quarta-feira, 30 de junho de 2021

Matilde Rosa Araújo entre a verdade e a redenção (2)

 


O conto “História de um Cão” impressionou Sebastião da Gama, que, em 29 de Agosto de 1944, escreveu a Matilde Rosa Araújo a partir da Arrábida: “Vamos ao muito importante: ao que poderia encher dez folhas, se eu fosse exuberante e soubesse mais que ficar mudo e ajoelhado diante de uma coisa bela ou grande. Isto tudo é a propósito do Amor; do seu cão. Digo-lhe cá muito do fundo que o seu conto é simplesmente admirável; que me agradou tanto como um bom poema; e que deve fazer mais assim (...). Mais do que elogios, que em mim, por deficiência de expressão, ficam sempre curtos, lhe diria o ter eu chegado ao fim e ter voltado logo à primeira linha. É lindo, lindo, lindo...”

Este conto, protagonizado por um cão chamado “Amor”, em que a autora navega filosoficamente entre a subjugação e a liberdade, abriu o volume Estrada sem Nome com uma nota entre parênteses - “à maneira de prefácio”. Estranha forma de prefaciar um livro usando uma narrativa sem quaisquer outras considerações! Mas também subtil forma de chamar a atenção para o estatuto de genuinidade, de autenticidade e de humanidade que as personagens das várias histórias vão assumir!...

A gestação de Estrada sem Nome foi sendo acompanhada por Sebastião da Gama, que, em 3 de Abril de 1947, na proximidade da sua publicação, serenava a amiga Matilde: “Podes ter a certeza, mesmo contra a opinião dos senhores críticos que vão ler o teu livro, de que fizeste alguma coisa digna da tua alegria, e da minha como teu Amigo, e da minha como teu camarada de geração. (...) Esta carta, escrita à beira de o teu livro sair, é a minha saudação de Irmão, de Camarada, de Amigo, pela publicação do teu livro. É a minha alegria comovida por esse milagre: porque um primeiro livro, quando nele pusemos toda a nossa generosidade e toda a nossa alma, é um milagre. Fica a ser um marco da nossa vida, tão importante como dia do nosso nascimento, ou mais importante ainda. Irá regular, embora ultrapassado, toda a tua actividade futura. Que o público o acarinhe, se quiser, a esse irmão da Serra-Mãe. Por mim, abraço-o em ti, e desejo-lhe boa viagem.”

Duas semanas depois, em 19 de Abril, na entrevista ao Século Ilustrado, o subtítulo “Pequenas Histórias”, que acompanhava o livro, era justificado por Matilde Rosa Araújo: “São pequenas histórias que me vieram sem eu saber como e têm um aspecto quebradiço, que vai desiludir muita gente habituada a espinhas dorsais. (...) Histórias fortes? Não. Deixei a tendência das histórias fortes...” Com efeito, nove das dez histórias do livro são marcadas pela curta dimensão, exceptuando-se a que recebe título homónimo do livro, novela de 60 páginas premiada nos Jogos Florais Universitários de 1945.

A crítica publicada recebeu estas histórias de uma forma em que o entusiasmo e a reserva coabitavam - houve quem gostasse e quem não apreciasse a história do cão Amor, houve quem preferisse uns a outros contos, mas sobressaiu o reconhecimento de se estar perante uma autora de valor, ainda que no início do trajecto de escritora - “possui verdadeiro talento de composição de quadros humanos ou episódios e sabe infiltrar neles um veio lírico, emocionado, por vezes tocantemente simples, que revela o melhor da sua sensibilidade de mulher e de escritora”, dizia, na edição de Mundo Literário, de 1 de Maio de 1948, Álvaro Salema, crítico a quem o livro fora oferecido dias antes da recensão, em Abril.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 653, 2021-06-30, p. 9.


quinta-feira, 24 de junho de 2021

Matilde Rosa Araújo entre a verdade e a redenção (1)



Em 1943, surgia A Garrana, título de Matilde Rosa Araújo (1921-2010), primeiro prémio do concurso “Procura-se Novelista!”, organizado pelo “Século Ilustrado” e pelo Rádio Club Português, sob patrocínio do Grémio Nacional dos Editores e Livreiros. A história conta a vida solitária e desprezada de Garrana, mulher de um contrabandista, a quem retiraram os filhos depois de ter matado o marido, que, desesperado, quis morrer após ter levado um tiro na acção de contrabando a que se dedicava na zona raiana. Depois de cumprir a pena, voltou à aldeia, vivendo sozinha e ouvindo o insulto da criançada apelidando-a de “bruxa”, justamente a ela, que fora “a moça mais linda da terra”.

