As três narrativas que Luciano Rocha reúne na obra No tempo da esperança-nova e outras estórias (Edições QB Comunicação, 2007) partem, nos dois primeiros casos, de provérbios kimbundos (“Tem de morrer o defeituoso para que o defeito acabe” e “a sorte nasce com o próprio, não se procura”) e, no último, de versos de Agostinho Neto (“Amanhã entoaremos hinos à liberdade / Quando comemorarmos / a data da abolição / Desta escravatura”). Tais pontos de partida situam de imediato o leitor no contexto em que as narrativas ganham forma. Escritas entre 1976 e 2004, as duas primeiras começaram a germinar em Luanda, onde o autor cresceu e se iniciou no percurso de jornalista, que ainda mantém, agora em Setúbal.
Quando Canduxa decide cortar os pulsos, em acto solitário, de tal forma que o cadáver foi descoberto por “um homem que ia pescar nas pedras” e acaba por ser enterrado na vala comum, sem ter sido reconhecido por ninguém, o conto “Canduxa e os seus kalundus dela” podia terminar. Era um final interessante para uma personagem cujo corpo, como kitata, alimentara muitos momentos de sensualidade, inúmeros olhares de desejo. Mas o narrador prossegue, dando um fim a cada uma das personagens que se tinha cruzado no caminho de Canduxa. No final da estória, o narrador assume-se como alguém que teve a incumbência de juntar as várias peregrinações destas personagens, algo que acontece apenas depois de Casimiro, o mais respeitado, ter morrido – “nas horas de me passarem estes mambos que estou a pôr, mais kota Casimiro já tinha baicado”. Insistindo no papel do contador de estórias, o narrador dirá, a concluir: “Esta estória – ou estórias como quiserem – me passaram faz muitos anos. Quem me contou, em muitas noites de silêncios e medos, (…) já baicou. Posso, por isso, lhe pôr no papel, como foi nossa combina. Se leram, não sei. Cumpri minha promessa.” O leitor que faça os juízos que quiser, que para isso é leitor. Mas a leitura é agradável na caracterização das personagens – com especial relevo para Canduxa, o lascivo Kalu e o velho Casimiro –, nos quadros fortes da natureza – “os relâmpagos começaram a pôr os seus desenhos deles no céu” –, no encadeamento dos diversos percursos dos actores, na imagem que é dada dos conflitos sociais numa Angola vigiada por pides e por guerrilheiros.
O conto “Minha terra é Rangel” inicia-se com um dos tais quadros intensos da natureza, de onde não está ausente o romantismo tropical e sensual – “A tarde estava quase-quase para bazar, com o sol, como sempre que acontece naquela hora em Luanda, a se vestir na cor do dendém maduro, a se preparar, já, para fimbar, com devagarinho, na água fresca, lá no fundo, onde o mar e o céu dão, todos os dias, seu kandandu deles”. Mas o mais importante deste texto será a explicação para a escrita de Luciano Rocha, num português eivado de construções e de termos próprios do falar das personagens que povoam estas narrativas – é que o contador destas estórias entrou na intimidade da língua e da sociedade a que pertencem as suas personagens, haja em vista o que se passa com o branco António João Silva, o adolescente que chegou a Luanda ido da metrópole para trabalhar na loja do tio – personagem sofrida, rápido passou a ser conhecida por Catonho, perante a indignação do parente protector – “o tio falava, nos berros, junto com as palavras-podres, isso era abuso de confiança, de não saber se dar ao respeito, onde que já se tinha visto um branco, por cima de primeira, nascido no Putu, mesmo que era miúdo, deixar os pretos lhe tratarem na intimidade deles”. A língua é, então, um factor de identidade e, como tal, nem sempre tem características pacíficas. A opção de Luciano Rocha por um escrever de Angola, completado com um glossário final de oito páginas, é assim justificada com a personagem Catonho, que se deixou imbuir da identidade do sítio onde chegou.
“No tempo da esperança-nova”, através da personagem Varito, é o tempo da (in)experiência, das mudanças, dos oportunismos, do regime velho que cai, da Luanda que se modifica “malembe-malembe”, correndo pelo ambiente vivido ora em Luanda, capital de um país a nascer, ora em Lisboa, onde desembocavam populações sob o carimbo de “retornados”, uma capital de um império vista do lado de lá. É a narrativa mais longa, em torno da ascensão desejada e construída de Varito, uma personagem-tipo, uma estória feita de destinos e de tempos, em que, apesar dos (des)encontros, os actores reservam para si os seus mistérios – “Os dias, a se treparem nas costas dos meses, se fizeram anos, a passarem na zuna uns, outros na mangonhice, cadaqual, mesmo, é que sabe como é que eles andaram”.
A escrita de Luciano Rocha detém uma capacidade forte de reunir estórias, de construir percursos em que as personagens se aproximam do leitor, de entrelaçar o narrador com o próprio enredo (lembrando as sessões dos contadores de estórias para um público vasto), de dominar vários registos de discurso, de metaforizar o tempo e a natureza. Por outro lado, o livro poderá ainda tornar-se interessante pelo lado da contextualização histórica, com referências diversas ao mundo e à sociedade luandenses antes e durante a descolonização e o processo de independência de Angola.
