Quando, em 1994, o escritor marroquino Tahar Ben Jelloun publicou L’homme rompu (Paris: Éditions du Seuil), fê-lo anteceder de uma nota explicativa em que dizia dever este romance ao escritor indonésio Pramoedya Ananta Toer (1925-2006), que, na altura, vivia sob vigilância em Jacarta, proibido de publicar, sob o regime de Suharto. Ben Jelloun quis visitá-lo, mas desistiu da ideia por tal gesto poder significar mais um problema para o escritor oriental. Assim, decidiu homenagear o seu companheiro com este romance, abordando o tema da corrupção, tão caro a Toer que já tinha publicado em 1950 um romance a que dera justamente o título de Corrupção.
O espaço escolhido por Ben Jelloun foi Marrocos, numa geografia centrada em Casablanca, com reminiscências de Fez; a personagem construída foi Mourad, engenheiro a trabalhar num Ministério do Equipamento, cuja assinatura era decisiva para a aprovação de projectos de construção. A acção é determinada pela constante pressão a que Mourad está sujeito: poderia viver bem melhor se alinhasse na assinatura de determinados projectos a troco de dinheiro, tal como acontecia com vários dos seus colegas. Não só essa pressão era evidente por parte do seu director e do seu adjunto (a ganhar bem menos do que ele, mas com um nível de vida muitíssimo superior), como era feita pela mulher de Mourad, Hlima, que sempre o desconsiderara por ele não entrar nesse jogo da corrupção, que seria a forma de a família poder viver melhor, pressões que o culpabilizam com o eufemismo de não se ter adaptado à vida moderna...
A característica de resistente que Mourad tinha acabou-se-lhe quando decidiu aceitar o primeiro envelope com uma quantia em dirhams bem atraente. E, depois, veio a segunda oferta, em dólares. Se, antes, era a luta de Mourad contra um sistema, agora passa a ser a luta de Mourad consigo mesmo, percurso explorado numa escrita em que a personagem monologa sobre si, sobre as relações sociais e sobre o mundo. O romance é o resultado dessa luta, o percurso que Mourad faz para se justificar e para, definitivamente, aceitar enveredar pelo caminho do pagamento dos favores.
Paralelamente, existe uma história de mulheres. Se as imagens sociais do seu director e do seu adjunto são beliscadas por, sendo chefes de família, se envolverem com raparigas de liceu, já Mourad resiste a essa prática (ele mesmo tem uma filha dessa idade), mas o seu percurso oscila entre três mulheres: a esposa, a prima Najia (viúva, atraente) e Nadia, a rapariga que conheceu numa das suas deambulações pela cidade. O romance é também esse percurso de afastamento relativamente a Hlima e de aproximação a Najia, numa rede em que também há a cultura dos afectos com Nadia.
Mourad vai-se encontrando, definindo, num gesto de entrada num mundo diverso do que sempre conheceu, por vezes reagindo sob a lembrança dos ensinamentos do pai, outras vezes hesitando porque à sua volta a corrupção alastra e é prática quotidiana. A finalizar a nota de abertura, que é também uma dedicatória para Ananta Toer, Ben Jelloun escreve: “L’histoire se passe au Maroc aujourd’hui. C’est pour lui dire que sous des ciels différents, à des milliers de kilomètres de distance, l’âme humaine, quand elle est rongée para la même misère, cède parfois aux mêmes démons. Cette histoire semblable et différente, localle et universelle, est ce qui nous rapproche, nous, écrivains du Sud, meme si ce Sud est à l’Est extrême.”
O leitor vai seguindo os debates interiores de Mourad sempre na expectativa do que poderá ser o seu destino: recuo na decisão, prisão ou assumida entrada no mundo da corrupção? A resposta é dada por uma personagem que persegue Mourad desde a primeira página – o seu adjunto Haj Hamid (que, a partir de certa altura, ele tratará por H. H.), num momento em que estavam sós no escritório, depois de uns dias de ausência de Mourad, sorri-lhe e diz-lhe: “Bienvenue dans la tribu!” E o romance acaba. Assim, o engenheiro deixava de ser um “grão de areia” na engrenagem e passava a integrar-se no sistema…
Uma história densa em torno de uma personagem não menos densamente trabalhada, de uma riqueza psicológica extrema, é este L’homme rompu, em que o adjectivo do título tanto remete para a corrupção iniciada como para a verticalidade abandonada. E, porque a corrupção vai sendo fenómeno de que se fala todos os dias, este retrato de Mourad é um bom contributo da literatura para um outro retrato deste tempo…
Sublinhados (por ordem alfabética)
Corrupção – “Le propre de la corruption c’est qu’elle n’est pas visible directement. (…) La corruption est une forme déguisée d’impôt supplémentaire.”
Destruição (do homem) – “Si l’homme vend son âme, s’il achète la conscience des autres, il participe à un processus de destruction générale.”
Dinheiro – “La réligion de l’argent pourrit tout ce qu’elle touche. Elle méprise les gens modestes, les honnêtes gens incapables de magouilles.”
Explicar o mundo – “Lorsque des choses étranges arrivent, il faut les recevoir telles quelles, sans chercher à tout expliquer. L’intelligence est l’incompréhension du monde, c’est cette capacité de nous étonner et de découvrir que complexité n’explique pas obscurité. Quant à ceux qui réclament la clarté absolue, ils se trompent ou se font des illusions.”
Infância – “Nous avons tous besoin d’une petite place sur la terrasse de l’enfance, là où on est hors d’atteinte, un peu comme si on était mort.”
Liberdade – “Personne ne peut m’empêcher de penser ni de rêver. C’est ma seule liberté. (…) Mes rêves sont impénétrables. Je suis le seul qui possède la clé. Je n’ai même pas besoin de la cacher. Elle est dans ma tête. Il n’y a personne pour m’empêcher d’agir.”
Mentir – “Les gens honnêtes ne savent pas mentir; dès qu’ils sortent du droit chemin, tout le monde le sait. Ils se trahissent eux-mêmes. Pas besoin de les dénoncer.”
Noite – “Qui a dit que la nuit porte conseil? C’est faux. Non seulement elle ne porte pas conseil mais elle dramatise les faits, elle les grossit, les rend lourds. (…) La nuit est alarmiste.”
Outro – “On découvre vraiment les êtres dans des moments inattendus comme les silences, ou grâce à un petit détail, dans la manière dont ils réagissent à des faits sans importance.”
Pobreza – “On est puni d’être pauvre; et on est pauvre parce qu’on est honnête; honnête parce qu’on est éduqué de père en fils pour respecter la loi. (…) La pauvreté est parfois mauvaise conseillère. Elle pousse les gens à commettre des délits, à voler, à escroquer, à mentir.”
Simplicidade (do homem) – “Il faut aller dans les campagnes pour rencontrer des gens encore attachés aux choses simples de la vie. Ils sont accueillants et généreux meme s’ils sont pauvres. En ville, plus les gens sont riches plus ils sont calculateurs.”
Solidão – “La solitude choisie est une forme aiguë d’égoïsme, un refuge pour ceux qui ne se sentent pas concernés par cette agitation qu’on confond parfois avec la vie.”
Tédio – “L’ennui tranquille est un état de l’esprit et du corps qui ressemble à une sorte d’apaisement quand il n’y a rien à faire ni à prouver.”