Matilde Rosa Araújo pensava na escrita jornalística para contar vidas, lá onde a narrativa literária e a reportagem se deixam contaminar. Com efeito, em 1946, concluía a tese de licenciatura em Letras sob o título A reportagem como género - Génese do jornalismo através do constante histórico-literário, trabalho que rompeu o horizonte de expectativas no meio jornalístico, como denotava o entusiasmo da primeira página do jornal República, em 28 de Julho de 1946, no seu longo título: “Caso raro - Pela primeira vez na nossa Faculdade de Letras se defende uma tese sobre reportagem e jornalismo e foi uma senhora que a defendeu, obtendo alta classificação”.

No ano seguinte, em 1947, Matilde publicaria Estrada sem nome (Portugália), conjunto de uma dezena de contos, em alguns deles retomando a vida da raia e do contrabando, em todos eles perpassando vidas difíceis resultantes de alterações das vidas das personagens.

O aparecimento de Estrada sem nome teve a necessária repercussão na imprensa, com Matilde Rosa Araújo a dizer o que entendia como sendo a missão da literatura. Foi no Século Ilustrado, de 19 de Abril de 1947, que o assunto veio à tona, naturalmente com referência ao tempo que se vivia, o pós-guerra, situação que passava por uma reaprendizagem do que era viver e para a qual a literatura deveria contribuir - “Neste rescaldo trágico da guerra, a literatura vai tomar o único rumo possível em arte: o da verdade! Verdade e redenção! E, para dar a verdade, não é preciso dizer: olhai! Basta estremecer com a brisa como a folha cansada.”

Na entrevista, Matilde avança com a sua (curta) experiência de escritora, assumindo-se como uma contadora de vidas: “O que me interessa é o lado fluido da vida no desejo intenso de a viver.” E, mais adiante: “Às vezes, vou na rua e uma vida toca-me como um chamamento. Passa um dia, depois esqueço. Mas outro dia vem em que a mesma vida fala dentro de mim e me faz contar.”

Logo após a conclusão da licenciatura, Matilde Rosa Araújo trabalhava já na organização de Estrada sem nome, que vinha a ser construído havia dois anos. Redacção de novos contos, publicação de alguns em revistas e hesitações na escolha de editor foram ocupando a jovem escritora de 25 anos.

Na Arrábida, Sebastião da Gama lia-a e aconselhava - foi ele um dos primeiros leitores dos contos deste livro, tal como percebemos em carta de 14 de Agosto de 1944 que Matilde escreve para a Arrábida - tinha acabado de publicar o conto “História de um cão”, o texto que abre Estrada sem nome, envia-o para Sebastião e pede: “Que acha? Seja sincero pois não há nada para nos ajudar a formar a nossa auto-opinião e formação como o juízo de pessoas literariamente conscientes. (...) Tenho mais novelas para publicar e não me esquecerei de si.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 648, 2021-06-23, p. 9.


segunda-feira, 21 de junho de 2021

Em Setúbal, a história do Vitória conta-se em murais...


Em Setúbal, a história do VFC (Vitória Futebol Club) é contada em murais do artista Ricardo Romero desde há dias. Embelezamento da construção, é verdade, mas também, e sobretudo, a identidade que tem feito a terra e o seu clube. Boa ideia! Valeria a pena ter havido legendas...















quarta-feira, 16 de junho de 2021

António Torrado, em histórias cúmplices


 

“Era uma vez...” um comboio, um risco, uma parede, um cacto, uma sílaba, um passaporte, um peregrino, um móvel, um sonho, um fio de luz, um repórter, um pinheiro. E assim podíamos ir juntando elementos, cada um deles dando origem a uma diferente narrativa, até perfazermos as sessenta histórias que compõem o livro Almanaque lacónico (Edições O Jornal), de António Torrado (1939-2021), ilustrado por Espiga Pinto, publicado em 1991.

O título logo nos conduz para dois vectores importantes: por um lado, a questão dos princípios essenciais; por outro, a concisão. De facto, António Torrado, que conhecia bem a obra queirosiana (para jovens e para o teatro adaptou alguns dos seus títulos), bem concordaria com o escrito de Eça datado de 1896: “O Almanaque contém essas verdades iniciais que a Humanidade necessita saber, e constantemente rememorar, para que a sua existência, entre uma Natureza que lhe não é benévola, se mantenha, se prossiga toleravelmente.” A esta característica, Torrado associou a brevidade na extensão das histórias, despertando a curiosidade do leitor pelo desenvolvimento de uma ideia que acaba por ficar mais pela sugestão, pela economia discursiva, para que o leitor navegue no que não é dito, assim reforçando com ele uma certa cumplicidade.

