sábado, 28 de novembro de 2020

Papa Francisco: da pandemia para o futuro

 


Ao retomar as audiências gerais, em 2 de Setembro, falando sobre os efeitos e as mudanças provocadas pela pandemia, o Papa Francisco dizia: “Hoje a solidariedade é o caminho a percorrer rumo a um mundo pós-pandemia, para a cura das nossas doenças interpessoais e sociais. Não há outro. Ou seguimos o caminho da solidariedade ou a situação vai piorar. Quero repetir: não se sai de uma crise da mesma forma que antes. A pandemia é uma crise. De uma crise só se sai melhores ou piores. Temos que escolher.” Já passavam cinco meses desde que, naquele final de 27 de Março, o mundo assistiu a um Papa sozinho na Praça de S. Pedro, numa mensagem “urbi et orbi”, em jeito de oração pela Humanidade, que assim começava: “Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo de um silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem.”

O forte peso metafórico da comunicação papal de Março serviu para mostrar a vulnerabilidade que dominava o mundo, num ritmo desajustado, ganhando terreno algumas verdades fundamentais: “ninguém se salva sozinho”, “não somos auto-suficientes” ou as necessárias “novas formas de hospitalidade, de fraternidade e de solidariedade”, três convicções expressas nessa comunicação.

Esta comunicação, bem como outras sete intervenções do Bispo de Roma produzidas até 22 de Abril, integram o livro Vida após a pandemia (Paulinas Editora), prefaciado pelo cardeal checo-canadiano Michael Czerny, que considera conterem estes textos “directrizes para a reconstrução de um mundo melhor”, numa perspectiva de reflexão sobre desafios para novas práticas nas áreas das actividades económicas, do trabalho, da assistência de saúde, uma vez que “a nossa vida, após a pandemia, não pode ser uma réplica do que se passou antes”.

Nas várias intervenções de Francisco aqui coligidas, é insistente o princípio da “preparação para o depois”, seguindo um caminho de onde não podem estar ausentes a vivência da solidariedade (“este não é tempo para a indiferença”) e a fraternidade (“este não é tempo para egoísmos”). Na homilia pascal, de 12 de Abril, o Pontífice punha a tónica nos decisores, lembrando-lhes que “este não é tempo para continuar a fabricar e a comercializar armas”, insistindo nas várias crises humanitárias que corriam em paralelo com a pandemia, aí incluindo já a vivida na região moçambicana de Cabo Delgado. No mesmo dia, em “Carta aos Movimentos Populares”, Francisco continuava directo: “Espero que este momento de perigo nos tire do piloto automático, sacuda as nossas consciências adormecidas e permita uma conversão humanística e ecológica que termine com a idolatria do dinheiro e coloque a dignidade e a vida no centro.”

Cinco dias depois, na revista espanhola Vida Nueva, o Papa enunciava dois princípios da “nova imaginação do possível” - o primeiro, “se agirmos como um só povo, até diante das outras pandemias que nos ameaçam, poderemos ter um impacto real”; o segundo, “a globalização da indiferença continuará a ameaçar e a tentar o nosso caminho”. Em 22 Abril, Dia Mundial da Terra, retomava o princípio já habitual neste Papa - “amar e apreciar o magnífico dom da Terra, nossa casa comum, e cuidar de todos os membros da família humana.”

Os discursos de Francisco em Vida após a pandemia acentuam a responsabilidade colectiva e são directos, entendíveis para todos, numa linha de insistência, com pistas para a reflexão e acção que se impõem a cada um.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 515, 2020-11-25, pg. 9.


sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Emília e as memórias da conserveira

 


“As mulheres conserveiras protagonizaram uma das páginas mais brilhantes da história de Setúbal.” A afirmação, no ensaio “Indústria conserveira - Mosaico de um futuro anterior” devido a Vanessa Iglésias Amorim, João Pedro Santos e Jaime Pinho, serve de mapa sociológico para o texto dramático A Casa de Emília, de Luísa Monteiro, levado à cena recentemente pelo Teatro Estúdio Fontenova. Os dois textos complementam-se e integram o livro com o título da peça, editado pelo grupo de teatro setubalense.

