quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Aquilino Ribeiro na Alemanha, há 87 anos, no dia de hoje

Dois anos depois de terminar a Primeira Grande Guerra, Aquilino revisitou a Alemanha (país em que vivera por uns meses em 1912, em Berlim e em Parchin, e em que casara, em 1913, com Grete Tiedemann, de Meclemburgo, que conhecera na Sorbonne). Dessa viagem deixou um diário, mais tarde publicado sob o título de Alemanha ensanguentada (1935). Neste texto, que constitui o início desse registo e que foi escrito há 87 anos, no dia de hoje, são visíveis as contradições e as hesitações num país saído de uma guerra havia dois anos, com difícil aceitação do acordado em Versalhes, assim como se evidencia a capacidade de perscrutar o ser humano, que Aquilino detinha, num exercício de leitura de rostos, de gestos, de tempos. Não sendo das obras mais conhecidas de Aquilino (tal como acontece com o É a guerra, que ontem referi), nem o género literário por ele mais praticado (o diarístico), ambas são um muito interessante retrato dos tempos e da maneira de olhar o(s) outro(s). Para lembrar a sua escrita, hoje, segundo dia de Aquilino no Panteão.

Aquilino Ribeiro visto por Diogo de Macedo (1918) [de couramagazinefoto.blogs.sapo.pt]