As histórias não têm título e todas começam por esse perscrutar de mistério dado pelo indicador temporal “era uma vez”, sendo depois apresentadas personagens - elementos do mundo das coisas (a maioria) ou representações humanas, sendo que, nas primeiras, raramente a identificação vai além do nome (frasco, duna, baluarte, corda, romance), enquanto nas segundas há necessidade de acrescentar modificador identitário (“homem que estava a urinar”, “homem que valia pouco”, “homem que ouvia foguetes”, “mulher que teve cinco filhos”, “criança particularmente dotada”).

Tão curtas histórias favorecem a prática aforística, preenchendo o espaço das explicações e demonstrações, desafiando o leitor para o conteúdo das tais “verdades iniciais” a que se referia Eça - “um pequeno risco pode transformar-se num grande risco, se não for apagado a tempo”, “aqueles que hoje cercam podem ser amanhã os cercados”, “as soluções de recurso são sempre ilusórias”, “as peças soltas da nossa vida nunca nos abandonam”, “não ser tomado a sério é uma das rubricas terminais na escala dos suplícios”.

Por estas histórias passam as referências que vão alimentando a humana forma de ser - o sonho, a ambição, a vaidade, o ilusório, a dúvida, o desgaste, o mistério, o amor, os dogmas, a fragilidade. Os enredos tecem-se de uma ironia requintada, muitas vezes formatados pelas histórias tradicionais e dominados pelo insólito das situações. São marcas destas que não deixam o leitor indiferente perante histórias como aquelas em que um escândalo é protagonista (levando a um suicídio a partir do 25º andar), em que Deus e um homem embatem num cruzamento (por desrespeito pela prioridade e numa explicação do destino), em que um robot trocou as asas por uma hélice (tendo um desfecho próximo do que sucedeu a Ícaro) ou em que uma menina perguntava aos burros que via se não seriam príncipes encantados (acabando por se inverter a sorte da pequena quanto ao encontro com um milagre).

Assim, Almanaque lacónico é constituído por histórias divertidas, curtas, intensas, na sua capacidade de desconstruírem ideias feitas, contribuindo para a descoberta de verdades que fazem a Humanidade.

OBS.: Há 20 anos, em Junho de 2001, integrando a Associação de Pais da Escola das Amoreiras, convidei António Torrado para vir à Escola. Foi uma sessão memorável de cumplicidade que criou com os alunos. Homenageá-lo é lembrá-lo e também continuar a ler as suas obras.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 643, 2021-06-16, p. 9


quarta-feira, 9 de junho de 2021

José-António Chocolate: A palavra como refúgio



“As palavras às vezes são incómodas, desvendam sentimentos, / tornam transparente o que nos vai na alma, como entrando / sem permissão pela fisga do olhar que se escapa / no contentamento vivido, duma memória que nos assalta / ladina e fresca, negando-se à clausura da solidão e do silêncio.” São cinco longos versos que abrem o poema “A força das palavras”, início do livro A Voz das Palavras, de José-António Chocolate (Filigrana Editora, 2020), conjunto de poemas em que a reflexão e a construção em torno da palavra se tornam preponderantes, numa tentativa de descoberta do valor que a palavra representa, num circuito de sete partes em que a primeira se cola ao título do livro e a última se apresenta como “Ofício de poeta”.

O fascínio da palavra é intenso na primeira parte da obra, assumindo-se nas variantes de escrita e caligrafia, de voz e som, de poema e afectos, num entrelaçar das formas de que a palavra se pode vestir, sempre numa demanda por onde passa a recusa do dúbio - “Procuro a magia da palavra que acalma, / desfaz os sons cinzentos trepidantes” - e a emergência da cor - “Um pincel e tinta tivesse e a mão / mestra a suave cor certa não falhasse, / e a palavra em movimento toda floria, / alegre e viva, a dar vida ao que fenece.”

Com a palavra constrói José-António Chocolate um acervo por onde passa uma diversidade de linhas de leitura e de motivações - o apelo do mar em versos ondulados pela cadência de sons nasais e tirando partido das aliterações, os momentos e as figuras familiares como pretexto, as tiradas repletas de ironia a partir de situações observadas, as geografias vividas e sentidas numa interiorização sem limite de tempo, o prazer dos instantes como resultado de um olhar reflexivo sobre a pintura de um objecto ou de um saborear lento das sensações, o recolhimento na procura de momentos de solidão e da memória, a imagem do mundo transportada para o interior da casa ou de um quarto, o poema como forma de contrariar a ausência.