Quando Canduxa decide cortar os pulsos, em acto solitário, de tal forma que o cadáver foi descoberto por “um homem que ia pescar nas pedras” e acaba por ser enterrado na vala comum, sem ter sido reconhecido por ninguém, o conto “Canduxa e os seus kalundus dela” podia terminar. Era um final interessante para uma personagem cujo corpo, como kitata, alimentara muitos momentos de sensualidade, inúmeros olhares de desejo. Mas o narrador prossegue, dando um fim a cada uma das personagens que se tinha cruzado no caminho de Canduxa. No final da estória, o narrador assume-se como alguém que teve a incumbência de juntar as várias peregrinações destas personagens, algo que acontece apenas depois de Casimiro, o mais respeitado, ter morrido – “nas horas de me passarem estes mambos que estou a pôr, mais kota Casimiro já tinha baicado”. Insistindo no papel do contador de estórias, o narrador dirá, a concluir: “Esta estória – ou estórias como quiserem – me passaram faz muitos anos. Quem me contou, em muitas noites de silêncios e medos, (…) já baicou. Posso, por isso, lhe pôr no papel, como foi nossa combina. Se leram, não sei. Cumpri minha promessa.” O leitor que faça os juízos que quiser, que para isso é leitor. Mas a leitura é agradável na caracterização das personagens – com especial relevo para Canduxa, o lascivo Kalu e o velho Casimiro –, nos quadros fortes da natureza – “os relâmpagos começaram a pôr os seus desenhos deles no céu” –, no encadeamento dos diversos percursos dos actores, na imagem que é dada dos conflitos sociais numa Angola vigiada por pides e por guerrilheiros.
O conto “Minha terra é Rangel” inicia-se com um dos tais quadros intensos da natureza, de onde não está ausente o romantismo tropical e sensual – “A tarde estava quase-quase para bazar, com o sol, como sempre que acontece naquela hora em Luanda, a se vestir na cor do dendém maduro, a se preparar, já, para fimbar, com devagarinho, na água fresca, lá no fundo, onde o mar e o céu dão, todos os dias, seu kandandu deles”. Mas o mais importante deste texto será a explicação para a escrita de Luciano Rocha, num português eivado de construções e de termos próprios do falar das personagens que povoam estas narrativas – é que o contador destas estórias entrou na intimidade da língua e da sociedade a que pertencem as suas personagens, haja em vista o que se passa com o branco António João Silva, o adolescente que chegou a Luanda ido da metrópole para trabalhar na loja do tio – personagem sofrida, rápido passou a ser conhecida por Catonho, perante a indignação do parente protector – “o tio falava, nos berros, junto com as palavras-podres, isso era abuso de confiança, de não saber se dar ao respeito, onde que já se tinha visto um branco, por cima de primeira, nascido no Putu, mesmo que era miúdo, deixar os pretos lhe tratarem na intimidade deles”. A língua é, então, um factor de identidade e, como tal, nem sempre tem características pacíficas. A opção de Luciano Rocha por um escrever de Angola, completado com um glossário final de oito páginas, é assim justificada com a personagem Catonho, que se deixou imbuir da identidade do sítio onde chegou.
“No tempo da esperança-nova”, através da personagem Varito, é o tempo da (in)experiência, das mudanças, dos oportunismos, do regime velho que cai, da Luanda que se modifica “malembe-malembe”, correndo pelo ambiente vivido ora em Luanda, capital de um país a nascer, ora em Lisboa, onde desembocavam populações sob o carimbo de “retornados”, uma capital de um império vista do lado de lá. É a narrativa mais longa, em torno da ascensão desejada e construída de Varito, uma personagem-tipo, uma estória feita de destinos e de tempos, em que, apesar dos (des)encontros, os actores reservam para si os seus mistérios – “Os dias, a se treparem nas costas dos meses, se fizeram anos, a passarem na zuna uns, outros na mangonhice, cadaqual, mesmo, é que sabe como é que eles andaram”.
A escrita de Luciano Rocha detém uma capacidade forte de reunir estórias, de construir percursos em que as personagens se aproximam do leitor, de entrelaçar o narrador com o próprio enredo (lembrando as sessões dos contadores de estórias para um público vasto), de dominar vários registos de discurso, de metaforizar o tempo e a natureza. Por outro lado, o livro poderá ainda tornar-se interessante pelo lado da contextualização histórica, com referências diversas ao mundo e à sociedade luandenses antes e durante a descolonização e o processo de independência de Angola.
No tempo da esperança-nova e outras estórias, de Luciano Rocha, tem apresentação pública marcada para hoje, na Biblioteca Pública Municipal de Setúbal, pelas 21h00, com a presença do autor e de Artur Queirós.
Sem comentários:
Enviar um comentário