quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Aquilino Ribeiro, no dia de hoje, há 93 anos

Há 93 anos, Aquilino Ribeiro estava em Paris a frequentar a Sorbonne. A Grande Guerra eclodiu no início do Verão e o escritor português registou em diário o que foi a vivência na capital francesa dos primeiros tempos da guerra, num tempo entre 1 de Agosto e 26 de Setembro, mais tarde (1934) publicado sob o título É a guerra. Hoje, Aquilino passou a estar no Panteão, mérito que lhe foi reconhecido pelo seu poder nas letras e na forma de retratar o homem na literatura. Divulgo o excerto desse diário relativo ao dia de hoje de há 93 anos, com Aquilino na efervescência e na tristeza da França, numa reflexão sobre o sofrimento, sobre o outro, sobre a memória, sobre a guerra.

Aquilino Ribeiro visto por Artur Bual (1964), reproduzido a partir de Boletim Cultural (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian – Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas, VI série, nº 5, Novembro.1985)

Sábado, 19 de Setembro [de 1914]
Ansiedade; prossegue a grande batalha ao norte de Reims. Nas gazetas lavra igual alarido ao da semana em que os alemães, ladeando Liege, avançavam nos plainos do Brabante. Então o eminente recontro libertaria a Bélgica, pois não podiam ser apenas fortuitas coincidências aquela dos exércitos se acharem em Waterloo e cair na altura o aniversário da batalha que pôs cobro à tirania sangrenta de Bonaparte. Depois, nos Campos Cataláunicos, em que sucumbiu Atila, os mesmos oráculos descobriram novo signo fatídico da vitória. Agora é a presente batalha que vai rematar a contenda, acabando com Nabucodonosor e as suas hordas.
Ontem e hoje a ansiedade transluzia, como névoa muito fina, nos rostos, nas conversações, no próprio ar, parece, coada mais pelo instinto do que pelo cérebro, uma vez que depois de seis semanas de furibundo e constante combate nada de positivo se sabe sobre a sorte da guerra, como raros são em França os que tiveram notícia de que os seus caíram mortos ou feridos na açougada. Os jornais levam a impudência a dizer que em Berlim o preto é a cor que mais está em moda e que as gazetas alemãs regurgitam com as listas das baixas. E o excelente povo francês, acarneirado por duas molícies, a riqueza e o comodismo, não conclui que, ao contrário do que sucede na imperialista Alemanha, as famílias aqui não são advertidas de quando lhes cumpre pagar aos seus mortos o tributo das lágrimas. Para o Memorial da Glória entram apenas, ao menos neste entretanto, nomes de celebridades de cenáculo, de sacristia ou gente da nobreza. A miuçalha que morre não é digna de ser memorada; o seu nome vai para baixo da terra com o corpo, se este não fica a apodrecer a céu aberto ou não oferece pasto aos corvos; mais tarde, quando muito, se escreverá em lápide de pedra a erguer no adro das igrejas.
A serenidade, a existir de facto, tem esta explicação; sabe-se que caem alemães em barda, pois o proclamam a cada passo os comunicados. Dos franceses, moita; caem do monte; e, como caem do monte, não se sabe; cada um, em particular, não sabe do seu filho, do seu irmão, do marido de Fulana, do cunhado de Beltrana, que são os que lhe falam ao sentimento; está inquieto; mas não alarma ninguém com lutos e prantos. Por isso, quando os jornais falam nos miasmas que se evolam dos mortulhos imensuráveis de Charleroi e do Marne, o francês tem a seráfica ideia de que semelhante fedor provém apenas de carcaças
boches. Não cabe no seu raciocínio que à defesa ou ataque sangrento do inimigo corresponde, com leve diferença, igual morticínio nas fileiras dos seus. Não, lá caem por milhares; cá, por dezenas. Esta proporção algébrica está no âmago duma consciência que, ultrapassando as raias do sacrifício e da abnegação, assiste de venda aos acontecimentos. E eis como se demonstra que podem coexistir no mesmo povo, paredes a meias, nada contraditórios, um estado superior de civilização, gosto requintado, espírito egrégio, malícia, finura de maneiras, e o mais crasso sendeirismo, como enunciámos paralelamente quanto à Alemanha.
Reprimir as demonstrações da dor é virtude; estancar a dor, sublimando-se as almas até tirarem contentamento do holocausto, é literatura barresiana e mais nada. Os alemães podem ser diferentes dos franceses no génio, na bravura, no patriotismo; na dor são irmãos gémeos. Os centros nervosos procedem da mesma cepa ária; mais uns graus ao Norte, menos uns ao Sul, pode variar a capacidade de sofrer de maneira apreciável? Por cima das diferenças físicas a dor nivela o mundo; não são mais igualitárias as religiões.
Devido à cegueira em que anda mergulhado o povo francês quanto ao diagnóstico da guerra, nada mais furta-cores que o seu estado de espírito, amálgama provável de ansiedade, esperança, fanfarronada, transitórios frenesis, desesperos. Uns tantos algarismos e podia ruir o maravilhoso castelo da conformidade. O silêncio, nesta hora, é a grande razão de Estado.
La lutte continue, e é quanto de barométrico se sabe da mortualha.
” (É a guerra. Amadora: Livraria Bertrand, 1975)

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