quinta-feira, 30 de abril de 2020

D. Manuel Martins nas memórias de Eugénio Fonseca



“Nem Setúbal nem o País jamais esqueceram D. Manuel Martins. Recordo que, numa das suas vindas a Setúbal, dois ou três anos após a sua saída, passava um pouco mais das 15 horas, e estávamos, ele e eu, a passear na Avenida Luísa Todi, e, em frente ao mercado, ouviu-se o buzinar estridente de um autocarro. (...) Vimos que era um dos veículos que transportava trabalhadores para a, ainda, Setenave. Os passageiros estavam todos do nosso lado a baterem palmas ao Bispo que viram passar. D. Manuel emocionou-se, mas nada pronunciou, acenou-lhes apenas num gesto de saudação.” Este é um dos parágrafos que surge quase no final da obra Testemunho de duas Vidas Compartilhadas, de Eugénio Fonseca (Paulinas Editora, 2020), título memorialístico em que o autor revê e rememora o tempo e as acções em que participou com o primeiro Bispo de Setúbal durante a sua prelatura.
Colaborador próximo de D. Manuel Martins, não faltariam a Eugénio Fonseca momentos, reflexões ou acontecimentos vividos por ambos para poderem ser partilhados. Logo a iniciar o volume, é o leitor informado de que, em várias conversas entre os dois, a questão das memórias de D. Manuel Martins fora aflorada, tendo mesmo o bispo escolhido um título, curto mas eficaz, como “Pedaços de Mim”, todo ele imbuído do essencial da escrita memorialística - o “eu” que se revê e relembra em fragmentos da vida que assumiram a importância de a justificar e de a dar a conhecer. Contudo, não tendo D. Manuel redigido essas memórias, entendeu Eugénio Fonseca, depois de ouvir amigos, dar a conhecer o relato do que com ele viveu e sentiu - “optei sobretudo por narrar vivências partilhadas pelos dois. (...) Sempre que se proporcionou, reconheço que procurei retirar ilações que podem servir de meditação para os leitores.”
Inevitavelmente, por este livro passam os anos primeiros da diocese de Setúbal e vários dos seus protagonistas - os padres João Alves, Joaquim Sampaio, Álvaro Teixeira, Custódio Rodrigues Pinto. Passam momentos da Assembleia Diocesana, da criação do Fundo de Solidariedade, da criação do Centro Social na antiga igreja da Anunciada, da acção internacional em que D. Manuel esteve envolvido - Comissão Episcopal das Migrações, intervenção em prol de Timor, apoio aos campos de refugiados no Malawi.
Mas este Testemunho de duas Vidas Compartilhadas é muito a história da “conversão” do seu autor. Eugénio Fonseca, que testemunha o seu agradecimento à Comunidade Claretiana de Setúbal, pois cresceu envolvido no ambiente da igreja de S. Sebastião (sob a responsabilidade dessa Comunidade), assume um “nascer de novo” a partir do momento em que encontrou D. Manuel Martins - quando, em 27 de Outubro de 1975, à noite, ocasionalmente, andava o novo bispo a conhecer as ruas sadinas, o que leva o autor a considerar: “associado a muitos outros que vieram a suceder-se, com os seus contextos e pretextos, fizeram-me relacionar esta primeira e fugidia troca de palavras com a relação entre Nicodemos e Jesus.” E, neste percurso “renascido”, Eugénio Fonseca não hesita em mostrar as suas convicções e as suas alterações de opinião, assumindo um percurso próprio de esclarecimento e de intervenção muito assente na experiência vivida com o primeiro Bispo de Setúbal.
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 384, 2020-04-29, pg. 10

