O
dia 23 de Maio de 1945, uma quarta-feira, tem um registo incerto na cronologia
da II Grande Guerra: provavelmente, terá sido o dia em que Himmler, com 45
anos, poderoso do III Reich, chefe das SS e da Gestapo, se suicidou, num
trajecto vertiginoso de final de uma época, depois que Hitler cometera o mesmo
feito no derradeiro dia de Abril e, sobretudo, depois que a paz voltara à
Europa a partir de 8 de Maio. Na capital portuguesa, o jornal Diário de Lisboa desse dia 23 (dir.:
Joaquim Manso. Lisboa: nº 8078) mostrava na sexta página uma pequena nota em
que referia: “A Europa, durante cinco anos, correu em busca de abrigo para as
tormentas da sua dor. Para onde? Para onde houvesse indício de aquietação, ao
menos para onde o cenário não fosse o mesmo. (…) Agora, passado o temporal,
cada um tenta a viagem de regresso.” Era o regresso dos exilados, de volta à
Europa-mãe, numa tentativa de reencontro e de reconstrução de um continente de
paz.
Nesse
mesmo dia 23 de Maio [passaram há pouco 70 anos], acontecia um evento que não consta nas cronologias da II
Guerra Mundial e que envolveu portugueses: aos microfones da BBC, António Pedro
lia o poema Europa, de Adolfo Casais
Monteiro, texto que só viria a ser publicado no ano seguinte (1946) por
responsabilidade da editora Confluência (com desenho de António Dacosta), ainda
que com alterações. Por 1945, António Pedro era autor de palestras na BBC, em
que não poupava o regime alemão. Em 16 de Novembro desse ano, em carta, Casais
Monteiro anunciava ao palestrante da BBC: “desde que o ouvi ler a minha Europa tornou-se uma espécie de
pesadelo; a pura verdade é esta: queria umas boas horas de cavaco consigo – e
não tenho vontade de aqui estar a falar só” e, mais adiante, refere a
publicação do poema, que lhe será oferecido, por ser “a mínima justiça que lhe
posso fazer”. Com efeito, o livro abre com a dedicatória “Ao António Pedro, que
foi na hora própria a voz de todos os Portugueses que não esqueceram a sua
condição de Europeus e cidadãos do mundo”. De uma só vez, três linhas de
orientação sobre o ser português – a memória, a condição europeia e a cidadania.
O
poema seria publicado no início de 1946 e, da parte de José Régio, mereceu uma
apreciação epistolográfica datada de 24 de Fevereiro, a partir de Portalegre:
“De facto, penso que ele não vale – como arte – uma página dos Adolescentes [de 1945]. Já sei que esta
minha opinião também o não surpreende. Mas não acho mal que Você o tenha
escrito e publicado. A poesia desse género tem dois grandes perigos: o mero
interesse de actualidade – e a quase irresistível tendência para se sobrepor à
poesia – à verdadeira poesia – a declamação retórica. Mas o seu poemeto
salva-se menos mal desses terríveis riscos pela vibração de sinceridade que o
atravessa.”
Constituído
por cinco partes, o poema apela para a existência de uma Europa civilizada, com
identidade, a ser recriada, valorizadora do homem. Logo na primeira parte, a
ideia é a do sonho de uma Europa humanizada, rejeitando o que tinha acontecido
antes: “Tua grandeza a fizeram / os que nunca perguntaram / a raça por quem
serviam. / (…) // Europa, ó mundo a criar! // Europa, ó sonho por vir / (…) /
Europa, sonho incriado. / (…) /// Europa, tu virás só quando (…) / O homem que
sonhaste, Europa, seja vida!” Depois deste desafio deixado na abertura do
poema, há a contemplação adequada ao tempo histórico “de discursos, / florindo
em chaga, em pus, em nojo / (…) de guerras de fronteiras”, para, a seguir, ser
marcado o espírito de vigilância e ainda o receio: “Os que não morreram velam.
// (…) / o medo ronda, / o ódio espreita.” E o poeta intervém, no seu momento,
sentindo o desdém pela obra cometida, pela destruição conseguida, pela
desumanidade: “Olho num pasmo sem limites, / e fico sem palavras, / na dor de
serem homens que fizeram tudo isto”, sendo o pronome a moldura para um quadro
de terror – “esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira, / esta
lama de sangue e alma, / de coisa e ser”.
Tão
intenso trajecto só poderia terminar em protesto, em compromisso contra a
malícia e contra a desumanização. As exclamações e as perguntas retóricas
ajudam a pensar, numa condução para o repúdio pela obra feita – “De que são
feitos os homens / (…) / que matavam ou deixavam morrer homens aos milhões?” –,
levando a uma conclusão inevitável, forte – “O homem não se há de submeter à /
violência” –, e a uma proclamação – “Só o homem livre é digno de ser homem!”,
máxima que fecha o grito escrito.
O
poema afirma-se em forma de declaração de intenções, num acto compromissivo com
a vida e com o futuro, na busca de um paraíso cultural e humanizado, sonhado,
capaz de curar a Europa devastada e sofrida que sobrevivia. Como José Augusto
Seabra reconheceu (“Um poema português para a Europa”, prefácio à edição de Europa, em 1991 – Porto: “Nova
Renascença” / Europalia), este era um texto de “apelo à fraternidade”, mas
também de “prevenção lúcida” aos povos, aos políticos e aos países no sentido
de serem afirmados valores como “a liberdade, os direitos humanos, a
solidariedade social”.
O que a Europa foi depois, o que a Europa é agora, até
que ponto a marca emblemática apregoada por Casais Monteiro se configurou…
essas são outras questões que vão além da literatura e, especialmente, da
poesia!
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