As
dez personagens reveladas no quinto volume de Grandes Entrevistas da História (em publicação a cargo do semanário
Expresso), que abrange o espaço
temporal entre 1971 e 1990, são: Margaret Thatcher (Terry Coleman, The Guardian, 02-11-1971), Stanley
Kubrick (Gene Siskel, Chicago Tribune,
13-02-1972), Yasser Arafat (Oriana Fallaci, Intervista
con la Storia, 1974), Álvaro Cunhal (Oriana Fallaci, L’Europeo, 06-06-1975), Amália Rodrigues (Miguel Esteves Cardoso, Se7e, 24-11-1982), Pablo Escobar
(Yolanda Ruiz, RCN Radio, 1988), Steve Jobs (Bob Burlingham e George Gendron, Inc., 04-1989), Jack Nicholson (Gene
Siskel, Chicago Tribune, 12-08-1990),
Luciano Pavarotti (Màrius Carol, Magazine,
02-09-1990) e Ayrton Senna (Gerald Donaldson, McLaren, 09-1990).
Na
entrevista com Amália, além de surpreender o tom de abertura e de rapidez com
que a conversa se desenrola, é ainda de enaltecer o formato de texto devido a
Miguel Esteves Cardoso, perguntas e respostas segmentadas em dez partes, cada
uma delas tendo como título um mandamento, resultante do conteúdo e da dose de
revelação que surge nas respectivas respostas. Uma estratégia coerente, pois
que o jornalista se metaforiza em profeta, logo no início do texto: “A partir
de hoje, podem chamar-me Moisés. Subi à montanha de São Bento e a Deusa
falou-me e transmitiu-me os seus Mandamentos. Agora esculpo-os numa pedra. Numa
pedrada de divindade e de Fado.” A entrevistada surge em diálogo com as marcas
que já lhe eram habituais, sem certezas, mas num tom pessoal expressivo.
Cantora ou fadista? “Nem uma coisa nem outra. Não sei se sou fadista, se não
sou. Era pequenina e cantava. Um dia disseram-me que aquilo era fado.
Disseram-me que era fado… mas eu não faço questão.” Falará das músicas, de
trivialidades, de histórias, da simbologia que lhe foi atribuída, de poemas e
do que de si ficará para a memória: “Sim, vai em mim essa pieguice, de querer
continuar nas pessoas. A coisa mais bonita que podem dizer de mim, depois de
morta, seria ‘Coitadinha da Amália, já morreu…’! ‘Tadinho’ é uma das palavras
mais portuguesas, gosto muito dela. Tenho essa pieguice porque sei que, depois
de morrer, o universo acaba comigo.” E, no final, um humor brilhante: Esteves
Cardoso quer inverter os papéis e, em vez de lhe pedir uma mensagem final: “A
senhora quer fazer a última pergunta?” Resposta imediata, certeira: “Obrigada,
mas não pergunto nada, com medo das respostas.”
O
outro português entrevistado nesta obra, Álvaro Cunhal, deve a sua entrada ao
trabalho da jornalista italiana Oriana Fallaci. É uma entrevista dura porque
Fallaci assume contestar muitas afirmações de Cunhal, que profere afirmações
polémicas do ponto de vista político (que, aliás, mereceram muitas reservas em
várias latitudes, depois de conhecida a publicação) e mantém um secretismo
assumido quanto à sua vida pessoal. A entrevista tem uma longa introdução, que
a autora preparou para a integrar no seu livro Intervista com la Storia, em que o político português é retratado e
biografado, numa tentativa de explicação da personagem, chegando Fallaci a
interpretar o silêncio sobre o privado como o “gosto pelo mistério [que] surgiu
em consequência do seu passado como conspirador e, também, da tal renúncia que
é tão típica de alguns comunistas”. Cunhal mostrou convicções que, lidas hoje,
acentuam as marcas epocais no vocabulário usado – “nós, comunistas, não
aceitamos o jogo das eleições”, já que elas “pouco ou nada têm a ver com a
dinâmica revolucionária”; “garanto-lhe que em Portugal não haverá um
Parlamento”; “Portugal já não tem qualquer hipótese de estabelecer uma democracia
ao estilo das que vocês têm na Europa ocidental”; “o 25 de Abril não foi um
golpe (…) foi um movimento de forças democráticas no seio do Exército”;
“Portugal não será um país com as liberdades democráticas e os monopólios, não
será companheiro de viagem das vossas democracias burguesas”. Assumiu a sua
concordância com a intervenção soviética na Checoslováquia, a frontalidade com
que respondeu ao embaixador americano sobre a permanência de Portugal na NATO,
dizendo-lhe: “por agora, não queremos discutir esse problema”. Em vários
momentos, a conversa mais parece um jogo de fuga: Fallaci quer saber de onde
veio Cunhal quando chegou a Portugal em 1974 e a resposta mostra-se
evasiva – “Não lhe digo onde estava. Vocês, os
jornalistas, gostam tanto do mistério
como nós, os comunistas”; noutro passo, a jornalista insiste com a ideia do
“imperialismo soviético” e a refutação surge sob a forma de alteração das
regras – “Um dia hei-de entrevistá-la a si acerca do imperialismo soviético”.