segunda-feira, 27 de abril de 2020

A "Gazeta de 1641", "O Setubalense" e nós



Estava-se no mês de Dezembro de 1641 quando saiu o primeiro número da Gazeta em que se relatam as novas todas que houve nesta corte e que vieram de várias partes no mês de Novembro de 1641, título longo para doze páginas de notícias daquele que é o mais antigo periódico português. A partir dessa data, saíram nove edições a ritmo mensal, até que, em Outubro seguinte, assumiu o título de Gazeta das novas de fora do reino, tendo sido publicados catorze números até Agosto de 1648. No número inaugural, em 37 notícias, 26 respeitavam ao Reino e 11 eram “Novas de fora do Reino”.
Os relatos são curtos e acessíveis, não têm título e a divisão entre eles é feita por parágrafos, correspondendo cada um a diferente acontecimento. A primeira notícia publicada dá-nos algumas indicações quanto à eficácia pretendida: “Pelejou a Armada de Holanda com uma esquadra da Armada Real de Castela, em que vinham muitas fragatas de Dunquerque; durou a pendência mais de vinte e quatro horas; foi-se a pique um galeão dos Castelhanos e ficaram alguns destroçados e todos com muita gente morta. O holandês com algum dano se retirou a este porto, donde está aguardando a que el-Rei Nosso Senhor lhe dê socorro para sair outra vez a atemorizar os portos de Andaluzia.” Curiosamente, a última notícia aborda o mesmo tipo de evento: “Por pessoa que veio de Cádis e por carta de Castro Marim se soube que a Armada de Holanda fizera grandíssimo destroço na Armada de Castela e que se recolhera com dois galeões perdidos e muitos sem mastros e passados das balas e grandíssimo número de gente morta.” A apreensão da mensagem é rápida: além do relato breve do acontecimento, percebe o leitor a animosidade contra o nosso vizinho ibérico, retrato nada de admirar se pensarmos que a restauração da independência de Portugal (e consequente libertação do domínio filipino) ocorrera um ano antes, no início de Dezembro de 1640. Assim, propagandeava-se o movimento da Restauração entre os sucessos diplomáticos do Reino e os insucessos morais e militares por parte de Castela.
Setúbal surge logo na segunda notícia deste primeiro número da Gazeta: “O Conde da Castanheira, que estava preso numa torre de Setúbal, pediu a el-Rei Nosso Senhor que lhe mudasse a prisão porquanto estava indisposto e el-Rei Nosso Senhor, usando de sua natural benignidade o mandou trazer para o Castelo de Lisboa.” Tal como na primeira notícia, o tratamento de deferência relativamente ao rei português é notório, exaltando a sua capacidade diplomática e a sua compreensão.
Pela leitura dos números da Gazeta percebe-se que as notícias se alimentavam, por vezes, do culto do exagero, dependente do partido que a publicação tinha de tomar. Alexandre Herculano considerou que, para a Gazeta,"era preciso animar o povo” e “convinha narrar-lhe as vantagens alcançadas contra a Espanha, bem como as dificuldades em que se via envolvida aquela monarquia, e até exagerá-las".
Hoje, a Gazeta é um documento histórico de relevo para se conhecer o século XVII no período pós-Restauração, pesem embora os exageros que os redactores, também eles imbuídos de um espírito independentista, usaram ao serviço da propaganda.
Os olhos com que lemos os jornais do passado são os de hoje, mas tentando também a viagem e a leitura à maneira dessoutro tempo. Vale isto para dizer que o jornal que lemos hoje será um elemento para reconstituir a nossa história amanhã. Na já longa vida do título O Setubalense (165 anos, com interrupções), a história de Setúbal e da nossa região escreve-se também com as notícias do quotidiano que o jornal disponibiliza. É por isso que, ultrapassando os limites da crónica habitual, nos atrevemos a convidar quem nos lê ao apoio a este jornal através da iniciativa de “crowdfunding” que está em marcha. É um imperativo cívico, pois, se um jornal acaba, é o registo de uma cultura e de uma comunidade que se perde. Nós já contribuímos.
in O Setubalense: 22.Abril.2019