O trabalho ensaístico parte de entrevistas e de histórias pessoais e percorre o quotidiano das mulheres nas fábricas de conserva, registado nas questões de género, condições de trabalho e retrato social. A participação feminina setubalense na indústria conserveira tem escasso estudo, reduzindo-se, frequentemente, a curto (sub-)capítulo nas publicações sobre o tema, mas, em 2000, foi mostrada em Alguns aspectos da indústria conserveira em Setúbal, trabalho muito apoiado nas entrevistas (34 mulheres em 40 entrevistados), promovido pelo Museu do Trabalho.

A força das operárias, a sua resistência, os abusos perpetrados ou insinuados a que foram sujeitas, o esgotamento físico, a inferioridade na hierarquia, a vida familiar condicionada pela fábrica (mesmo na educação dos filhos, que, desde muito cedo, acompanhavam a mãe, tornando-se também eles operários ou operárias), uma certa segregação social (em que desempenhava papel importante o cheiro do peixe), as diferenças salariais motivadas pelo género, tudo passa pelos testemunhos que permitem a primeira parte do livro e se ilustram na segunda.

A história de Emília (num tempo em que a indústria conserveira sadina já pertence ao passado) conta seis personagens, quatro delas vivendo sob o mesmo tecto. Emília, a conserveira, gere toda a narrativa no que é devido a memória, pondo a nu o que foi a sua vida na fábrica, estatuto que lhe dará o direito de, quase no final da peça, poder dizer à filha, Albertina, que “tudo quanto diz respeito àquilo que conserva, mulheres incluídas, são de grande bem para a humanidade”, uma outra forma de chamar sobre si a responsabilidade de personagem principal.

Pelo discurso de Emília passam os avisos a Albertina, e à neta, Amélia, bem como a autoridade e algum desprezo por Artur, o genro, filho do antigo encarregado da fábrica onde Emília trabalhou e actual amante da nora de João Rodrigues, que tivera uma relação com Emília. Numa curta história, o leitor / espectador acaba por ter presente o quotidiano da geração de Emília numa vida não suficientemente vencida, magoada pelo que foi e pelo que não pôde ser (no trabalho e no amor), dotada de um sofrido conhecimento do ser humano a partir da sua experiência, muito ajudada pelo coro nos pensamentos sobre esse passado; presente também está o tempo de Albertina, mulher de limpezas, aí incluindo um certo varrer do mal, em simultâneo com a protecção da casa; finalmente, os momentos de Amélia, a neta, baloiçando entre amores (de Zeca, ex-namorado, com final infeliz, e de Ruben, personagem apenas aludida), carinhosa para a avó, desprendida desse passado mais antigo. Entre Rodrigues, ex-amante de Emília quando já tinha um compromisso com Aurora, e Artur há uma quase relação em espelho, até chegarem a um encontro combinado no final, em torno da verdade ou da mentira, porque, como Rodrigues diz, há um “sono nebuloso e denso, violento e negro em cada um de nós”.

Luísa Monteiro conseguiu com esta obra aquilo que se propôs: “levar a vida intemporal para o palco, perpetuar as histórias dos outros e levá-las de regresso à pedra de nascença.” E as memórias das mulheres conserveiras saem fortificadas...

* J.R.R., in O Setubalense: nº 510, 2020-11-18, p. 9.


quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Alfredo da Silva, o engenh(eir)o da CUF



Sobre o provincianismo lusitano, Fernando Pessoa criticou o escol português por “incapacidade de concentração voluntária, espírito de imitação e ausência de espírito crítico”. A seguir, emendava a mão: “Faço uma leve reserva quanto ao escol industrial: não há entre os nossos intelectuais, artistas, jornalistas ou políticos alguém cuja iniciativa e poder de coordenação se compare com os de, por exemplo, o Sr. Alfredo da Silva no campo industrial.” E concluía: “Por desastre, porém, e para mal nosso, o escol industrial não tem, por natureza, influência intelectual alguma, e assim não serve de vivificar o escol em geral.”

