A narrativa que passa neste A mãe e o crocodilo, de José Gardeazabal (Companhia das Letras, 2023), surge de sobreposição de histórias, nem sempre precisas, de associações de ideias que levam a um contínuo questionar (não por acaso, a pergunta “porquê”, em alemão “warum”, vai surgindo ao leitor com frequência), num jogo entre personagens que nem sempre convergem mas que se conhecem, em espaços em que se evidencia a transição histórica - “A minha cidade descansa a um canto da Europa, indecisa entre três países diferentes. Os edifícios públicos já pertenceram a quatro ou cinco nações inimigas. Nem eu nem ninguém fala a língua dos nossos avós. (...) Não somos do Leste, o Leste já não existe, somos do ex-Leste. Somos ex-fascistas e ex-comunistas, por esta ordem, somos a Europa dos ex. Pena não sermos um país surrealista, divertíamo-nos mais. Estamos no meio da Europa, há Europa por toda a parte, não temos saída. Deviam chamar-nos O Meio, O Meio da Europa.”
Com tal definição geográfica, histórica e social, percebe-se a pertinência da questão da identidade, linha maior deste percurso da personagem Vladimir, que busca permanentemente a sua identidade, descoberta que se vai construindo como se de um jogo se tratasse - na Europa Central, com a família reduzida à mãe, que apaga deliberadamente a história do pai, trabalhando na reciclagem, vivendo na rota de refugiados, abrigando-se numa subcave partilhada com um crocodilo...
Vladimir é um eu questionador, pouco conformado com a sua situação, alimentando sonhos de poder entrar na Alemanha, de poder melhorar a vida, de poder esquecer pesadelos do desconhecido, de poder amar, agindo numa história que poderia assentar em três momentos - a vida antes da chegada de Noor, a relação com Noor, a ausência de Noor.
Na primeira parte, a personagem fala de si e dos outros, num mundo amargo, refugiando-se em si e no seu divagar - “As minhas melhores amigas são palavras no vazio, digo-as de vez em quando, ninguém as ouve.” A vida reveste-se de crueza - “À minha volta, o aspeto do mundo diz-me que aqui se aprofundou uma maldade. (...) A vida arrastou o melhor de nós para o fundo, como num enterro, devagar.” O presente não se reconcilia com o passado - “Este era um lugar bonito no tempo da indústria e da tortura. Eram empregos, percebem?, com empregos não se brinca. Quem nos roubou a mina roubou-nos tudo. Sobram os edifícios fabris, altos e feios ao sol, foi o que ficou do materialismo histórico.” A quase totalidade das referências às personagens que convivem no mundo de Vladimir é constituída por pequenos apontamentos, relacionados com momentos e com o conhecimento resultante da convivência na fábrica de reciclagem, espaço de degradação, mais do que de transformação - “Muita coisa nos tem abandonado, mas não a reciclagem, a reciclagem chegou sem avisar e desde aí nunca mais parou. É uma coisa moral, a reciclagem, é coisa do lixo. (...) A reciclagem mudou-se para aqui fugida de um país rico onde poluía imenso, isso e a mão de obra. O preço da mão de obra, para sermos exatos. Para funcionar, a reciclagem precisa de salários baixos em quantidades insuportáveis para um país rico. Sem salários baixos nem subsídios, a reciclagem são só boas intenções.”
O segundo momento acontece com a chegada de Noor, refugiada vinda de Nazaré, sofrida no seu convívio com a morte, personagem por quem Vladimir se apaixona, num trajecto que quer partir do zero. Ambos a trabalharem na reciclagem, na primeira conversa, ambos assumem que não têm um passado - para Vladimir, “um passado é objeto pesado. O passado é casa roubada, é pai incógnito. Uma casa judia, depois fascista, finalmente comunista. A mesma casa a passar de mão em mão. O passado pode ser um assassino na família, pode ser uma vítima, as pessoas não precisam da verdade.” Noor, que deseja chegar a Paris para estudar, intervém na fábrica, levando à paragem do trabalho, na tentativa da existência de melhores condições, como intervém na vida de Vladimir.
Na terceira fase da história, Noor está presente apenas na lembrança do apaixonado - “Tocar, curar, transformar, assim lembrarei Noor, não esqueço”, afirmação que resume o papel daquela mulher, num segmento que prossegue com reminiscências que ecoam do poema “E depois do adeus”, de José Niza. Noor partilhou a sua história, o seu tempo, o seu ser, com Vladimir e partiu rumo ao cumprimento do sonho que alimentava. Desabafará ele consigo: “Obrigado, Al-Nazri. Pelo caminhar e pelo estarmos de pé, pelo abrir de olhos e o começar a ver. Teria sido divino cair, teria sido divino voar. Obrigado, Noor, pelo amor e pela verdade. Obrigado pela vida.”
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1188, 2023-11-16, pg. 9.
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