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sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Frei António das Chagas, o frade de Brancanes


Frei António das Chagas (Biblioteca Nacional de Portugal); Cartas Espirituais (1957) 

António de Sousa Soares (1631-1682), alentejano da Vidigueira, teve vida aventurosa e repartida e passou várias vezes por Setúbal, onde foi comandante do terço de cavalaria. Um dia, sugestionado pela leitura de Frei Luís de Granada, decidiu enveredar pela vida eclesiástica, ingressando na Ordem Franciscana. Contudo, em função do seu percurso, foram-lhe levantadas dificuldades várias. Apesar dessas adversidades, a persistência não o abandonou e, em 1663, tomava o hábito no convento de Évora, passando a usar o nome de Frei António das Chagas. Tornou-se pregador e guia espiritual e passou por Setúbal (onde está consagrado na toponímia, na zona de Montalvão) em ocasiões diversas, estando o seu nome ligado à criação do convento de Brancanes.
Na colecção “Clássicos da Sá da Costa”, publicou Manuel Rodrigues Lapa um volume de correspondência de Frei António das Chagas, aí reunindo uma centena de cartas (das inúmeras que escreveu e distribuiu por um vasto leque de correspondentes), em que duas são redigidas a partir de Setúbal e numa outra há referência a uma sua vinda a Setúbal para acompanhar a fundação do seminário de Nossa Senhora dos Anjos de Brancanes.
Lê-se este volume das Cartas Espirituais (2ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1957) e contacta-se com um espírito sábio e delicado, feito pelas agruras da vida, usando a ironia e a objectividade, defendendo a humildade, por vezes de forma dura, e assumindo a vida como acção e caminho. Deixo alguns sublinhados por serem ensinamentos importantes.

Apetite- “Calar os apetites é conhecida ganância da alma, porque é dura violência da natureza.”
Árvore- “Árvore que com pequena tempestade cai ou tem poucas raízes ou é muito tenra ainda.”
Caminho- “O negócio de quem caminha consiste em não parar e ir por diante, ou seja por serras ásperas ou por vales aprazíveis ou por flores de consolação ou por espinhas de tribulação, apesar de que picam e magoam.” 
Conduzir- “Destreza é dos pilotos saber mudar as velas, de modo que se não perca o caminho na tempestade e que os mesmos ventos contrários nos metam no porto.”
Dizer- “Umas coisas se dizem porque se sabem dizer sem se chegar a sentir; outras, porque de senti-las nasce o dizê-las.”
Espelho- “Quem se vê muitas vezes ao espelho disforme, de algumas se deseja compor.” 
Excesso- “Tanta ruína padecemos às vezes por acendidos como por areados, tantas pelo fogo que nos abrasa, como por um mar que nos cerca; porque, se naquele o ardor é o maior perigo, neste a frieza não vem a ser menor dano.”
Fogo- “O fogo sempre deita faíscas que nos ferem quando não haja chama que nos queime.”
Governar- “Quase todos os que governam sabem por onde esta nau se vai ao fundo, e por onde entrou o mar da relaxação e distraimento, que especialmente é por ambições de mando, séquito e governo; e por carear votos e séquito se não repara na insuficiência e incapacidade dos sujeitos, e ficando nestes as prelazias imprimem em seus súbditos as suas semelhanças, dando cargos e vivendo para passar a subir e merecer ao humano, com pouca atenção ao divino.”
Herói- “A Hércules convidaram-no os conflitos e fizeram-no Hércules os trabalhos.”
História- “O fim principal da história é fazer presentes para a nossa doutrina os séculos passados e estender na duração das memórias aquelas posteridades da fama a quem faz ordinariamente injúria o esquecimento dos tempos.”
Mal- “As coisas más não se podem tratar sem medo.”
Mundo- “Não é o mundo lugar para o descanso.”
Nada- “O nada não faz ruído.”
Notícia- “A verdade é alma das notícias.”
Prémio- “Quem vai buscar o tesouro na mina vai por baixo da terra às escuras, não só com escuridades, mas com fadiga, abaixando sempre a cabeça. Depois dessas trevas, há-de vir a luz e, em dando na mina, veremos que todo o trabalho é pouco e toda a fadiga leve para o prémio que se acha e para o bem que se logra, que excede a toda a comparação.” 
Queda- “A queda, que para o vidro é ruína, para a pedra é descanso e sossego: os fracos como o vidro quebram, em caindo perdem-se, quebrando-se-lhe o coração, o ânimo e a confiança; e maior dano lhe faz a sua fragilidade que a sua queda. A pedra, como é forte, na sua queda descansa; e quanto é maior o baixo a que se despenhou, maior segurança adquiriu, porque no mesmo precipício achou fundamento para maior fortaleza.”
Rio- “Um rio, por pequenino que nasça, por fonte que comece, rio continua e mar acaba, se persevera.”
Santidade- “A santidade não consiste em muito contemplar, senão em muito obrar. Mais vale um dia, em que andais fazendo obras de caridade ou de humildade ou de obediência ou de paciência, que estar um mês em contemplação, êxtases e em raptos. Porque isto é comer a iguaria sem a merecer e aquilo é merecê-la, ainda que a não chegueis a comer.”