sábado, 23 de fevereiro de 2019

Joaquim Rasteiro e as histórias da Península da Arrábida (Azeitão, Palmela, Sesimbra)



A revista O Arqueólogo Português começou a sua publicação em 1895 sob a direcção de José Leite de Vasconcelos (1858-1941), tendo-se dividido até hoje em cinco séries, a primeira das quais, em 30 volumes, a mais longa, publicada até 1938. A revista, uma referência indiscutível na área da arqueologia, surgiu no âmbito do Museu Nacional de Arqueologia, criado dois anos antes por Leite de Vasconcelos.
A temática sadina passou pelas páginas da revista desde o seu primeiro número, que teve também um colaborador setubalense, Manuel Maria Portela (1833-1906). No segundo número, de 1896, os temas das terras do Sado continuaram a ser abordados e outro setubalense ali assinou um texto, o arqueólogo António Inácio Marques da Costa (1857-1933). Foi ainda neste segundo número que Leite de Vasconcelos publicou a notícia “Questionários Arqueológicos”, dando publicidade a trabalho encetado a nível nacional dois anos antes: “A Comissão dos Monumentos Nacionais fez imprimir, em 1894, e distribuir por diversas pessoas, os seguintes questionários, com o fim de recolher elementos para o estudo da arqueologia portuguesa.” Seguia-se o referido questionário, dividido em assuntos gerais e em informações de carácter militar.
No número seguinte de O Arqueólogo Português, o terceiro, de 1897, surgia a primeira resposta a este questionário, devida a Joaquim Rasteiro (1834-1898), ocupando as primeiras 48 páginas da publicação sob o título “Notícias Arqueológicas da Península da Arrábida”, com a nota de rodapé que esclarecia ter sido o artigo escrito no período de 1893-1894. Ao longo do texto, outras notas vão aparecendo, devidas a José Leite de Vasconcelos, umas vezes contextualizando algumas informações, outras vezes estabelecendo relações com outros estudos.
Joaquim Rasteiro, azeitonense, autodidacta, investigador, político e proprietário, foi autor de diversas publicações sobre história local da sua região, de entre as quais se destaca Palácio e Quinta da Bacalhoa - Inícios da Renascença, editada em 1895 (que mereceu edição fac-similada em 2003). As “Notícias Arqueológicas da Península da Arrábida”, que redigiu, seguem o plano do inquérito da Comissão dos Monumentos Nacionais e abrangem os termos de Azeitão, Palmela e Sesimbra.
Recentemente, Bernardo Costa Ramos, azeitonense e divulgador da história da sua terra, promoveu a edição deste texto de Joaquim Rasteiro (Azeitão: A Páginas Tantas, 2018), mantendo a ortografia da época e assim justificando o trabalho apresentado: “por um lado, proporcionar a todos aqueles que se interessam pela nossa história de disporem em formato livro do texto original, tornando-o mais legível e de uma partilha mais célere; por outro lado, prestar homenagem aos grandes homens azeitonenses que contribuíram para fixar essa mesma história”. O livro contém ainda uma nota biográfica de Joaquim Rasteiro elaborada pelo filho, que mantinha o nome do pai, publicada no semanário dominical O Azeitonense, em 7 de Setembro de 1919. A iniciativa da edição de 2018 foi indiscutivelmente louvável, embora devesse ter tido maior divulgação e mais substancial tiragem.
A intenção de Joaquim Rasteiro não se limitou a constituir uma resposta ao inquérito da Comissão; a esse apelo, acrescentou o seu propósito de “segurar o que tende a cair no olvido, juntar o que há disperso, fazer que se saiba o muito que se cala”, vontade tanto mais acentuada quanto as duas instituições que mais perpetuavam a história e as artes - as “famílias religiosas” e a “instituição dos morgados” - estavam extintas e, assim, urgia “segurar por novos meios quanto tende[sse] a esvair-se”.
