quinta-feira, 3 de julho de 2025

Mané Gomes: o diário da Presidente da Junta

 

 

Em férias, em “La Serenissima”, uma chamada sobre o que se estaria a passar na Lagoa de Albufeira. “E lá ouvi a história e a preocupação da senhora, as suas opiniões ‘técnicas’ sobre a abertura da Lagoa, como era nos anos 80, etc. (...) Estive a elencar tudo o que foi e está a ser feito, as manifestações, reivindicações, propostas de futuro, etc. (...) O nome deste livro não podia ser mais adequado!” Este é o fim do registo de 4 de Agosto de 2024 do diário que Mané Gomes resolveu partilhar com os leitores, Sei que estás de férias mas... (ed. Autor, 2025). Como subtítulo, explica-se: “diário de uma inexperiente Presidente de Junta de Freguesia”, no caso, da freguesia do Castelo (Sesimbra), percurso de 365 dias, entre 29 de Agosto de 2023 e 27 de Agosto seguinte. No entanto, a “inexperiência” é apenas uma forma de dizer “aprendizagem”, assumindo a autora integrar ao longo do livro “160 conselhos para autarcas”, resultantes da sua experiência e ajustados a situações com que se deparou (e que surgem relatadas).

Quando Mané Gomes inicia o diário, já vai a meio do seu segundo mandato como presidente da Junta, tempo que lhe possibilitou olhar de forma crítica quanto ao que é exigido, quanto ao empenho e quanto ao que também é esperado pela sociedade. Logo na introdução, a justificação para esta partilha parece clara: “Precisava de escrever este livro. ‘Exorcizar’, como costumo dizer, as aventuras e desventuras da vida de autarca. Vida para a qual não me preparei e por que nunca pensei vir a enveredar.” Depois, enuncia três propósitos: o contributo desta escrita para o seu próprio desempenho, a intenção de o livro poder ser um guia “para aqueles que nestas tarefas se poderão sentir sozinhos e abandonados” e o carácter de homenagem a todos os que acompanharam o percurso.

Neste ano de registos, o leitor assiste, sobretudo, à acção decorrente da função que a autora desempenha, ainda que haja espaços para falar, de forma discreta, da família (a perda da mãe, o acompanhamento ao pai, as relações no núcleo familiar), dos gostos pessoais (rádio, teatro, desenvolvimento turístico, artesanato, actividades caseiras), das convicções religiosas e dos amigos (com a preocupação de, relativamente a muitos deles, registar os seus nomes, em jeito de tributo justificado).

Valores como o respeito pela tradição (nas festas e nos costumes), o “marketing territorial” local, a apropriação do espaço público pelos fregueses (com o que isso implica de cuidado e responsabilidade), a construção de pontes no auxílio à resolução de problemas ou à concretização de sonhos (mesmo sabendo que “gerir sonhos é uma matéria sensível”), o trabalho com os outros, a presença do político junto das pessoas ou a solidariedade vão passando, sobretudo nos momentos em que a escrita mais resvala para a reflexão sobre o acontecido.

Assumindo o cargo como uma opção pessoal, sem ignorar o efeito sobre os seus mais próximos, Mané Gomes sente o percurso com oscilações, ora pelo entusiasmo das pessoas quando lhe chamam “presidente do povo” ou estão disponíveis para colaborar, ora pela incompreensão presente em muitas críticas que circulam sobretudo nas redes sociais (por vezes, sob anonimato) ou em atitudes menos correctas que pretendem desvalorizar o trabalho da equipa (por maledicência ou por dificuldade em aceitar um “não” como resposta).

‘Fazer’, ‘realizar’ e ‘acontecer’ são verbos que se adequam aos dias relatados, independentemente de a tarefa ser a solo ou com outros agentes (a equipa da Junta, o movimento associativo, cidadãos isoladamente). Daí também as considerações mais críticas quanto à eficácia de grande parte das reuniões, sobretudo aquelas que vivem do jogo político — depois de uma Assembleia de Freguesia: “Parece tiro ao alvo: a pessoa faz tudo pelo melhor, pela legalidade, com a preocupação de não falhar e ser transparente e depois vêm perguntas que não lembram ao diabo, das situações mais caricatas ou que já explicámos trinta vezes. Faz parte. Segundo me dizem, é política.” Daí também igual dose crítica quanto aos políticos que só se apresentam em tempos de conveniência eleitoral (numa procissão religiosa local, em 2024: “Este ano éramos só quatro autarcas. Para o ano, eleições... Vamos ter de tirar senha! Aparecem os atuais, os candidatos e sei lá mais quem!”), desejosos de serem fotografados e de ocuparem os lugares mais visíveis (“Cada vez importo-me menos se fico à frente para a foto. (...) ESTAR PRESENTE. Está em maiúsculas pois não basta aparecer, tirar uma foto, engolir um pau de vassoura para aparecer e dar uns sorrisos.”).

Publicar um diário como este quando ainda se está a exercer a função que o originou, implicando considerável grau de exposição, vale pelo desprendimento e pela necessidade de haver a voz de quem está do lado de lá, mostrando o esforço, o feito, as reacções, as dificuldades e a continuidade da acção. Assim contadas as coisas, esta partilha pode tornar-se aprendizagem de tolerância e consciência dos processos, muito embora a diarista não ignore os riscos, como confessa, com certo humor, quando o diário ainda vai a pouco mais de meio — “Tenho a leve impressão de que este livro dará origem a um sem-número de crónicas e ‘posts’ para sanguessugas... é só um palpite. Mas, como me considero uma empreendedora, sempre dou trabalho e inspiro outros!!!” Por inspiração... em tempos de eleições, a atenção aos “160 conselhos para autarcas” pode ser uma boa prática formativa, sobretudo se cada conselho for acompanhado da leitura do relato que o motivou...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1562, 2025-07-02, pg. 10.