De
Oriana Fallaci é ainda a entrevista com Arafat, outro encontro em que as
respostas constituem um enigma sobre a personagem. Uma parte significativa do
texto, no início é a reconstituição possível da história do líder palestiniano
nascido egípcio, que, na conversa, rejeitas várias vezes responder a perguntas
sobre a sua vida pessoal e centra o discurso num jogo em que foge,
frequentemente, ao que lhe é perguntado, mais interessado na luta contra Israel
– “só agora começámos a preparar-nos para o que será uma longa, longuíssima guerra,
uma guerra destinada a prolongar-se por gerações”; “deve perguntar até onde
poderão resistir os israelitas, porque não pararemos até ao dia em que possamos
regressar a casa e tenhamos destruído Israel”. A própria jornalista é vista
como uma representante dos adversários e é desafiada – “Se têm assim tanto
interesse em dar uma pátria aos judeus, dêem-lhes a vossa. Há muita terra na
Europa, na América.” E termina o diálogo com uma quase confissão: “Nunca
encontrei a mulher certa. E agora não é o momento. Casei-me com uma mulher
chamada Palestina.”
O
universo da política tem ainda encontro com Margaret Thatcher, numa entrevista
dominada pelos acontecimentos do momento, a do leite nas escolas, apoio cortado
pelo governo, e pela imagem que da governante se faria. Ressalta uma figura
enérgica, contrapondo às marcas negativas do seu retrato as decisões tomadas em
prol das melhorias, às questões mais problemáticas uma explicação que finda com
a pergunta “não é?”, ao mundo das dificuldades o seu próprio percurso, aos
comentários dos adversários uma certeza – “os insultos dizem mais sobre quem os
profere do que sobre quem é alvo deles, não é?”
Pretendendo
ter intervenção política, sobretudo pelo condicionamento que fez nessa área,
surge Pablo Escobar, o colombiano que associou o seu país ao narcotráfico, com
um discurso que, conjugado com o que se sabia e se veio a saber sobre o
entrevistado, configura situações de vitimização, de paradoxo, de representação,
de discurso para tratar a imagem perante o seu país e o estrangeiro – “sou uma
pessoa que respeita muito as ideias alheias”; “sempre estivemos abertos ao
diálogo e pessoalmente considero que a falta de diálogo é a causa principal da
violência no país”; “existe uma preocupação com o consumo de drogas”; “as
drogas vieram para ficar”; “todas as pessoas acusadas publicamente de pertencer
ao narcotráfico são, na verdade, as únicas pessoas que investem no país, isto
é, as únicas que dão trabalho ao povo da Colômbia”.