O texto pessoano, recolhido em Ultimatum e Páginas de Sociologia Política (1980), serve para José Manuel Sardica abrir a obra Alfredo da Silva e a CUF: Liderança, Empreendedorismo e Compromisso (Cascais: Principia Editora, 2020, com apoio da Fundação Amélia de Mello), justificando mesmo os três valores enunciados no subtítulo, nesta que é uma das primeiras iniciativas da programação dos 150 anos do nascimento do industrial que pôs o Barreiro no centro dos seus investimentos. 

Além do percurso da vida e obra de Alfredo da Silva (1871-1942), o leitor inteira-se também sobre as tensões políticas e laborais que assolaram os empreendimentos do grupo CUF, sobre uma nova visão da responsabilidade social empresarial relativamente aos colaboradores (gesto em que Alfredo da Silva foi quase pioneiro, criando habitações, escola, serviços de saúde - a origem da rede hospitalar CUF que hoje conhecemos -, formas de lazer, cantinas, protecção social para os trabalhadores das suas empresas, dinamizando a ideia de uma “família cufista”), estendendo-se a narrativa até à actualidade (grupos Sovena e José de Mello), pois esta obra se assume também como a história de uma família. Os vectores apontados por Sardica assentam numa gestão intensa nas fábricas do grupo, num reinvestimento dinamizando o seu crescimento, num compromisso patriótico e social, configurados num homem de lemas como “mais e melhor”, “ganhar se possível e perder se necessário” ou “o que o país não tem a CUF cria”, assim se sintetizando os trunfos que conduziram Alfredo da Silva: “planificar a médio e longo prazo, ser original e inovador nas escolhas de investimentos, calcular muito bem riscos e benefícios e solidarizar a riqueza pessoal com a riqueza criada.”

Marcas como Carris, Totta, Tabaqueira, Império, SG (Sociedade Geral), CUF, ou áreas como os adubos, as oleaginosas ou a construção naval foram os principais degraus por que passou a acção deste homem que, em 1908, chamou o centro da sua actuação para a Margem Sul, chegando a desejar ser sepultado no Barreiro, “pois, mesmo morto, queria estar sempre a olhar para as suas fábricas”. Passou circunstancialmente pela política (deputado por Setúbal em 1906) e cruzou ideias com políticos (João Franco, Sidónio Pais, Oliveira Salazar), nem sempre convergindo; sofreu quatro atentados, a que sobreviveu por sorte; viveu exilado em Espanha; contornou a onda revolucionária e grevista do início da República, a acusação de germanofilia que lhe foi imputada na Primeira Guerra, os efeitos do “crash” de 1929 e as dificuldades trazidas pela Segunda Guerra. Os seus restos mortais seriam trasladados para mausoléu no Barreiro dois anos após o falecimento.

A leitura acessível e a informação essencial povoam este livro, na perspectiva de cativar (também) o público estudantil para a investigação sobre a vida, a obra e o tempo do biografado, visando concurso a acontecer ao longo deste ano lectivo. Estamos perante uma biografia muito bem tecida, repleta de informação actualizada (chega a estabelecer correspondência dos valores do dinheiro com o tempo de hoje numa sensibilização à história económica), que não omite as vulnerabilidades do tempo e das circunstâncias, deixando claro, sobre Alfredo da Silva, que “a história da sua CUF é a sua história de vida”.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 505, 2020-11-11, p. 9.


Memória: Gonçalo Ribeiro Teles (1922-2020)

Há um livro sobre o arquitecto Ribeiro Teles, publicado em 2003 na forma de catálogo, cujo título é A utopia e os pés na terra. Bem escolhido, é uma síntese extraordinária do que foi o contributo de Gonçalo Ribeiro Teles para a valorização do paisagismo.

