Escolheu a Associação da Casa da Poesia de Setúbal, para celebrar na sua antologia deste ano, o centenário de Sebastião da Gama (1924 - 1952), poeta inspirador, figura maior da sua geração, responsável por confirmar a Arrábida como motivo da tradição literária portuguesa, intitulando-a Entre a Poesia e a Vida - No Centenário de Sebastião da Gama.
A sua vida foi longa e intensamente vivida no muito curto espaço de tempo em que por cá andou, 27 anos de fulgor e de entusiasmo, de amizades e de aprendizagens, de poesia e de ensinamentos, de dor e de esperança, de amor e de contemplação do outro na Natureza. Conhece-se-lhe um poema de construção escolar em torno dos reis de Portugal, escrito aos 10 anos, que ele não esqueceu no seu Diário, para balizar o tempo em que vibrava com as aventuras do Texas Jack: “Já tinha escrito os primeiros versos — uma história de Portugal — porque isso foi aos dez anos.” E o texto literário que se segue no seu trajecto de poeta, cinco anos depois, quando andava pelos 15, é uma composição sobre o amor, produzida num soneto (como se fosse a tipologia de escrita mais fácil de praticar...), modalidade que não vai largar no ano seguinte.
Para espanto nosso, também a Arrábida é linha do seu pensamento logo no segundo poema de 1939 e, quando já ia nos 17, chama para os seus escritos aquele que há-de ser o companheiro de pensamento na forma de escrever a Serra e a sua comoção, Frei Agostinho da Cruz — num poema, de Novembro de 1941, ao contemplar determinado recanto arrábido, confessa: “Enorme solidão, que Agostinho / em versos encantados soube pôr, // mas eu, que ao pé do frade sou a luz / pálida duma vela ao pé do Sol, / não ouso descrever, não sou capaz.” Uma simplicidade e uma vontade de descobrir que nos perturbam, sobretudo se pensarmos estar perante o poeta que tratou elementos vários da Natureza e do Universo como se fossem os seus companheiros, a sua rede de ligações, grafando os seus nomes com maiúscula — o Sol, a Lua, a Serra, o Mar, o Vento, a Noite, o Silêncio, o Céu... —, e que foi o criador de umas míticas figuras da região arrábida, as “Arrabídeas”, figuras inspiradoras — “Ai, Arrabídeas, que andais no Mar! / Ai, Arrabídeas, que me embalais! / Ai, Arrabídeas, que, pelo Luar, / peitos nuzinhos a rebrilhar, / dizeis os versos, versos ditais, / que à minha amada hei-de cantar.”
No seu percurso, Sebastião da Gama foi aprimorando o seu dizer, senhor que era de intensas leituras e de trocas de correspondência com outros poetas, criador que desejava saber o que da sua escrita pensavam os outros, venerador de mestres da poesia, descobrindo Deus através do fulgor da palavra, elemento que lhe garantia o recolhimento necessário para a demanda.
O seu itinerário de escrita passou pelos livros — três publicados em vida e sete póstumos —, pela colaboração em diversas publicações culturais e em vários jornais regionais, pela partilha de poemas com os amigos, pondo sempre um exigente espírito crítico no que produzia e seleccionava para publicar, muitas vezes com hesitações — o primeiro conjunto de poemas albergados sob o título de Serra-Mãe, que seria o livro, data de 1943; no entanto, em 1945, quando o título saiu, nenhum dos poemas coligidos dois anos antes nele figurou. Mais: ficaram inéditos na sua quase totalidade.
Para a biografia literária de Sebastião da Gama, é necessário ler-lhe a obra, evidentemente, alicerçada na poesia, na diarística e na crónica, mas também na epistolografia, área em que, independentemente dos destinatários — e foram muitos —, perpassam os alicerces do que foi a sua arte poética, as convicções que enformam a sua escrita. E o leitor fica sempre fascinado com versos que suportam um pensamento forte ou que se transformam na trave mestra do poema, não podendo ficar insensível a verdades como: “que de coisas bonitas tem a Vida!”, “olhar para tudo com uma alegria tão grande”, “o canto venceu a morte”, “as coisas são belas como são”, “não quero senão risos nos teus olhos”, “da minha ilha vê-se o mundo”, “morrem os poetas mas o canto fica”, “nascemos em cada rio que nasce”, “todo o tempo é o tempo das flores” ou “estes versos e outros quase verdadeiros”, versos escolhidos ao sabor da leitura, um quase decálogo por que o poeta se orienta.
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1305, 2024-05-22, pg. 9