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terça-feira, 15 de maio de 2012

Vasco Graça Moura apresenta "Os Lusíadas" a "gente nova"


Imaginemos a explicação da estrutura externa do poema épico de Camões apresentada da seguinte forma: “Para o fazer, Camões usou a oitava / Que é feita de oito versos a rimar. / Até ao sexto as rimas alternava, / Nos dois finais a rima vai a par. / Com oitavas assim, organizava / Essa história que tinha de contar / Em cantos que são dez e a nós, ao lê-los, / Espanta como pôde ele escrevê-los.” Fácil é ver que essa estrutura é explicada numa oitava, com versos decassílabos, seguindo o esquema rimático que nela explicado – os seis versos em rima alternada e os dois últimos em rima emparelhada. Mais acrescenta que a obra se apresenta em dez cantos, associando o espanto perante tal maravilha artística, operação estética de engenharia da palavra.
Quem apresenta Os Lusíadas desta maneira não pode ser poeta menor, sobretudo se se souber que, em centena e meia de páginas, ao longo de 383 estâncias, numa estrutura que compreende dez cantos e uma introdução, aquilo com que o leitor se confronta é com uma apresentação adaptada da epopeia camoniana. Seu autor é Vasco Graça Moura e a obra intitula-se ‘Os Lusíadas’ para gente nova (Lisboa: Gradiva, 2012).
Mais uma adaptação do épico? Sim, mais uma adaptação do épico, sem dúvida. Mas uma adaptação diferente, que dialoga com o poema camoniano permanentemente, que não esconde a voz do poeta renascentista nem se lhe sobrepõe, que não a distorce num exagero de simplificação, que não lhe retira nem belisca o ritmo em que o verso se embala, uma edição a pensar na “gente nova”, seja o destinatário definido pelo escalão etário ou por uma outra predisposição para embarcar na viagem a ver o que Camões dá.
Em nota introdutória, Vasco Graça Moura expõe as intenções, depois de dedicar o escrito aos netos: como motivação para este trabalho, “a confrangedora desvalorização dos clássicos”, “a impreparação de muitos professores”, a complexidade da “matéria verbal do poema”, a extensão da epopeia e uma certa “renitência enfadada” para com os autores portugueses; como trabalho sobre Camões, “a ideia de preparar ‘uns’ Lusíadas para os mais novos, reduzindo-lhes a extensão em cerca de dois terços, estruturando os episódios mais conhecidos em termos bastante simplificados, enfim procurando explicar, comentar, interpretar em termos muito acessíveis as passagens principais da epopeia, mas fazendo-o também em oitava rima de matriz camoniana, de modo a que os leitores mais novos, digamos entre os 12 e os 15 anos, possam ‘entrar’ mais fácil e amenamente na matéria do poema.”
Logo as primeiras dezoito estrofes, sob o título de “Sabemos muito pouco de Camões”, brotam como uma introdução ao poema e ao próprio poeta, abordando itens como a escassez biográfica de Camões e o destaque merecido pela sua obra, o conteúdo histórico do poema, o conceito de epopeia e de herói colectivo, a estrutura externa do poema, a apresentação das partes que constituem um poema épico, os planos narrativos, a contextualização histórica, a justificação do uso da mitologia, o contributo camoniano para o enriquecimento da língua portuguesa, as influências clássicas e o assunto que vai dominar o poema. Interessante é a aproximação feita aos tempos de hoje para se explicar o conceito de herói ou esse enlaçar entre os humanos e os deuses ou as ninfas – “Parece hoje uma banda desenhada / E afinal a gente não estranha / Que o Super-Homem voe, e nos agrada / O Senhor dos Anéis, o Homem-Aranha, / E tantos divertindo a criançada / Com repentina e mágica façanha, / Usando seus poderes sensacionais, / Batman, Harry Potter, muitos mais…” [Quando os meus alunos passearam nesta série das dezoito estrofes iniciais, o resultado foi interessante – afinal, em verso também se pode falar de coisas mais prosaicas, a linguagem é acessível, é preciso ser um grande artista para escrever isto! Palavras deles…]
Depois, o leitor entra nos cantos, oscilando esta adaptação entre versos e estrofes camonianos (impressos em itálico) e outros da lavra de Graça Moura, em redondo. Actualização e simplificação da linguagem, adequação da fraseologia, mas também explicação e remissões para outros saberes que associam a história e outras artes – repare-se na chamada de atenção para a descrição de Tritão, no canto sexto: “Notai como Camões logo o retrata / Juntando várias criaturas / Marinhas cujas formas ele engata, / Umas mais pegajosas, outras duras; / Arcimboldo, o pintor, andava à cata / Desse processo de pintar figuras, / E é nesse estilo que Camões desenha / Dando a Tritão uma aparência estranha.” Bastará ler a adaptação de Graça Moura, tomando palavras de Camões para a apresentação de Tritão nas estrofes que sucedem a esta ou, então, recorrer a Os Lusíadas (VI, 17-19) para se ver um retrato digno da pintura de Arcimboldo construído a partir da tela em que se oferecem as palavras de Camões!
Os versos de Graça Moura surgem frequentemente como a ponte para um acesso fácil à genialidade do épico – atente-se, por exemplo, nos sublinhados que surgem no final do episódio dos Doze de Inglaterra (onde até se recorre ao nascimento do futebol), afirmando-se que “Camões descreve a luta e dá-lhe cor, / E som, e movimento e um certo humor”, ou ao longo do episódio da tempestade, quando se diz que “São versos geniais: o movimento / Dos vagalhões e o rasgar das velas, / Os rugidos do mar, a chuva, o vento, / Os mastros a quebrar, mais as cautelas / Dos homens num esforço violento”; atente-se ainda no ambiente de sensualidade sugerido pelo episódio da Ilha dos Amores, convenientemente explicado como imaginado, onde as ninfas desfilam num jogo de atracções e de desnudamento, já que “Iam deixando então cair as suas / Roupagens pelo chão, aqui, ali, / E ao fazerem assim ficavam nuas / Ou quase, descuidando-se de si, / Maminhas a saltar duas a duas, / Belos rabinhos, bocas de rubi, / Cabelos de oiro, a pele como cetim / E grinaldas de rosas e jasmim.”
Da mesma forma que o início desta adaptação recorre às duas estrofes que abrem Os Lusíadas também os dois últimos versos desta adaptação são de Camões – “De sorte que Alexandre em vós se veja, / Sem à dita de Aquiles ter inveja.” Uma forma respeitosa de subordinar esta apresentação do épico à sua própria palavra, ao seu próprio dizer, dando-lhe a primazia na abertura e no encerramento do poema narrativo!
Mas o gesto de Vasco Graça Moura na admiração pelo pulsar da palavra camoniana vai mais longe ao ter escolhido este título para assinalar o seu 50º aniversário como autor (desde que, em 1963, publicou o volume de poesia Modo mudando), justa homenagem a um outro poeta, à obra maior da literatura portuguesa e à língua portuguesa. Se a adaptação d’Os Lusíadas feita por João de Barros nos anos 30 do século passado tem sido vista como a grande divulgadora da epopeia camoniana até hoje, não me custa admitir que este arranjo de Vasco Graça Moura alcance idêntico patamar, tal é o engenho com que foi concebido, tal é a sensibilidade que apresenta Camões como trunfo para o convívio com os leitores do século XXI!