terça-feira, 21 de abril de 2020

Camus e o homem que contou a peste



“Na manhã do dia 16 de Abril, o doutor Bernard Rieux saiu do seu consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. Nesse momento, afastou o bicho sem lhe prestar atenção e desceu a escada.” Estamos num ano da década de 1940, na cidade argelina de Oran, no arranque da história que Albert Camus conta na obra A peste (Lisboa: Livros do Brasil), de 1947.
Quem relata a acção vive na cidade e é muito próximo do médico Rieux e dos seus amigos, não se envolvendo nos casos apresentados. Percebe o leitor, no final, se o não suspeitou ao longo do romance, que o cronista é o mesmo Rieux, que “quis tomar o tom de testemunha objectiva” ao longo do relato.
Tudo acontece em dez meses, período que levou a cidade, dominada pela peste bubónica, ao isolamento, vidas fortemente condicionadas, um quase estado de sítio - as personagens “experimentavam assim o sofrimento profundo de todos os prisioneiros e de todos os exilados que vivem com uma memória que não serve para nada”, num espaço confinado que, “se era o exílio, na maior parte dos casos era o exílio em casa.” A Rieux, pela profissão que exercia, não lhe restou “senão conhecer o exílio de toda a gente”: o tempo da diferença - cortejos fúnebres suprimidos, desorganização da “vida económica e número considerável de desempregados”, relações sociais reduzidas ao impensável, derrota das crenças e das súplicas, choros e pesares sem fim, ausência de futuro, a condição humana. Num mundo em desmoronamento, Tarrou, amigo de Rieux (e que com ele agiria na assistência à comunidade), questiona o médico sobre o sentido da sua profissão - a resposta tem a humildade e a simplicidade do tamanho do ser humano: “Não sei o que me espera nem o que há de vir depois de tudo isto. Para já, há doentes e é preciso curá-los. Defendo-os como posso, aí está.”
Bem próximo do final, há personagens que discutem a mudança pós-flagelo, ficando-se pela incógnita: “O mais forte desejo dos nossos concidadãos era e seria fazer como se nada tivesse mudado - nada, em certo sentido, seria mudado, mas, noutro sentido, não se pode esquecer tudo e a peste deixaria vestígios, pelo menos nos corações.”
Camus viveu em Oran (de onde era sua mulher) entre 1941 e 1942. Depois, regressou a França, para território que seria ocupado pelos invasores alemães. “A peste”, relatando uma epidemia que não aconteceu, é uma reflexão sobre o Mal (que ninguém está preparado para receber), uma alegoria sobre o crescimento e efeitos do nazismo. Por isso, Rieux (que acudiu à sua comunidade e perdeu os mais próximos), perante a alegria dos conterrâneos aquando do fim da peste (equivalente ao período da libertação), que podia ser ameaçada, pensa, a fechar o livro: “o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos lenços e na papelada” e poderia vir “talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”
"500 Palavras", in O Setubalense: nº 376, 2020-04-17

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Memória: Nicolau da Claudina (1933-2020)



Acabei de saber há minutos e as saudades não se fizeram esperar. O amigo Nicolau da Claudina, que conheci há muitos anos, partiu. Como disse a quem me deu a notícia, ainda no fim de semana pensei em telefonar-lhe para conversar com ele e para resolver uma dúvida relacionada com Sebastião da Gama. Já não vai haver essa conversa... a vida é assim!
O meu contacto mais próximo com Nicolau da Claudina aconteceu por causa de Sebastião da Gama, na Associação Cultural Sebastião da Gama, muito embora a amizade já viesse de tempos anteriores. Sempre me impressionou este homem. Pelas memórias, pelos saberes, pela disponibilidade, pelo sentido de humor, pela partilha, pela sua sensibilidade em ser elemento de aproximação.
O movimento associativo de Setúbal e de Palmela muito devem a este homem que, na sua ânsia de saber mais, não hesitava em participar, em contar, em se aproximar com o ar da curiosidade permanente. Várias vezes me disse que o exemplo do seu professor Sebastião da Gama o tinha mudado, pois, caso contrário... Vi-o emocionar-se, chorar, quando falava dos ensinamentos e das vivências que teve com aquele professor - testemunhava sobre ele como se o último encontro entre os dois tivesse acontecido umas semanas antes, tão presentes eram a descrição dos gestos, as palavras, o calor da recordação. Só guardo boas recordações do Nicolau da Claudina. Muito boas. E essas continuarão enquanto a memória viver. Obrigado, Nicolau!
Na foto: Nicolau da Claudina, em Azeitão, na inauguração do monumento a Sebastião da Gama (2007-06-09)

