segunda-feira, 1 de junho de 2015

Adolfo Casais Monteiro: (um)a certa ideia de Europa



O dia 23 de Maio de 1945, uma quarta-feira, tem um registo incerto na cronologia da II Grande Guerra: provavelmente, terá sido o dia em que Himmler, com 45 anos, poderoso do III Reich, chefe das SS e da Gestapo, se suicidou, num trajecto vertiginoso de final de uma época, depois que Hitler cometera o mesmo feito no derradeiro dia de Abril e, sobretudo, depois que a paz voltara à Europa a partir de 8 de Maio. Na capital portuguesa, o jornal Diário de Lisboa desse dia 23 (dir.: Joaquim Manso. Lisboa: nº 8078) mostrava na sexta página uma pequena nota em que referia: “A Europa, durante cinco anos, correu em busca de abrigo para as tormentas da sua dor. Para onde? Para onde houvesse indício de aquietação, ao menos para onde o cenário não fosse o mesmo. (…) Agora, passado o temporal, cada um tenta a viagem de regresso.” Era o regresso dos exilados, de volta à Europa-mãe, numa tentativa de reencontro e de reconstrução de um continente de paz.
Nesse mesmo dia 23 de Maio [passaram há pouco 70 anos], acontecia um evento que não consta nas cronologias da II Guerra Mundial e que envolveu portugueses: aos microfones da BBC, António Pedro lia o poema Europa, de Adolfo Casais Monteiro, texto que só viria a ser publicado no ano seguinte (1946) por responsabilidade da editora Confluência (com desenho de António Dacosta), ainda que com alterações. Por 1945, António Pedro era autor de palestras na BBC, em que não poupava o regime alemão. Em 16 de Novembro desse ano, em carta, Casais Monteiro anunciava ao palestrante da BBC: “desde que o ouvi ler a minha Europa tornou-se uma espécie de pesadelo; a pura verdade é esta: queria umas boas horas de cavaco consigo – e não tenho vontade de aqui estar a falar só” e, mais adiante, refere a publicação do poema, que lhe será oferecido, por ser “a mínima justiça que lhe posso fazer”. Com efeito, o livro abre com a dedicatória “Ao António Pedro, que foi na hora própria a voz de todos os Portugueses que não esqueceram a sua condição de Europeus e cidadãos do mundo”. De uma só vez, três linhas de orientação sobre o ser português – a memória, a condição europeia e a cidadania.
O poema seria publicado no início de 1946 e, da parte de José Régio, mereceu uma apreciação epistolográfica datada de 24 de Fevereiro, a partir de Portalegre: “De facto, penso que ele não vale – como arte – uma página dos Adolescentes [de 1945]. Já sei que esta minha opinião também o não surpreende. Mas não acho mal que Você o tenha escrito e publicado. A poesia desse género tem dois grandes perigos: o mero interesse de actualidade – e a quase irresistível tendência para se sobrepor à poesia – à verdadeira poesia – a declamação retórica. Mas o seu poemeto salva-se menos mal desses terríveis riscos pela vibração de sinceridade que o atravessa.”
Constituído por cinco partes, o poema apela para a existência de uma Europa civilizada, com identidade, a ser recriada, valorizadora do homem. Logo na primeira parte, a ideia é a do sonho de uma Europa humanizada, rejeitando o que tinha acontecido antes: “Tua grandeza a fizeram / os que nunca perguntaram / a raça por quem serviam. / (…) // Europa, ó mundo a criar! // Europa, ó sonho por vir / (…) / Europa, sonho incriado. / (…) /// Europa, tu virás só quando (…) / O homem que sonhaste, Europa, seja vida!” Depois deste desafio deixado na abertura do poema, há a contemplação adequada ao tempo histórico “de discursos, / florindo em chaga, em pus, em nojo / (…) de guerras de fronteiras”, para, a seguir, ser marcado o espírito de vigilância e ainda o receio: “Os que não morreram velam. // (…) / o medo ronda, / o ódio espreita.” E o poeta intervém, no seu momento, sentindo o desdém pela obra cometida, pela destruição conseguida, pela desumanidade: “Olho num pasmo sem limites, / e fico sem palavras, / na dor de serem homens que fizeram tudo isto”, sendo o pronome a moldura para um quadro de terror – “esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira, / esta lama de sangue e alma, / de coisa e ser”.
Tão intenso trajecto só poderia terminar em protesto, em compromisso contra a malícia e contra a desumanização. As exclamações e as perguntas retóricas ajudam a pensar, numa condução para o repúdio pela obra feita – “De que são feitos os homens / (…) / que matavam ou deixavam morrer homens aos milhões?” –, levando a uma conclusão inevitável, forte – “O homem não se há de submeter à / violência” –, e a uma proclamação – “Só o homem livre é digno de ser homem!”, máxima que fecha o grito escrito.
O poema afirma-se em forma de declaração de intenções, num acto compromissivo com a vida e com o futuro, na busca de um paraíso cultural e humanizado, sonhado, capaz de curar a Europa devastada e sofrida que sobrevivia. Como José Augusto Seabra reconheceu (“Um poema português para a Europa”, prefácio à edição de Europa, em 1991 – Porto: “Nova Renascença” / Europalia), este era um texto de “apelo à fraternidade”, mas também de “prevenção lúcida” aos povos, aos políticos e aos países no sentido de serem afirmados valores como “a liberdade, os direitos humanos, a solidariedade social”.
O que a Europa foi depois, o que a Europa é agora, até que ponto a marca emblemática apregoada por Casais Monteiro se configurou… essas são outras questões que vão além da literatura e, especialmente, da poesia!

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