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quarta-feira, 6 de maio de 2020

Luísa Dacosta: Como um rio que corre...



Primeiro andamento - Gerês, 1971: “A manhã abre tilintada de chocalhos, rumorejante de águas e pinheiros. Os pássaros debicam o nevoeiro que algodoa o Cávado e se escrameia como lã, deixando espelhar a raiz dos montes na quietude aquosa.” Segundo andamento - Faial, 1986: “Chão pouco de hortênsias muitas. Nascido entre conchas de azul: a do céu e a do mar. (...) Chão pontilhado do branco das casinhas térreas, com vacas mansas derramadas pelas vertentes, onde às vezes se aninha o medronho maduro de moinhos de velas quixotescas, a espadanar entre verdes.” Entre estes excertos passaram 15 anos, ambos devidos a Luísa Dacosta (1927-2015), no livro Na água do tempo (Lisboa: Quimera Editores, 1992), primeiro volume do seu diário.
Passa o leitor os olhos pelas duas citações e não pode avançar sem que pare - o poder metafórico de ambas é extraordinário no que elas contêm de sonoridades, de movimento, de visualização. A paisagem impõe-se em todo o seu fulgor, povoada, dinâmica, a sugerir temática para telas intensas. 
É longo o tempo que atravessa este diário: desde Agosto de 1948 até Dezembro de 1987. Se um diário implica fragmentos de tempo, associados ao curso dos dias, em Na água do tempo, essa fragmentação é superlativada na medida em que os excertos são dos anos (a única medida temporal precisa), quase sempre com a indicação do mês, frequentemente sem o registo do dia.
O que a diarista traz para este álbum do (seu) tempo é diversificado. Como a vida. Mas não podemos passar sem registar os momentos que dedica a pessoas, anónimas (encontradas na rua, nas viagens, na vida) ou conhecidas (a oleira Rosa Ramalho, os artistas José Régio - com quem teve relação de amizade longa, em Portalegre e em Vila do Conde -, Aquilino Ribeiro, Irene Lisboa, Júlio ou o padre espiritano Alves Correia), sempre a assinalar o quão bom foi o cruzamento com estas vidas e experiências, em páginas de ternura, de homenagem e de testemunho. Também as evocações trazidas pela literatura alimentam este diário nas referências de proximidade a Camilo Pessanha, a Cecília Meireles, a Camões. As latitudes constituem ainda uma área de preservação nesta memória: Matosinhos, Vila Real e A-Ver-o-Mar (três pontos de uma geografia intimista de criação de raízes), Óbidos, Portalegre, Timor (onde esteve em Setembro de 1975, epicentro da luta pelo domínio da ilha, em viagem atribulada, para partilhar experiências com docentes timorenses), Açores, Jerusalém, Rio de Janeiro. E também a sua vivência como professora, com entradas aqui e ali, sempre numa dimensão de valorização de atitudes do seu público, especialmente nas páginas redigidas entre 1971 e 1972, num género de “agenda escolar” em que reflecte sobre a prática pedagógica com os seus alunos, em páginas que muito fazem lembrar Sebastião da Gama.
A narradora apropria-se do mundo e dá-nos a medida do seu sentir sobre o que vê. E é assim que se desfia este diário, entre o real e o tratamento literário: percepcionando o exterior nas pessoas, nas paisagens, nos acontecimentos, e assimilando todas as sugestões que daí ressaltam para escrever os quadros dos seus momentos, dos seus dias. Numa escrita feliz, poética.
* "500 Palavras". O Setubalense: nº 388, 2020-05-06, pg. 10

sábado, 29 de dezembro de 2007

Hoje, deveria ter saído no "Correio de Setúbal"

DIÁRIO DA AUTO-ESTIMA – 73
29 de Dezembro de 1915 – “O acaso fez-me descobrir hoje um livro escolar onde encontrei enfim aquelas regras de redacção, de criação e de elocução que há tanto tempo buscava e que são o segredo da escrita e da dicção tão precisas e tão claras dos franceses. Os portugueses escrevem pouco e com dificuldade. Não respondem, ou só tardiamente respondem a cartas, o que eles explicam pela preguiça. Nesse livro encontro esta frase: ‘On est toujours paresseux pour une chose qu’on fait mal’. Talvez me dedique a fazer um livro como esse, destinado às nossas escolas, e talvez seja esse o último serviço que preste ao meu país.” (João Chagas, Diário II).
29 de Dezembro de 1942 (Coimbra) – “Uma grande discussão sobre liberdade e justiça com um amigo magistrado, que há dois ou três anos vestiu a toga cheio de inquietações e que me apareceu agora relativamente sereno na sua função de julgar. (…) Dantes, quer ele a aceitar teoricamente um pragmatismo judicativo, quer eu a negá-lo, púnhamos ambos sobre a mesa dois corações igualmente ciosos da intangibilidade humana, só abertos à transcendência de cada destino, fossem quais fossem as razões da cabeça. Mas os anos passaram, a função fez o órgão, e hoje encontrei-me diante dum funcionário calmo e objectivo, apenas interessado em desempenhar proficientemente o seu papel de parafuso sem fim na complicada engrenagem social. E muito embora seguro da honradez profissional do meu interlocutor de agora, passei o tempo a ter saudades do outro, que ficava branco só de pensar que alguém pudesse erigir-se em juiz absoluto e condenar um semelhante à morte viva de trinta anos de cadeia.” (Miguel Torga, Diário – II).
29 de Dezembro de 1943 – “Ontem à noite estive muito triste. Tive a visão da avozinha e da Lies! Avozinha, querida avozinha! Não compreendemos bem quanto ela sofria. Só pensava em nós, mostrando-se sempre muito compreensiva em face dos nossos problemas. Sofria de uma grave doença. (…) Sou egoísta e cobarde! Não sei porque é que os meus sonhos e pensamentos só giram à volta das coisas tristes, até quase me apetecer gritar. Decerto não tenho bastante confiança em Deus! Afinal Ele deu-me tanta coisa que não mereço e só faço asneiras. Quando pensamos no próximo, devíamos chorar. A dizer a verdade, não devíamos fazer mais nada do que chorar. Resta-nos pedir a Deus que faça um milagre e que salve aquela pobre gente! E eu rezo do fundo do meu coração.” (Anne Frank, Diário).
1987, Ainda Dezembro, Matosinhos – “O tempo arrefece. Mas há sol e na linha do horizonte uns flocos de nuvens levemente rosadas como borlas de pó-de-arroz, 1920. Sobre as águas um jogo de velas. Os brancos fendidos oscilam, bailam sobre o azul – rodinha de borboletas, entre o leque aberto da rama dos pinheiros. De manhã, dava logo de rosto com o mar, porquê então aquela melancolia? Olhava aquela beleza balética, oscilante, grácil, como se olhasse um campo lavrado de lágrimas. Era dela, dentro dela, que a melancolia morava.” (Luísa Dacosta, Na água do tempo).
Com Dezembro quase no fim – Ano a caminho do termo. Mais um cabo de tormentas prestes a ser passado. E também a sensação de que as desigualdades se têm acentuado. E ainda: a dureza do quotidiano está muito longe da festa europeia com que Portugal pretendeu fazer História.