quinta-feira, 29 de outubro de 2020

História(s) do Bairro de Troino

 

Em 10 de Janeiro de 1867, no Distrito de Évora, Eça de Queirós escrevia: “Na história, o povo deve ser tudo; as individualidades, pouco.” E justificava: “O que nós queremos saber é o espírito das gerações. O que a nossa curiosidade pede é ver como o passado compreendeu as coisas vitais da humanidade: a família, o trabalho, a educação, as instituições.” A questão relacionava-se com aquilo que era (é) designado por “história oficial”, versão de que Eça convidava a desconfiar.

Vem esta evocação a propósito do mais recente livro de história local dedicado a Setúbal, O Bairro de Troino - Contributos para a sua História, assinado pelos historiadores Diogo Ferreira e João Pedro Santos e pelo “troineiro” Eduardo Silva, que também patrocinou a edição.

A obra, fortemente ilustrada e sobre um acervo bibliográfico vasto, assenta em dois vectores: o primeiro, de investigação histórica, em cinco capítulos, apresenta a narrativa do bairro desde a origem toponímica, passando pela sua ligação e inserção na urbe, pela estrutura social, por episódios da resistência política do século XX e pelo património construído, e tem a assinatura de Diogo Ferreira e de João Santos; o segundo, de cunho eminentemente memorialístico, assente numa visão emotiva e vivida, traz o testemunho de Eduardo Silva, nascido no bairro no final da década de 1930.

O leitor pode assistir à evolução e papel daquele território na construção da cidade, desde o tempo em que era considerado um espaço mais ou menos marginal, de arrabalde, até ao momento em que se impôs como espaço privilegiado de uma comunidade ligada à pesca, chegando à identidade administrativa de freguesia, desenvolvendo-se industrial e comercialmente. Interessante se torna visualizar o “caleidoscópio social”, abordando as áreas profissionais predominantes e a sua identidade: a indústria do mar (o pescador e a sua comunidade, condições de vida, operariado conserveiro, construção naval - havendo espaço para um dos autores homenagear um seu antepassado que na construção de embarcações se destacou), o pequeno comércio (com destaque para a mercearia “Confiança”, hoje recuperada e funcionando como mostra musealizada, ou para espaços de convívio como os cafés, alcançando particular interesse testemunhal e evocativo o texto sobre os matraquilhos na “Taberna do Luciano”, devido a Paulo Anjos), a religiosidade (presente no historial e registo de vivências da festa de Nossa Senhora da Arrábida). Igualmente importante é o capítulo dedicado àqueles que foram incomodados por defenderem mudanças e ideias, sempre com a perseguição policial no seu encalço: de grevistas ou libertários a revolucionários ou heróis, os seus nomes saltam de uma consciência de classe e de humanidade com a qual nem sempre o poder concordou. Sobre o património arquitectónico, percebe-se que a Anunciada (freguesia a que pertence Troino) é rica de história e detém marcos que configuram a identidade setubalense, haja em vista referências como a igreja da Anunciada, a Fonte Nova, o Convento de Jesus, a Casa dos Pescadores ou o Orfanato Municipal, entre outros, em descrições que englobam a história e as histórias que lhes estão associadas.

Finalmente, a escrita mais memorialística de Eduardo Silva percorre muitos dos aspectos que forjaram a infância e juventude do autor, indiciando forte ligação ao bairro - por ali passa um sentido de pertença muito visível, a informação toponímica, os jogos infantis, alguns naturais do bairro que se têm destacado em diversas áreas, bem como diversas profissões entretanto desaparecidas.

Esta obra consegue aliar o que existe em anteriores investigações a novas histórias e juntar o rigor pretendido na informação histórica e a emoção dos que a escrevem, regendo-se por uma leitura acessível, levando o leitor a estar muito próximo do mundo e da história de que se fala.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 496, 2020-10-29, pg. 10.


terça-feira, 27 de outubro de 2020

Rostos (206) - D. Manuel Martins, em Setúbal

 

D. Manuel Martins (1927-2017), em escultura de Maria José Brito, frente à Sé de Setúbal (Igreja de Santa Maria), descerrada ontem, quando passaram 45 anos sobre a sua tomada de posse como primeiro bispo de Setúbal (1975-1998), iniciativa da Câmara Municipal de Setúbal e da Diocese de Setúbal.


sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Maria Cecília Correia: a felicidade pela escrita



Na revista Mulher - Modas e Bordados de 30 de Julho de 1975, Maria Cecília Correia (1919-1993) justificava “Porque escrevo para crianças”. A crónica relacionava-se com a escrita destinada ao público infanto-juvenil, por que a autora era mais conhecida, sobretudo a partir de 1953, ano do seu primeiro livro, Histórias da minha rua, ilustrado por Maria Keil.

