Setúbal. Neste volume, há ainda uma fotografia do depósito setubalense da CUF, “ao estilo das chamadas drogarias”, devida ao Estúdio Horácio Novais.
Desporto, assinado por Francisco Pinheiro, relata uma história da prática desportiva em Portugal. O crescimento da popularidade das várias modalidades permite também ver que, durante décadas, o desporto foi dominado pela figura masculina, registando-se como uma das excepções o caso da setubalense Oceana Zarco (1911-2008), “famosa desportista” e “pioneira do ciclismo feminino em Portugal”.
É evidente que quase todos os outros volumes poderiam ter referências a Setúbal. No entanto, tendo em vista os propósitos da colecção - evidenciar o testemunho fotográfico -, mesmo nos títulos em que a região está ausente cabe ao leitor ver que relações temos com os outros ou que marcas existem por cá daquilo que é mostrado. O retrato final é bom, pelo contributo para a arte fotográfica, pelas marcas de identidade que revelam muito daquilo que temos sido. Ficamos a conhecer-nos um pouco melhor!

Na rubrica "500 Palavras", em O Setubalense, hoje

segunda-feira, 23 de março de 2020

Cartas que Miguel Torga recebeu


Cartas para Miguel Torga, organizado por Carlos Mendes de Sousa (Publicações Dom Quixote, 2020), foi o livro que preencheu a crónica "500 Palavras" publicada n'O Setubalense de hoje. Um livro a ler: por quem gosta de Torga, por quem gosta de literatura portuguesa, por quem gosta de cartas.


sábado, 21 de março de 2020

Neste Dia Mundial da Poesia...


... dois poemas de que gosto muito: "As mãos", de Manuel Alegre, e "O sonho", de Sebastião da Gama, um e outro autor incontornáveis, um e outro poema igualmente incontornáveis. Dois grandes momentos da poesia portuguesa do século XX, que continuam a cumprir-se, que têm de continuar a cumprir-se!





sexta-feira, 20 de março de 2020

Vivências de Zeca Afonso em Setúbal


As ligações de José Afonso à cidade do Sado estão registadas por Albérico Afonso costa em livro publicado há poucos meses - Lugares de José Afonso na geografia de Setúbal (Associação José Afonso, 2019). É um roteiro sobre o Zeca em Setúbal, é verdade; mas é, sobretudo, uma evocação do artista e do cidadão, que vale a pena ler.
Iniciei a rubrica "500 Palavras" no jornal O Setubalense com esse livro (edição de 16 de Março), crónica que aqui reproduzo.




quinta-feira, 5 de março de 2020

Frei Agostinho da Cruz no Museu do Oriente



Acção integrada nas comemorações dos 480 anos do nascimento e nos 400 anos da morte de Frei Agostinho, que se concluirão em Maio, integra contributos provenientes de diversos depositários e constitui oportunidade única para um olhar sobre Frei Agostinho da Cruz e a espiritualidade arrábida. Serve de convite!

domingo, 5 de janeiro de 2020

Papa Francisco e o significado do presépio



No primeiro dia de Dezembro de 2019, o Papa Francisco datava, em Greccio, a sua carta apostólica O Sinal Admirável (Lisboa: Paulinas, 2019), um texto “sobre o significado e o valor do presépio”. Poucos dias antes, Francisco tinha anunciado a deslocação: “Irei a Greccio para rezar no lugar do primeiro presépio que fez São Francisco de Assis e enviar a todo o povo fiel uma carta para entender o significado do presépio". E foi ali, na região em que, em 1223, Francisco de Assis fez a primeira reconstrução do nascimento de Cristo, a cerca de uma centena de quilómetros de Roma, no santuário franciscano, que Francisco revelou ao mundo a sua leitura sobre o presépio.
A comunicação é de uma simplicidade impressionante, oscilando entre a memória e a pedagogia, mostrando o presépio como desafio para a sociedade de hoje. Num cenário envolvido pelo silêncio, o presépio é apresentado como “um apelo para seguirmos pelo caminho da humildade, da pobreza, do despojamento” e cada um dos sinais presentes no quadro merece a interpretação papal, quase num efeito de “zoom” que se vai dirigindo do mais geral para o mais particular: o céu estrelado e o silêncio para a procura de respostas “às questões decisivas sobre o sentido da nossa existência”; o contraste das representações de casas ou palácios em ruínas, marcas de decadência, com a “novidade” da mensagem natalícia da reconstrução do mundo e da vida; “as montanhas, os riachos, as ovelhas e os pastores”, representações de uma criação participante; todas as outras figuras simbólicas que cada um carrega para o “seu” presépio, demonstrando um caminho de simplicidade, de mistério e dando a entender que, “neste mundo novo inaugurado por Jesus, há espaço para tudo o que é humano e para toda a criatura”; finalmente, as imagens da gruta - Maria contemplativa e apelativa, José guardião, o Menino sorridente e de mãos estendidas para ser recebido - e as dos magos, vindos de longe na sua “sede de infinito” para representarem a alegoria das ofertas, que simbolizam a realeza, a divindade e a humanidade de Jesus.
O retrato apresentado cruza-se com as fases da vida de cada um e com o entusiasmo da infância em torno do presépio ou com o gesto de, continuamente, se armar esse mesmo presépio. E é já próximo do fim que Francisco afirma: “Não é importante a forma como se arma o Presépio; pode ser sempre igual ou modificá-lo cada ano. O que conta é que fale à nossa vida.” Ligando esta força à manifestação da fé, o Papa deixa aqui o desafio mais interessante que nos é feito por esta recriação que não abandonamos e que, iniciada por Francisco de Assis, traz um pouco dos livros sagrados para o ambiente que fazemos e construímos em cada dia.
Esta ideia do silêncio e da reconstrução a partir das imagens que fazem o presépio encontramo-la também no texto de José Tolentino Mendonça “O burro do presépio e todos os outros”, publicado recentemente na revista do semanário Expresso (nº 2454, 9.Novembro.2019). Depois de lembrar vários episódios sobre a importância do burro na história humana, o cronista chega às 163 vezes que o burro é mencionado na Bíblia (das 3594 referências a animais que ela contém) para chamar a atenção para o seu papel no quadro representativo do Natal: “O burro do presépio sempre me comoveu. (...) O mais natural é que se tratasse de um dos asnos anónimos do acampamento dos pastores e que escutou, ao mesmo tempo que eles, o pregão feito pelos anjos (...). Provavelmente, começou apenas por acompanhar a excitação dos pastores (...). Mas, depois, ele próprio se apercebeu de que no chão, diante das suas patas, surgia o rasto luminoso de uma estrela que o chamava. (...) Quando os pastores chegaram à visão do recém-nascido, ele já lá estava, como uma figura do presépio, (...) deitado por terra, protegendo com o calor do próprio pêlo a jovem parturiente e aquele filho. Os seus olhos grandes não se afastavam do pequenino, nem um segundo. E extasiados assistiam ao recomeçar do mundo.”
É neste final de contemplação e de fascínio perante o recomeço que o texto de Tolentino Mendonça vai ao encontro da carta do Papa Francisco, quando nos convida à reconstrução sobre a simplicidade. Uma e outra leitura constituem dois bons momentos de reflexão sobre o sentido do presépio, o tal “sinal admirável” que nos é oferecido para que a vida seja sempre um espaço e um tempo de encontro.