As descrições que Rasteiro apresenta no seu texto decorrem da sua observação, do seu contacto com os sítios ou com as peças que descreve, não especulando, mas chamando a atenção para as condições de sobrevivência dos testemunhos artísticos - por exemplo, quando se refere ao Palácio da Bacalhoa, considera ser “um monumento a que bem caberia a guarda do Estado” em virtude da “forma e disposição das suas construções, pelos seus azulejos e medalhões esmaltados, pela significação artística do conjunto”. O conjunto da sua descrição é valorizado pelas informações de cunho histórico (que na época eram conhecidas) associadas a cada um dos itens, estabelecendo a diferença entre o que é comprovável em termos de conhecimento e o que diz respeito a tradições ou crenças construídas - por exemplo, ao mencionar o paço dos Duques de Aveiro, diz que “modernamente inventou-se que dos reclusos [jesuítas ali custodiados]31 por 73 se finaram de tanto penar nas cadeias de Azeitão”, afirmação que imediatamente contesta: “É falso. Nem um só aqui morreu. Os livros do registo paroquial não acusam um óbito sequer de jesuíta.”
Pelo escrito de Rasteiro passam as antas (existência suposta na zona de Sesimbra), as cavernas ou grutas (lapas do Médico, de Santa Margarida e da Greta), as grutas artificiais pré-históricas (Quinta do Anjo), as pedras de raio, os restos de povoação (vestígios romanos na antiga freguesia da Ajuda), as moedas e outros objectos romanos, os objectos e moedas árabes, as tradições locais (ermida de Santa Maria da Vitória), as designações locativas (Azeitão, Coina-a-Velha, Vila Nogueira de Azeitão, Vila Fresca de Aseitão, Portela, Casal do Bispo), as fortificações ou edifícios atribuídos aos mouros na voz do povo (castelo dos Mouros, covas da Moura, castelo de Coina), os monumentos-palácios (Bacalhoa, Duques de Aveiro, Calhariz), as igrejas (de S. Lourenço e de S. Simão), as ermidas (do Bom Jesus, dos Remédios), os túmulos (na igreja de S. Tiago, em Palmela, e no mosteiro da Piedade, em Azeitão), os cruzeiros (das Necessidades), os brasões (Bacalhoa, capela das Necessidades, quinta do César, quinta Nova e quinta Velha, quinta das Torres, entre outras), as imagens de pedra, as imagens de barro, as pinturas em tela, as custódias, outros objectos de culto (alfaias diversas de arte sacra), as tapeçarias (em longo inventário), as inscrições (em enumeração pormenorizada), as antiguidades a que não pode marcar-se origem conhecida (lápides do chafariz de Aldeia Rica e da quinta do Visconde de Montalvo), os montes fortificados, os castelos de Sesimbra e de Palmela, as torres, os factos históricos das fortalezas (de Coina, Sesimbra e Palmela) e as fortalezas prisões de Estado (Palmela, Outão, paço dos Duques de Aveiro).
A leitura deste registo devido a Joaquim Rasteiro torna-se interessante porque o texto abdica de considerações laterais e vale na sua simplicidade, assertividade e objectividade; permite ao leitor uma viagem a um tempo e a um espaço de reconstrução da identidade; afirma uma riqueza patrimonial e histórica da região da península arrábida; é um elemento-base incontornável a ser considerado na bibliografia local.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Evocar Sebastião da Gama 8 - Aquele Fevereiro de 1952