Atribuindo uma parte da responsabilidade de ser escritora a “um dos poucos sobreviventes do Orpheu”, que se sabe ter sido o açoriano Armando Côrtes-Rodrigues (1891-1971), confessa, quase no início do texto: “Escrever foi, para mim, sempre um prazer. Escrever-Comunicar. Falar para.” Se podemos ver este deleite nas pequenas narrativas que corporizam o livro de 1953 (por onde passam as plantas, os animais, as pessoas e a simplicidade da vida), não é menos verdade que esse “prazer” ressalta também em Pretérito Presente, publicado em 1976 (reeditado em 2019 pelo Grupo de Estudos Maria Cecília Correia, aquando da passagem do centenário de nascimento), que não tem como destinatário o público infantil.

De textos curtos, nele aparecem fragmentos de diário, retalhos de memórias, cartas, poemas, pequenas narrativas da vida, num enredo que entrelaça vivências, espaços, família e a própria narradora. Pretérito Presente é, aliás, um título que nos sugere essa mistura de momentos, encontrando-se o passado e o presente através da escrita. As histórias fazem-se a partir de coisas simples (um botão esquecido pode ser um pretexto), de passeios a pé, de viagens, de recordações familiares, de cenas presenciadas, de imaginação. O prazer da escrita surge em cada momento, sublinhado na notação dos sentidos - pelo tacto inebriante (“o vento ali era um companheiro agradável e os cabelos entraram logo no jogo, bailando com os empurrões”), pelos aromas recebidos (“este cheiro das ervas da Arrábida penetra-me como a saudade dos que comigo andaram e já aqui se não encontram”), pelo sabor apetecido (“espremo laranjas no velho cone de vidro, rodando, rodando, apertando as mãos, chupando o que fica”), pela musicalidade da natureza (“ouço o riso dos regatos”), pela emergência da visão (“como eu tenho fome de ver camélias na árvore!”).

A Arrábida marca presença na obra (Maria Cecília Correia adquiriu quinta em Azeitão em 1964, aí construindo casa de férias), ancoradouro feliz, tela de plantas variegadas (“paredes cobertas de folhas verdes, murta, alecrim, folhado”), ponto de partida para outras incursões - praia de Galapos, mercado de Setúbal, feira de Pinhal Novo, festa de Palmela, por exemplo - e charneira com o mundo dos outros - como foi o momento de fascínio quando ouviu o coveiro de Azeitão dizer, em frente da campa de Sebastião da Gama, “quero levar para minha casa uma poda da roseira do nosso Sebastiãozinho”.

A escrita de Maria Cecília Correia rejeita o esquecimento e valoriza uma vida com a Natureza. Só assim se compreende o desabafo que faz à sua amiga Maria Eulália de Macedo: “Pois o que é o envelhecer? Pensar que um dia tudo me pode ser indiferente! Que os cheiros não serão uma parte do amor, que o Vento me será aborrecido, que o Sol será sinónimo de espirros! Que coisa mais triste! Enquanto o meu corpo e qualquer parte da Terra formos um, a coisa não está mal.”

Um livro em que correm a sensibilidade e a beleza das coisas simples, numa escrita que é ponto de encontro com a felicidade.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 491, 2020-10-22, pg. 2.


domingo, 18 de outubro de 2020

Papa Francisco: a vida como “arte do encontro”

 

 

“Entre as causas mais importantes da crise do mundo moderno, contam-se uma consciência humana anestesiada e o afastamento dos valores religiosos, bem como o predomínio do individualismo e das filosofias materialistas que divinizam o homem e colocam os valores mundanos e materiais no lugar dos princípios supremos e transcendentes.” A citação provém de documento assinado em Abu Dhabi em 4 de Fevereiro de 2019 pelo Papa Francisco e pelo Imã Ahmad Al-Tayyeb, e surge incluída quase no final da nova encíclica, Fratelli Tutti (Paulinas Editora, 2020), subscrita pelo Papa Francisco em Assis, junto do túmulo do fundador dos Franciscanos, em 3 de Outubro.

O subtítulo, “Sobre a fraternidade e a amizade social”, esclarece o conteúdo e o espírito da frase franciscana que titula a comunicação, “Todos irmãos”, e o facto de, nos oito capítulos que a compõem, várias serem as referências ao encontro de Abu Dhabi bem prova o desafio dessa “amizade social” indispensável para a aproximação das culturas e das religiões, em favor de uma humanidade outra. Este discurso refere numerosos documentos já divulgados por este e anteriores papados, forma de chamar a atenção para a pertinência que a questão assume cada vez mais e de lembrar que os princípios aqui defendidos já têm sido comunicados ao mundo.

