Nos catorze anos que Frei Agostinho da Cruz (1540-1619) passou na Arrábida, muitos foram os momentos de motivação poética, indo até ao ponto de a eleger como espaço predilecto: “Agora, que de todo despedido / nesta Serra d’Arrábida me vejo, / de tudo quanto mal tinha entendido. // Com mais quietação livre me desejo / nela eu próprio cavar a sepultura, / que não junto do Lima, nem do Tejo. // Aqui, com mais suave compostura, / menos contradição, mais clara vista, / verei o Criador na criatura.” Esta ideia passará ainda por outro poema, em que refere: “Oh Serra das Estrelas tão vizinha, / quem nunca de ti, Serra, se apartara, / ou quando se partira esta alma minha / da terra, nesta tua me enterrara.”
Esta vontade de se entregar à Arrábida para todo o sempre surgiu da ligação que Agostinho da Cruz teceu com a serra, transformando-se o poeta no iniciador da tradição literária que a tem tomado como motivo, apresentada como reduto de silêncio e de encontro, promotora da comunhão com o Criador, via de aproximação às estrelas, de perturbação e de desassossego, num trajecto que tem convocado seguidores até ao presente.
A propósito dos 480 anos do seu nascimento e do quarto centenário do seu passamento, o franciscano que veio do Norte tornou-se um universo de inspiração para a Casa da Poesia de Setúbal, que acabou de publicar a antologia Homenagem a Frei Agostinho da Cruz, reunindo poemas, desenhos e curtos estudos produzidos por vinte e um dos seus membros.
O texto poético é a modalidade que ocupa mais espaço, sendo possível ao leitor encontrar-se com os motivos do silêncio e da oração (Alexandrina Pereira, Carlos Bondoso, Maurícia Teles da Silva), do elogio e respeito pelo exemplo do poeta eremita (António Calado, Arnaldo Ruaz, Elmano Gomes, Inácio Lagarto, Isabel Melo, José-António Chocolate, Luís Pinho), do trajecto pessoal em momento de apreciação (Bento Passinhas, José Raposo), do deslumbramento pela Arrábida e pela palavra que ela sugere (Célia Abreu, Eduarda Gonçalves, Isabel Nunes, Linda Neto) ou da reflexão sobre a humana condição (Fernando Alagoa), por vezes cruzando-se várias linhas num mesmo autor.
A pintura e o desenho estão também presentes nesta antologia através da reprodução de quatro telas de António Galrinho sujeitas ao tema da crucifixão, cuja riqueza simbólica foi tão cara ao poeta franciscano que incorporou a cruz no seu nome religioso, e de sete desenhos de Dália Vale Rego rondando a simplicidade e o despojamento, legendados com versos do homenageado.
O cunho ensaístico está presente em dois textos, a abrir e a encerrar a obra: o primeiro (que assino), abordando a inquietação frutificadora que dominou Frei Agostinho da Cruz nas suas andanças serranas e a chegada da Arrábida à tradição literária, ocupando-se o último, subscrito por Helena Fragôso de Mattos, do legado e recepção da obra agostiniana, particularizando algumas referências ligadas à história local sadina.
A adesão de poetas e artistas contemporâneos à temática trazida pelo “capuchinho da Arrábida” (assim apelidado por Vitorino Nemésio) bem prova a actualidade de muitas das suas considerações e do seu olhar sobre o mundo e sobre o humano - só uma possibilidade de encontro com o silêncio traz a liberdade do supremo saber e do descobrir como se deve o homem (re)compor. Ou, pegando nos versos de Alexandrina Pereira: “É no silêncio que nasce a oração / É na fé que a alma se alimenta / (...) / O olhar do poeta vagueando / (...) / Segue os atalhos em busca do ‘eu’ / Encontra-o ao olhar o céu.”
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 722, 2021-10-27, p. 5.