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia” dez cantos depois

A obra de Gonçalo M. Tavares Uma Viagem à Índia (Alfragide: Leya / Caminho, 2010) é daquelas que se começa a ler e não se descansa enquanto se não chega ao fim (aí incluindo o prefácio de Eduardo Lourenço), apesar de o seu autor, há dias, ter dito em Palmela que não seria necessário ler esta obra continuada, antes se podia começar num qualquer dos cantos que a alimentam.
O livro conclui com o verso “Bloom, o nosso herói”, em jeito de síntese do que foi toda a narrativa, uma apresentação das vivências de Bloom no seu itinerário pela vida e na sua viagem à Índia. Herói do século XXI, Bloom ruma para a Índia em busca da purificação. E, quando se pensa que tudo vai ser grandioso, vemos o herói a concluir a sua viagem em Lisboa, ofertando a sua mala com um exemplar raro do Mahabarata a um idoso desconhecido, na rua, e sabendo que é procurado pela polícia devido a dois crimes cometidos – assassínio do pai (imagem edipiana), que tinha assassinado Mary (mulher que Bloom amava, qual história de Pedro e Inês), e assassínio de uma prostituta em Paris.
O percurso de Bloom, numa narrativa várias vezes apelidada como epopeia, tem dois momentos importantes: a crença na perfeição e na purificação, buscada algures na Índia, depois de sentir a culpa do primeiro assassinato, e a desilusão trazida, depois de verificar que o mestre supostamente purificador era feito da matéria de todos os homens, roubava e conspirava. A decepção é forte, pois foi o resultado inesperado num destino onde era desejado o paraíso ou a utopia.
Bloom acaba perto do suicídio, impedido pela intervenção de uma mulher, aparente anjo salvador, apesar de ficar dito que “nada que aconteça poderá impedir o definitivo tédio de Bloom”. Com ele, apenas dele, só o velho rádio que pertencera ao pai, que “nem com a viagem voltou a funcionar”, imagem de uma purificação e de uma comunicação impossível, ironia sobre a solidão e a falta de companhia.
Neste trajecto sobre o homem só, há espaço para a reflexão sobre o mal e a maldade, numa viagem frequentemente pelo escabroso, pelas pedras que salpicam a vida. Se o texto se conclui com o termo “herói”, algo que rivaliza com a “inveja” que finaliza Os Lusíadas, certo é que, na lista de palavras que surge no final da obra como “Melancolia contemporânea – um itinerário”, a partir de pistas lançadas nas várias partes da história, a primeira é “razão”, mas a última é “tédio”, termo que, juntamente com “natureza”, tem o maior número de ocorrências nesse itinerário. Irónico, como o destino.
A epopeia de Bloom lembra a epopeia de Os Lusíadas, não apenas pela organização em dez cantos, em que cada um deles tem o mesmo número de estrofes que o poema camoniano, mas também porque o leitor consegue associar passos entre os dois poemas narrativos: os enganos e conspirações para atingir o herói, a ilha dos Amores parisiense, a existência de aliados, o feito “épico” várias vezes assinalado, as reflexões sobre o homem, a viagem, a história de Pedro e Inês (ou de Bloom e Mary), as reflexões sobre a guerra…
Livro de aprendizagem, num percurso repleto de máximas, bem se pode dele dizer que acaba por ser a epopeia do homem do século XXI, que não corre por grandes feitos, que sobrevive no meio de agressividades várias, que se desorienta por falta de pontos de ancoragem.