Se dúvidas houvesse sobre a relevância desta mensagem, bastaria pensarmos no que a nível mundial se tem passado quanto à pandemia, aspecto acentuado logo no início: “Quando estava a redigir esta carta, irrompeu de forma inesperada a pandemia da Covid-19, que deixou a descoberto as nossas falsas seguranças. Por cima das várias respostas que deram os diferentes países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto.” Ora, esta dispersão num assunto de saúde pública a nível universal deveria constituir uma lição para todos e espoletar “um anseio mundial de fraternidade”.

Usando a primeira pessoa do singular, o Papa torna-se mais próximo de cada um dos leitores, desafiando-o a pensar com ele e a sentir a co-responsabilização na mudança, porque todos temos vindo a ser co-responsáveis no acontecido: a globalização que nos torna mais sozinhos, o mercado que nos domina, a perda do sentido de vizinhança, a colonização cultural, a política dependente do “marketing”, o racismo (um “vírus”) assumido ou dissimulado, os direitos humanos muito pouco universais, a desigualdade de direitos entre homens e mulheres, a cedência ao poder das tecnologias, o fascínio do virtual, a guerra que “deixa o mundo pior do que o encontrou”... num “mundo que corre sem um rumo comum”, desencontrando-se da realidade, não assumindo as migrações, destruindo a auto-estima, aniquilando a esperança.

A parábola do “bom samaritano” do evangelho de Lucas é mote, desafiando para um olhar sobre a realidade, incentivando a que não se passe ao lado, se preste atenção ao próximo, se olhe para o sofrimento, a que sejamos agentes da dignidade. O desafio provoca o nosso estatuto - “dar-se conta de quanto vale um ser humano, de quanto vale uma pessoa, sempre e em qualquer circunstância.”

Citando Vinicius de Moraes, o Papa defende a vida como “arte do encontro”, obrigando-nos a pensar, a sermos criteriosos nas escolhas que fazemos e nos governantes que elegemos, a tornarmo-nos agentes do bem. Esta missiva não é só para uma facção, é ecuménica, é para todos (governantes e “media” incluídos), serve para todas as confissões. A questão é querer-se que o mundo seja outra coisa, um espaço onde mais sintamos a humanidade que temos de ajudar a construir.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 485, 2020-10-14, pg. 10.


domingo, 11 de outubro de 2020

Memória de António Maria Eusébio, o Calafate e Cantador de Setúbal

 


Em 1908, Henrique das Neves (1841-1915) publicava em Lisboa a obra O Cantador de Setúbal António Eusébio (Calafate) - Apreciações críticas da sua personalidade coligidas da imprensa e de cartas particulares, título indispensável para o conhecimento do poeta evocado, pela quantidade de testemunhos recolhidos, pela diversidade de abordagens, pelo facto de a maior parte dos contributos advirem de publicações periódicas, correspondência ou momentos circunstanciais, que correriam o risco de se perder se esta iniciativa não tivesse existido.

Henrique das Neves, que se reformou como general, esteve no exército em Setúbal, aqui tendo feito amizade com António Maria Eusébio (1819-1911), graças à qual o nome do poeta “Calafate” pôde ficar registado em adequada bibliografia. A mais antiga referência escrita ao “Cantador de Setúbal” é assinada por Henrique das Neves no periódico Jornal de Setúbal, em Fevereiro de 1868, aí se descrevendo as suas qualidades e reproduzindo um conjunto de sete décimas. Três décadas passariam e, em 1901, o mesmo signatário avançou com a publicação Versos do Cantador de Setúbal, que mereceu prefácio de Guerra Junqueiro. A partir daí, a obra do Calafate passou a ser publicada em folhetos para venda na rua e nas feiras, assim constituindo um contributo para a subsistência do poeta octogenário e de sua mulher até ao falecimento de ambos no mesmo ano.

Para assinalar o bicentenário do nascimento do poeta, Daniel Pires e Ana Margarida Chora organizaram a obra António Maria Eusébio, o Calafate - Uma evocação, recentemente dada à estampa pelo Centro de Estudos Bocageanos, trazendo para o leitor de hoje grande parte dos textos que Henrique das Neves coligiu em 1908 e acrescentando outros publicados após essa data, com passagem por diversos arquivos. A abrir esta recolha, Daniel Pires considera que a poesia do Calafate “reflecte valores éticos elevados, pugna pela justiça social, por direitos humanos inalienáveis, tantas vezes postergados, então, no país”, enquanto Ana Chora estabelece as diferenças entre a poesia tradicional e os poetas populares, sendo que a estes, na época de António Eusébio, “as elites prestaram particular atenção”, haja em vista “a espontaneidade, a filosofia popular e a ironia” ou, “na forma, uma musicalidade imperativa e um ritmo que se precipita em função da própria lógica do conteúdo” que os caracterizam.