De Herbesthal a Berlim. Segunda-feira, 20 de Setembro de 1920.
Seis anos de ausência, subversão pavorosa de seres e coisas, como iria encontrar eu a Alemanha? Pungido de curiosidade, entro na gare de Herbesthal – antigo território do Reich - , com o tecto esburacado pelas bombas dos aeroplanos e os vastos cais difundindo uma impressão molesta de vazio e de silêncio. Onde param os latagões rosados, de vistosa e irrepreensível farda que,
pro forma
, se debruçavam de sorriso e luvas brancas sobre a nossa bagagem de passageiros? Em vez deles corre a esgadanhar-nos nas malas e estudar o passaporte com minúcia inquisitorial uma cáfila zumbidora e prolixa. São belgas, constelação nova do martirológio, a quem esta cidade teutónica com a respectiva comuna de Eupen coube em quinhão de partilhas. Lê-se-lhes nos olhos e ademanes uma faustosa mas desconfiada hipertrofia. A tragédia guindou-os a primeiros heróis do género humano, e ainda não estão bem persuadidos. Quando se persuadirem de todo, agora que já nos tratam com sobranceria, quem poderá afrontar-lhes a magnitude?
O comboio fica parado uma eternidade; finalmente descola, deixando não sei que arrelia a fuzilar nos olhos belgas, ou porque lhes seja desagradável ver-nos de rumo à Germânia execranda, como se fosse dever nosso não querer dares e tomares com semelhante raça, ou porque se lhes acabasse o diabólico regalo de nos massacrar com manápulas fiscais encardidas e o olho fero de argos fronteiriços.
A perder de vista, até os fuminhos baços do horizonte, névoa de céu ou orla de bosque, a campina estende-se com a riqueza de tom própria das pastagens outonais após as primeiras chuvas. Vamos ladeando a encosta com losangos de matagal e de cultivo agarrados aos flancos e vacas, inumeráveis manadas de vacas, quebrando com sua mansidão e brancura o sonoro e quente verde. À roda, pelas sebes e codeços, pincharolam corvos e gralhos; isolados uns dos outros, pelos saracoteios, idas e vindas sem explicação, dir-se-iam na terra, em que se não lobriga homem, os pastores da vacada. O comboio mete direito ao vale, amplo e liso como tábua, com a fita branca dum riacho a serpentear por entre a procissão dos choupos; no remoto horizonte miríades de pássaros sarabandeiam sob dormentes e roxas nuvens; cá temos a
deutsche Landschaft
.
No rápido, que antes da guerra tinha bem maior velocidade, gela-se; gela-se não porque faça frio; à baixa de temperatura junta-se o gelo interior, uma quase endoença baforada por esta terra do Norte que ainda não acabou de digerir o mortulho de quatro anos de açougada. Os viajantes parecem entorpecidos; calados, cabisbaixos, cada um irá a mascar no seu problema, enquanto as bielas e cem rodas vão batucando sobre os railhes a sua sinfonia altivamente bárbara. Em Aachen, cidade para que foi recuada a linha da fronteira, as formalidades de sempre; os alemães são ainda as mesmas pontuais e despachadas máquinas, mas seus rostos, gestos, movimentos afiguram-se-me trair má vontade pelo que estão a fazer, e uma brusquidão que lhes desconhecia ou sabiam disfarçar. Pela carruagem dentro rompem as faces glabras, deslavadas, dos oficiais que fazem parte das tropas de ocupação. Armados, reluzentes de correias e de metais, espartilhados no dólman de campanha
caca d’oie
, alevantam um eco marcial e dão ao mesmo tempo ao comboio certo ar de internacionalidade.
Ponho-me a examinar-lhes as caras, cujo taciturno ou seriedade, se quiserem, não é mais que contenção ou fisionomia do animal lançado numa determinada pista. Os britânicos têm sempre no sentido um alvo a tocar. Vão a reflectir, ou devaneando como eu? Qual! Vão embalados no seu inconsciente, ruminando porventura o
corned beef, e parece que se não dignam reparar que vai gente ao pé deles. A vigília e inquietação são apanágio do espírito; o motor inglês é instinto e aí está a sua força. Sobem sem olhar para nós; passam diante de nós sem uma vénia; o comboio como o mundo é ring
para eles; eis a gente de alto lá com ela a quem os pregadores alemães, durante a guerra, chamavam em suas imprecações ao Altíssimo ‘malandragem escrofulosa dos nevoeiros’.
Até Colónia mal se ouve falar alemão; é língua no índice; de Colónia em diante invertem-se os termos e só em voz baixa se fala outro idioma. Mutação, de resto, radical: a carruagem perde a feição neutra, cosmopolita; é alemã; roda com segurança alemã; vai cheia de alemães em que se converteram por metamorfose imprevista, além doutros, o cavalheiro sorumbático que vinha connosco de Paris, aquele rapaz que entrou em Vervier e arranha o castelhano, e a menina sardenta, de cabelos de oiro, que se me inculcara estudanta de Cambridge. Simultaneamente sinto em torno a reacção contra tudo o que cheira em nós a estrangeiro, a nossa cara, a nossa língua, as nossas malas. Explica-se: vindos de oeste, se não éramos franceses, éramos de país latino na mais provável das probabilidades. E passamos a ser, surda, mas furiosamente abominados; abominados menos no inimigo que venceu do que no inimigo que ditou a paz, e não pelo que esta representa de desdoiro para o germano, pois não se considera batido pelas armas, mas pelo que ‘revestiu de prepotência e falta de generosidade’.
Não nos molestam com um gesto; não nos jogam a mais leve injúria ou motejo; mas afivelam, apenas porque estamos na presença deles, a máscara que lhes ignorávamos de desdém e os torna alarves. E é curioso vê-los naquele fácies, povo que não sabe desprezar, porquanto o desprezo como sentimento furta-cores coaduna-se pouco com o génio dos fortes e é timbre das naturezas requintadas. Fingem ainda abstrair que vamos ao lado, e uns, em tom moroso, tom de pessoas convalescentes, conversam de tudo menos da guerra, outros, especados aos cantos, simulam dormitar.
Quatro anos de inferno, a terrível decepção, o
Diktat de Versalhes tinham passado por eles; tinham passado e apenas pela contractura e o salmodeado da voz se notava, que não por mais nada. Vestiam todos com decência e exibiam anafado e poderoso cachaço. A não ser que a cabina não levasse mais que Kriegs-Gewinner
, novos-ricos da guerra.
Noite fora, as estações vão discorrendo e com elas nomes rolantes como armões de artilharia, bufarinhados pelo mundo nos artefactos
made in Germany; todas cegas de luz e amplas, mas soturnas, vincadamente soturnas, quando eram animadas. A Alemanha, pressinto-o, cobriu a fronte com cinzas e está de pé diante do catafalco das suas ilusões e dos seus dois milhões de mortos. Com os alvores do dia, ouço vozear: Brandeburgo! Na manhãzinha, em ansioso sobressalto, vejo pular Spandau à retaguarda, depois às duas mãos os subúrbios meio estremunhados de Berlim.
” (Alemanha ensanguentada. Amadora: Livraria Bertrand, 1975)

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