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Guias para o jardim da Arrábida



A Arrábida provoca o deslumbramento com a tela da serra, como provam dois roteiros de ajuda: o primeiro, Flores da Arrábida - Guia de Campo, de José Gomes Pedro e Isabel Silva Santos (Assírio & Alvim, 2010), com primeira edição em 1998, a tempo da Expo-98, caracterizando 200 flores, traçando um retrato do habitat que a Arrábida constitui, e completando-se com esclarecedor glossário técnico e índices por nomes científicos e por nomes vulgares atribuídos às plantas; o segundo, Flora da Arrábida e Espichel - Guia de Campo, de Francisco Luís Rasteiro (Núcleo de Espeleologia da Costa Azul, 2019), que identifica 633 espécies vegetais da serra, “resultado de quinze anos de registos fotográficos” e de pesquisa botânica de três anos, apresentando igualmente índices por família e pelo nome científico.
As duas obras são interessantes pela recolha, pelo cuidado científico (descrição das formas florais, das folhas, das inflorescências, das características eco-fenológicas), pela intenção pedagógica (recomendações e conselhos sobre o uso das plantas) e pelo apontamento fotográfico de todas as plantas referidas.
Passeie o viajante na Arrábida com os guias na mão que vai descobrir muito. Por exemplo, plantas fortemente ligadas à serra - por serem endémicas, umas; por estarem ligadas a características que marcam a cultura local, outras, como o “carrasco” (hospedeiro da grã, que produz a tinta escarlate já conhecida pelos Romanos), o “cardo-do-coalho” (indispensável para o fabrico do queijo) ou a “murta” (importante para o licor arrabidino).
Mas também pode o leitor descobrir nestes guias um mundo de associações... As designações vulgares atribuídas às plantas, talvez derivadas do poder sugestivo que estas apresentam, dão interessante percurso pelo poder metafórico da linguagem. Nessas classificações, os nomes de animais ou de partes do corpo animal são frequentes, como se pode ver nos casos de: “abelhinhas” (ou “quilhão-de-galo”), “arrebenta-boi” (ou “uva-de-cão”), “barba-de-falcão”, “boca-de-lobo”, “corno-de-veado”, “cristas-de-galo” (ou “calças-de-cuco”), “erva-abelha”, “erva-borboleta”, “erva-carapau”, “erva-das-pulgas”, “erva-percevejo”, “erva-vespa”, “flor-dos-macaquinhos” (ou “flor-dos-rapazinhos”), “flor-dos-passarinhos”, “focinho-de-rato”, “língua-de-cão” (ou “orelha-de-lebre”), “língua-de-ovelha”, “olho-de-mocho”, “pé-de-burro”, “pé-de-corvo”, “pé-de-galinha”, “rabo-de-cão”, “rabo-de-lebre”, “rabo-de-raposa”, “testículo-de-cão” e “tripa-de-ovelha”. Outros nomes, com cariz mais poético, também devem ser lembrados: “beijos-de-estudante”, “bela-luz”, “bons-dias”, “cardo-beija-na-mão” ou “saudades”. A imagem fradesca igualmente perpassa pela terminologia em casos como “capuz-de-frade” e “orelha-de-monge”, ainda que esta também surja conhecida por outra designação muito pouco conventual como seja “umbigo-de-vénus”, em todo o caso uma imagem bem mais reservada do que a sugerida por “dama-nua”...
As flores povoam frequentemente a literatura e, apesar de a escolha quase não ter limites, há duas a não esquecer: a “bonina” (ou “margarida”), imagem que Camões escolheu para lembrar a face de Inês de Castro, e a “esteva”, que titulou em 2004 obra póstuma de Sebastião da Gama, que bem recheou de flores arrábidas a sua poesia.
A quantidade de flores e de plantas que vivem na Arrábida bem teria ali justificado um passeio da deusa Flora e do seu apaixonado Zéfiro pelo deslumbramento entre o casal e pelo encanto da Natureza... Na dúvida se eles por ali terão passado, façamos nós essa incursão, mesmo que através da leitura...
in O Setubalense: 2020-04-08