Classificado como “herói do improviso” (Manuel Envia), um dos “Homeros da viola” (Afonso Lopes Vieira), próximo de Nicolau Tolentino (Henrique das Neves), o “último troveiro” (Augusto da Costa), o detentor da “beleza única, a beleza moral” (Guerra Junqueiro), um “repentista e improvisador extraordinário” (Fernando Cardoso), “um caso de inteligência poética” (Fialho de Almeida), o poeta António Maria Eusébio foi longe, com uma recepção transversal a toda a sociedade. Leite de Vasconcelos, que palmilhou o país na busca da cultura popular, leu-o e registou: “tem grande poder de observação - pinta tudo o que vê em volta de si, discute os assuntos que no momento preocupam a opinião pública, verbera, com mordaz ironia, o que na vida ou na sociedade lhe não agrada.” E estas são, de facto, algumas das marcas que a sua poesia revela notavelmente.

Esta obra organizada por Daniel Pires e Ana Margarida Chora colige cerca de oitenta contributos sobre o Calafate, da prosa à poesia, da memória à notícia, do ensaio à biografia, tornando-se (apesar de alguns descuidos nas referências bibliográficas apresentadas) um elemento indispensável para o conhecimento da importância do Cantador de Setúbal. Uma bela forma de o evocar, dando-o a conhecer!

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 481, 2020-10-08, pg. 10.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Os dias de Emília Bravo, aliás, Maria Judite de Carvalho



Entre 13 de Janeiro de 1971 e 19 de Junho de 1974, Emília Bravo foi assídua no suplemento “Mulher” do Diário de Lisboa, colaboração que passou por três fases: a primeira, sob o título “Diário de uma dona de casa”, até 29 de Setembro de 1971, espaço semanal com anotações de cada um dos dias da semana; a segunda, entre 6 de Outubro de 1971 e 6 de Fevereiro de 1972, “Diário”, registos publicados ao ritmo de um por dia; a terceira, a partir 7 de Fevereiro de 1972, que, não abandonando o tom dos textos anteriores, passou, contudo, a atribuir título próprio a cada um deles.

Emília Bravo, pseudónimo criado por Maria Judite de Carvalho (1921-1998),  personifica a autoria destas notas do quotidiano, reunidas desde 2002 no volume Diários de Emília Bravo, organizado por Ruth Navas (com reedição em 2019).

A forma diarística que estas crónicas apresentam desde logo se deixa marcar pelo problema do eu que escreve, um eu ficcional. Por outro lado, a autora não fala de si, mas dos outros, do mundo, o que anula a marca do diarismo que é o relato do eu. Assim, o livro é um miradouro de onde se vê o mundo, particularmente a cidade (Lisboa) e as personagens que a fazem, mulheres e homens inseridos numa vida urbana, onde ganha espaço a “dona de casa”, mulher que luta (pela vida), que caminha na sua solidão, cabendo a Emília Bravo reflectir e questionar o observado.

Os motivos chegam à cronista através de três fontes importantes: o que observa nas suas caminhadas pela cidade, o que recebe via televisão, o que apreende nos jornais e revistas que lê. O discurso gira em torno das situações do quotidiano, aquelas que fazem parte de todas as vidas - a casa, o estatuto da mulher e do homem, a moda, a sobrevivência, os saldos, as prestações, a confusão, o supérfluo, o consumo, o tempo, os piropos, o sonho. Frequentemente, as considerações feitas surgem a partir de vozes de pessoas com quem Emília se cruza (amigas, conhecidas, anónimas), normalmente num tom pessimista, mas também de denúncia de ocorrências menos boas numa sociedade de que ela mesma faz parte.

O leitor assiste a um progressivo construir da imagem da mulher interventiva e autónoma, independentemente das razões que o provocaram: quase no final, em crónica de 23 de Janeiro de 1974 intitulada “Como vai ser?” (pergunta indicadora da alteração), a sociedade confronta-se com a mudança - “é que as senhoras de sua casa, as donas de casa e mais nada têm vindo a desaparecer, e não só por causa da emancipação da mulher, mas também (mas principalmente) devido ao custo de vida.”