A utopia e os pés na terra, pelo menos para este defensor da paisagem, não foram inconciliáveis e puderam co-existir. É por isso que, passados anos, os jardins da Gulbenkian continuam a ser lindos. É por isso que o contributo que nos legou continuará a ser importante, assim os decisores o queiram. Obrigado, arquitecto!

(Fotografado por: José Alex Gandum)


quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Helena Marques: a vida, como a ilha, é um cais

 

Sobre o final da sua carreira jornalística no Diário de Notícias, publicou o primeiro romance, O último cais, obra premiada nesse 1992. Até 2010, mais quatro romances e um livro de contos constituíram a obra literária de Helena Marques (1935-2020, falecida há dias), que, na obra inaugural, trouxe um retrato da Madeira (a que estava ligada por razões familiares e por lá ter vivido) e da condição da mulher numa narrativa em que o amor e a morte caminham lado a lado.

O último cais conta uma história balizada entre 4 de Setembro de 1879 e 1904, iniciando-se com uma transcrição do diário de bordo da personagem Marcos, na costa de Moçambique em “fiscalização e repressão do tráfico de escravos” (como Raquel, a esposa, o apresentará mais tarde, ao defender o abolicionismo). O derradeiro capítulo, o décimo-terceiro, tem o título da obra, conjugação que implica um contacto próximo com o mar, com a viagem (real ou metafórica), ajudando na definição do que será viver numa ilha. Oito dos capítulos titulam-se com nomes femininos, cedidos por personagens da história, havendo três que tomam os nomes masculinos de outras tantas personagens, aspectos que valorizam a presença da mulher, por um lado, e o relacionamento entre personagens, por outro - surgindo uma família grande, com figuras modeladas exaustivamente, vincando-se a condição da mulher (na recusa de uma personalidade de Penélope) a partir do contributo de cada uma das personagens femininas do enredo.

Pelo romance passam o quotidiano (a vida nas quintas, as festas, o ambiente familiar, a relação com as criadas, a importância da casa) e as marcas dos tempos (a chegada do telégrafo, o aparecimento do fonógrafo, a presença estrangeira na ilha), a política (a libertação dos escravos em África, o tricentenário camoniano e os republicanos, o sufragismo) e a noção do que é a vida da família, nas suas aproximações e desencontros, “tecendo-se com o amor e a morte”.

As muitas referências literárias participam na definição das ideias e na caracterização das personagens: a garrettiana Maria, de Frei Luís de Sousa, ecoa na jovem Benedita, quando, aos quinze anos, expõe aos pais o seu “raciocinar como uma pessoa mais velha”; a relação amorosa de Maria dos Anjos e Xavier lembra  Paulo e Virgínia, de Bernardin de Saint-Pierre; Raquel recebeu formação italiana, eternizando o afecto pela Divina Comédia, de Dante; a Bíblia é lida e interpretada criticamente; Luciana cruza-se com a flaubertiana Bovary, que a influencia; João de Deus é enaltecido pelo contributo da Cartilha Maternal; Clara aprende o inglês com as obras de  Lewis Carroll, não esquecendo as aventuras de Alice; o americano John dos Passos entra na história por uma relação familiar, merecendo um comentário irónico pelo seu quase esquecimento das memórias da Madeira; Marcos recorda-se de quando leu Guerra Junqueiro e das discussões sobre anticlericalismo com o cónego Nicolau.

A história, contada um século depois do diário de bordo que abre o livro, exige da narradora, herdeira de Carlota, frequentes recuos na narrativa, conciliadores dos tempos e das personagens. No final, Marcos está no “último cais”, como espectador, à espera da entrada no Paraíso. Assim, O último cais é o itinerário de uma viagem em múltiplos sentidos: no tempo, indo até aos ambientes do final oitocentista; na acção, em que se reconstitui a identidade de uma família; no “eu”, que busca permanentemente um sentido para a vida. Um romance em que a vida, como a ilha, é um cais.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 500, 2020-11-04, pg. 9.