Lápide descerrada em Azeitão, em 8.Fev.1953, homenageando Sebastião da Gama

Ao ar frio daquele Fevereiro de 1952 veio juntar-se uma outra frialdade, a da vida que se extinguia, a da saudade que o desaparecimento precoce de Sebastião da Gama deixava. Estava-se no dia 8 de Fevereiro e o jovem Nicolau, então com 18 anos, meteu pés ao caminho, calcorreando a distância que separava Palmela (onde vivia) de Azeitão, percurso que fez sozinho, correndo atrás da necessidade que tinha de se despedir do seu jovem mestre.
Da cabeça não lhe saíam as lições ouvidas nas aulas de Português na Escola Comercial e Industrial João Vaz, em Setúbal, proferidas por um professor que era também seu amigo, lhe abriu horizontes e o levou a ganhar vontade de saber e de estudar, Sebastião da Gama de seu nome. O mínimo que lhe devia era esta despedida para sempre. Assistiu à cerimónia fúnebre e o professor Medeiros, director da Escola, ao saber que o jovem viera a pé por não ter dinheiro para o transporte, no final, deu-lhe as moedas necessárias para que o regresso a Palmela fosse em autocarro.
Esta memória nunca abandonou Nicolau da Claudina porque também a influência que Sebastião da Gama nele teve foi determinante para a sua vida. O jovem Nicolau fez parte do vasto grupo de admiradores e de saudosos que choraram em Azeitão naquele dia, entre os naturais da vila, os familiares, os amigos, pessoas dali, pessoas vindas de fora, todas num gesto solidário.
Sebastião da Gama, com 27 anos, falecera no dia anterior, pela manhã, no Hospital de S. Luís dos Franceses, em Lisboa, exactamente o mesmo estabelecimento hospitalar em que, dezassete anos antes, se finara um outro poeta que o azeitonense muito admirara, Fernando Pessoa. A meningite minara-o e foi responsável por sucessivas falências até ao encontro com a morte. Nesse fatídico 7 de Fevereiro, David Mourão-Ferreira, amigo grande de Sebastião, estava em Mafra, no quartel onde cumpria o serviço militar e, no final do dia, escrevia no seu diário: “Meia-noite, caserna: Acabam de me entregar um telegrama de meu Pai, com a seguinte notícia: a morte do Sebastião da Gama. Outro! Outro que morre. Depois do Manuel de Almeida Júnior, do Maia de Jesus, do José-Aurélio, e do Manuel Belchior, e da Maria Henriqueta - o Sebastião!” Parece apenas uma enunciação, mas é muito mais do que isso: é a lista dos amigos jovens que já tinham partido, agora aumentada.
David Mourão-Ferreira foi também uma das presenças na despedida em Azeitão no dia 8 de Fevereiro, pelas 17h00. Provavelmente, ter-se-á cruzado com Nicolau, com a Matilde Rosa Araújo, com os que vieram de Estremoz (onde Sebastião leccionara) e com tantos outros. No dia seguinte, 9, em Lisboa, o diário de David receberia este espantoso desabafo: “Lisboa, 3 horas da tarde, Pastelaria Herculano: Ontem, enterro do Sebastião. Estava um dia lindíssimo: atravessei o rio e fui, de camioneta, até Azeitão; apeei-me precisamente no local onde, há cinco anos e meio, ele me esperara, quando da primeira vez que fui à Arrábida. Desta vez, porém, não subimos a serra. Acompanhei-o ao pequeno cemitério da vila, onde agora repousa no ‘campo aberto’ que ele próprio previra. Era o melhor de todos nós, o Sebastião: o menos literato de todos nós.”
A partir dali, o tempo não foi longo para que as homenagens surgissem. Ainda em 1952, a revista literária Sísifo, de Coimbra, no seu quarto número, iniciava uma secção com cartas de poetas e o primeiro era Sebastião da Gama, que respondia a um inquérito sobre a sua obra; contudo, a primeira página dessa mesma revista era ocupada com a notícia da morte do poeta - “Quando este 4º fascículo já estava em andamento, integrando no seu sumário o poema inédito ‘Anunciação’, recebemos, pela notícia singela de um jornal da tarde, o golpe duro da morte de um querido amigo - Sebastião da Gama.” O segundo número da revista Árvore, publicação sazonal do Inverno de 1951-52, era dedicado “à memória de Sebastião da Gama, ao poeta e ao amigo que perdemos”, e publicava o seu poema inédito ‘Ressurreição’ e a homenagem escrita de Luiz Amaro de Oliveira, António Luís Moita, Albano Martins, José Terra e António Ramos Rosa, além de um retrato de Sebastião da autoria de Bonifácio Lázaro em extra-texto. O número 16 da revista brasileira Sul, publicada em Florianópolis, continha o poema “Crepuscular”, uma carta de Sebastião sobre um livro de Salim Miguel (datada de 30 de Novembro anterior) e a notícia da morte do poeta.
O ano seguinte, 1953, teve, em 8 de Fevereiro, o descerramento da primeira lápide em homenagem ao autor de Serra Mãe: foi em Azeitão, na Rua José Augusto Coelho, na casa onde viveu até aos 14 anos, uma cerimónia a que acorreram muitos amigos, tendo depois havido uma conferência evocativa pelo testemunho de David Mourão-Ferreira. Em pedra, ali ficaram gravados versos: “Faltava-lhe a morte para ser completo. / A taça estava cheia / Faltava-lhe a pétala da rosa / Para transbordar”.  Em 15 de Junho, em Estremoz, foi o descerramento da segunda lápide evocativa, na casa onde viveu, no Largo do Espírito Santo, cerimónia com larga participação, em que interveio um dos seus professores e amigo, Hernâni Cidade. A memória de Sebastião da Gama dava-lhe assim a possibilidade que a vida lhe não dera: a da sua presença pela palavra e pelo testemunho.
Jornal de Azeitão: 2019-02

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Nicolau da Claudina: a experiência, o saber, a amizade e a disponibilidade



Nicolau da Claudina (n. 1933) é uma figura carismática de Palmela e de Setúbal. Nome ligado ao movimento associativo, passou pelas direcções do Vitória Futebol Club, do Palmelense Futebol Club, do Grupo dos Amigos do Concelho de Palmela, da Sociedade Filarmónica Humanitária de Palmela e da Associação Cultural Sebastião da Gama, entre outras.
Homem de um saber e de uma experiência extraordinárias, alia a bondade, a disponibilidade e uma memória prodigiosa que, além de revelar histórias, transmite exemplo. Foi aluno de Sebastião da Gama, personalidade que venera e a quem reconhece ter tido um extraordinário papel na sua formação.
Alegro-me por ter Nicolau como amigo de há muito tempo. E agradeço a Simões Silva a iniciativa de recolher o depoimento e testemunho de Nicolau da Claudina. A ver!