Sobre o início da década de 1970, tempo destas crónicas, passou meio século. Contudo, muitas das observações poderiam ser transpostas para hoje, prova de que outras tantas questões não tiveram resolução nestes 50 anos. Um exemplo? Este, de Junho de 1971: “Poluição é uma palavra que está na ordem do dia em todo o mundo. Muito se fala de poluição. Mas dar-nos-emos nós conta do seu valor de ameaça? Não pensaremos para connosco, encolhendo os ombros, que se trata de uma coisa vaga, mais um papão que, decerto, não é no fundo tão mau como o pintam ou talvez nem exista? Alguém há de dar um jeito, pensamos. Há sempre alguém que dá um jeito, não é verdade? Pois esperemos que haja esse alguém, porque ela caminha a passos largos.”

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: 476, 2020-09-30, p. 5.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Bernardo Santareno e o “Setúbal”

 

 

Entre 1957 e 1959, António Martinho do Rosário (1920-1980), escalabitano, exercia nas campanhas de pesca do bacalhau como médico de frota, servindo o arrastão “David Melgueiro” (1957), o navio de pesca “Senhora do Mar” (1958) e o navio-hospital “Gil Eannes” (1959). Esta função levou-o a transformar em literatura o vivido e o sentido, sob o pseudónimo de Bernardo Santareno, retratando os marítimos num conjunto de crónicas no título Nos Mares do Fim do Mundo (1959, reeditado em 2016), a que associou ainda uma peça de teatro, também de 1959, O Lugre.

Nos Mares do Fim do Mundo, misturando a distância geográfica e o sofrimento, assume-se o resultado de “doze meses com os pescadores bacalhoeiros portugueses, por bancos da Terra Nova e da Gronelândia”, texto que “foi, em grande parte, escrito a bordo”.

Alguns capítulos assumem uma escrita diarística, relacionada com pequenos acontecimentos, momentos de reflexão, descrição de personagens ou relato de momentos fortes da companha, com a cor da dureza, do sofrimento, das angústias. A emoção corre atrás das relações sociais, ora tensas ora amistosas; vive nas histórias pessoais, muitas vezes confidenciadas ao médico; perde-se na contemplação do mar, esteja calmo ou insultuoso; naufraga atrás das fragilidades humanas com o homem que cai ao mar... Para intensificar essa emoção, predomina a frase curta, muitas vezes eivada de reticências e de exclamações, aqui e ali com o discurso directo dos falares dos pescadores, frequentemente mediada pelo pulsar do próprio narrador.

A figura da mulher perpassa ao longo da obra, associada à viuvez real ou à viuvez trazida pela solidão e pela ausência, dominando o penúltimo capítulo, estampada na imagem da esposa, da filha ou da noiva, apresentada como símbolo de companhia, pilar forte para a família e para a manutenção da casa enquanto a campanha dura, mas também com fragilidades como a doença ou o adultério.

Pela experiência do médico Martinho do Rosário (cujo centenário de nascimento ocorre em 2020) passou uma figura ligada às terras do Sado, alcunhado “Setúbal”. Mais do que saber quem motivou este texto, é importante o caso humano: uma década antes, numa briga em que não faltara o vinho, o “Setúbal”, sentindo-se ofendido e agredido (navalhada no pescoço), cravou uma faca no peito do adversário, que morreu. Preso, passados meses foi absolvido e ingressou na pesca do bacalhau - “Por cá anda, simiesco, duma fealdade quasimodeana, o fígado e o rosto moídos em álcool, uma palavra brejeira sempre nos lábios... Coitado do ‘Setúbal’! Com mais de quarenta anos que já tem, ainda trabalha como moço, ao lado de rapazitos com dezassete ou dezoito que, sem quebras, o apupam: ‘Ó Setúbal, queres um bagaço? Atão salta, faz mais uma cambalhota!...’” É este gesto solidário de desprezo e gozo que os outros sentem pelo “Setúbal" que indigna o narrador: “A minha vontade era chicoteá-los, duro e forte, até ver correr sangue!”

Bernardo Santareno leva até ao âmago a noção do sofrimento e da dor, não só trazidos pelas condições de risco e de dureza vividas, mas também pela irracionalidade com que o homem muitas vezes irriga a maldade, chegando a ser ele mesmo o actor (e o autor) do desprezo e da destruição de si mesmo, quando se impunha que interviesse em prol do bem-estar da companha e contra a solidão, aquele “poço-vertigem, aberto no centro da alma”.

Um livro intenso, a (re)ler, também pelo que ele representa para um tempo importante do que foi a actividade pesqueira portuguesa!

J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 471, 2020-09-23, pg. 2.