Neste trajecto longo e diversificado, persistem as marcas do oficial que o poeta é, não escondendo o seu trabalho de revelação e de ocultação, duas faces que intensificam o mistério - “Procuro nas palavras a palavra certa, / a que falta descobrir para me descobrir, / a mim que me falta o arco e a seta / e o alvo que sou pretendo encobrir.” É neste jogo de procura que o poeta se confronta com os porquês da vida, dando a conhecer formas de operar e de ver o mundo - “os olhos não foram feitos só para olhar, / abertos parecem nada mais ver do que vêem / e fechados têm um mundo de memórias para visitar.”

A poesia resulta dos momentos de silêncio que o poeta requer para a sua oficina, descobrindo a voz das palavras, forma de rejeitar o vazio. E, por entre as revelações do seu fazer, impõe-se o valor dado à palavra - “São as palavras o refúgio do silêncio, / a fuga escrita tão por dentro / que a voz das palavras silencia, / aprisionando o medo.” A força da palavra reside, pois, na afirmação da liberdade e na valorização do essencial, em que o poeta surge “sem a roupagem dos dias que nos fazem”.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 639, 2021-06-09, p. 9


quarta-feira, 2 de junho de 2021

Sabia que, em Setúbal,...?


 

Quando o interlocutor ouve uma construção frásica do género “sabia que...?”, de imediato fica a saber que está perante um desafio retoricamente construído, cujo principal objectivo não é testar, antes incluir uma resposta na própria formulação, transmitindo-lhe um saber. Trata-se de uma pergunta que não inquieta, que contém em si a chave da solução, alimentando a curiosidade sobre as pequenas coisas, um género de jogo que leva o outro a sentir que descobre o que não sabia.

O título Sabia que...? - Notas históricas e curiosidades sobre o Concelho de Setúbal, editado no final de 2020 pela Câmara Municipal de Setúbal, faz esse convite ao leitor ao longo de uma centena de páginas, percorrendo mais de oito séculos de história local, em parágrafos curtos que são outras tantas continuações para a pergunta se concluir, em textos devidos a Horácio Pena e Vera Mariano e fotografias captadas por Mário Peneque, José Luís Costa e David Pereira.

A mais antiga referência datada é de 1217, tempo de pacificação e instalação da Ordem de Santiago a sul do Tejo que permitiu a fixação de populações, seguindo-se 1235, ano da “primeira referência documental a Setúbal, descrevendo-a como pequena aldeia de pescadores do termo de Palmela, à beira-Sado”. A mais recente é 10 de Outubro de 2020, dia em que “o Convento de Jesus, monumento que acolhe o Museu de Setúbal, reabriu ao público, depois de beneficiar de obras de restauro e renovação”.

Entre estas duas balizas, circulam muitos momentos que foram construindo a identidade setubalense, relacionados com as mais diversas áreas - trabalho, migrações, cultura, política, património, personalidades, religião, lazer, desporto, obras públicas, etc. Além do itinerário histórico através dos grandes e dos pequenos acontecimentos que têm edificado o concelho, pode o leitor satisfazer pequenas curiosidades - as portas quinhentistas na cidade, a origem do hospital João Palmeiro, a simbologia por trás da estátua de Frei Martinho no Convento da Arrábida, o início do equipamento vitoriano com a conjugação verde e branco, a identificação do primeiro setubalense que estudou na Universidade de Coimbra, o rol dos reis que passaram pelo concelho, a partida de Setúbal para a conquista de Alcácer Ceguer e muito mais.

As escolhas são interessantes, embora haja ausências injustificáveis - Sebastião da Gama tem direito à reprodução de um poema na badana da capa, mas não merece uma única referência na cronologia; de Frei Agostinho da Cruz, há três versos sobre o fulgor arrábido, mas o seu nome é também omitido no conjunto de perguntas. Em contrapartida, Luísa Todi tem a mesma história repetida duas vezes, em 1933 e em 1989, a propósito da construção e mudança da glorieta que a homenageia na avenida com o seu nome. Um ou outro critério careceria de ser mais cuidado - por exemplo, menciona-se o nome do escritor Andersen, que, em 1866, esteve em Setúbal e escreveu sobre esta visita, mas não se refere o nome da escocesa que, em 1775, passou em Setúbal e relatou “como ainda se encontrava a povoação vinte anos após o sismo de 1755”, Janet Schaw de sua graça; ou ainda o facto de, no início, ser anunciado um índice geral para o leitor facilmente encontrar “a notícia ou informação que pretender”, sendo que o índice é apenas cronológico, reduzido à indicação do início de cada século.

O livro vale, contudo, pelo que conta ou por tudo quanto nos leva a descobrir, tendo o mérito de apresentar de forma simples e rápida muitas peças do “puzzle” que se constrói com as histórias do local.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 635, 2021-06-02, p. 9.