Do
mundo do cinema, o encontro é com um realizador, Kubrick, numa entrevista curta
que toma como referência o filme Laranja
Mecânica e a opinião sobre política e ambiente social, sempre na
perspectiva de que a autoridade pode levar à repressão. O outro entrevistado é
Nicholson, o actor que demonstra uma forma sadia de lidar com a fama e com o
sofrimento (real, por razões familiares), bem como com a felicidade (na ternura
com que fala da filha bebé que lhe nascera aos 53 anos, por altura da
entrevista) ou com a opção de viver sozinho. Ainda do mundo do espectáculo é
Pavarotti, o tenor que trouxe a música clássica para os estádios, falando dos
seus prazeres, da sua música e da sua pintura, revelando-se sempre um
imperfeito, um trabalhador incansável a lidar com os seus dotes, um
“superperfeccionista” – “acho sempre que tudo aquilo que faço, por muito bem
que esteja, pode sempre ser melhorado”.
A
entrevista com Ayrton Senna é um encontro com um homem do risco e das manobras
arriscadas. Senna é apresentado como um tímido muito por responsabilidade do
próprio autor da entrevista, que reproduz toda a conversa em discurso
indirecto, só dando a palavra ao entrevistado no final, numa mensagem.
Apresentado com grande dose de humanismo e de carinho pelos seus fãs, Senna
mostra-se em reflexão, oscilando entre o risco e uma maneira própria de lidar
com a fama. No final do encontro, comove-se e fala dos artistas enquanto
símbolo: “Em muitos aspectos, não somos uma realidade para as pessoas, mas um
sonho. É uma coisa que nos fica gravada no pensamento. Mostra-nos até que ponto
podemos ter impacto na vida das pessoas. E, por mais que tentemos dar qualquer
coisa a essas pessoas, nunca será nada, comparado com o que elas sentem por nós
dentro delas e nos seus sonhos. E isso é muito especial… é muito, muito
especial para mim.” Como se sabe, Senna morreria em prova cerca de quatro anos
depois, em 1 de Maio de 1994, no circuito de Imola.
Steve
Jobs não pertence a nenhum dos mundos das outras personagens deste volume.
Ligado às tecnologias, a marcas extraordinárias no universo da informática,
Jobs apresenta-se na luta pela democratização das tecnologias numa perspectiva
de que o público exigirá sempre mais, de inovação nas empresas, de aposta na
criatividade dos colaboradores de abertura para a surpresa da vida. Não é da
entrevista (gerada em 1989), mas o organizador do volume, em nota final, retoma
um pensamento de Jobs, produzido em Junho de 2005, proferido na Universidade de
Stanford, quando ele já sabia estar doente, sem hipótese de recuperar:
“Lembrar-me de que em breve estarei morto é a ferramenta mais importante que
encontrei para me ajudar a tomar as grandes decisões da minha vida. (…)
Lembrarmo-nos de que vamos morrer é a melhor forma que conheço de evitarmos o
engano de acharmos que temos algo a perder.”
Vinte
anos de esperanças, de crenças, de contradições. Um tempo que oscilou entre os
grandes avanços no domínio da tecnologia e as instabilidades oriundas da
política a céu aberto…
Sublinhados
Computador – “Os seres humanos são basicamente fabricantes de
ferramentas, e o computador é a ferramenta mais extraordinária que construímos
até hoje.” [Steve Jobs. Entrevista a Bob Burlingham e George Gendron em Inc. (Abril de 1989). Grandes Entrevistas da História 1971-1990.
Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 108]
Experiência – “Se não adquirirmos um pouco de bom gosto e de
experiência enquanto jovens, nunca mais o faremos. A experiência faz aumentar o
prazer…” [Jack Nicholson. Entrevista a Gene Siskel em Chicago Tribune (12-08-1990). Grandes
Entrevistas da História 1971-1990. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 125]
Melhor – “As pessoas ficam mais motivadas a fazer coisas o melhor possível do
que a fazê-las de forma simplesmente correcta.” [Steve Jobs. Entrevista a Bob
Burlingham e George Gendron em Inc.
(Abril de 1989). Grandes Entrevistas da
História 1971-1990. Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 112]
Passado – “Quando um homem tem um passado extraordinário,
este vem ao de cima mesmo que ele o esconda, pois o passado está gravado no
rosto, nos olhos.” [Oriana Fallaci. Introdução à entrevista de Yasser Arafat,
em Intervista com la Storia (1974). Grandes Entrevistas da História 1971-1990.
Lisboa: “Expresso”, 2014, pg. 36]
Com o Expresso de hoje, o 6º volume