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domingo, 8 de junho de 2025

Luís Amaro: o bibliógrafo de Aljustrel (2)

 


As observações de Sebastião da Gama sobre o livro Dádiva, de Luís Amaro, saído em 1949, tinham em consideração a amizade que, desde há quatro anos, os vinha aproximando: ambos se conheceram em 1945 na Portugália Editora, num terceiro andar da Avenida da Liberdade, e chegaram a ter quarto alugado na mesma residência, na capital, ainda que em tempos diferentes — na Rua das Taipas, em casa que pertenceu à fadista Adelina Fernandes, onde Sebastião teve quarto enquanto estudou em Lisboa, que, depois, passou para Luís Amaro. Pelo catálogo Dádiva - Luís Amaro - Uma Vida em Livros passam várias menções à relação entre o homenageado e o poeta da Arrábida: a propósito da relação editorial entre os dois (a partir do momento em que se conheceram, ano em que foi publicado Serra-Mãe, com a chancela da Portugália, mas com os custos da edição suportados pelos pais de Sebastião da Gama), do incentivo do poeta-professor junto do amigo para a publicação de Dádiva e de um encontro de trabalho de Amaro com Joana Luísa da Gama (1923-2014), em Massamá (em 1999), a propósito da obra inédita do poeta, que estava em preparação (momento de que é reproduzida fotografia).

Se 1949 foi o ano de publicação da obra poética de Luís Amaro que os amigos tanto desejavam ver, também foi o ano de reabilitação na saúde deste aljustrelense, que passou por grave crise relacionada com tuberculose pulmonar.

O catálogo, fortemente ilustrado, vai dando os traços biográficos essenciais do homenageado, assinalando a década de 1950 como a do aparecimento da revista Árvore, subintitulada “Folhas de Poesia”, resultado de iniciativa de Luís Amaro, António Luís Moita, António Ramos Rosa, Raul de Carvalho e José Terra, um projecto que teve apenas quatro números (1951 a 1953) e fim ditado pela censura do Estado Novo. A finalizar essa década (1959), é mencionado o casamento de Amaro com Amélia Magalhães, colega de trabalho, relação que durou até ao falecimento dela, em 2013.

O trabalho de Luís Amaro como tradutor e revisor manteve-se na Portugália até Março de 1970, altura em que passou a trabalhar na Fundação Calouste Gulbenkian (até 1989), na revista Colóquio - Letras, projecto que, sob as direcções de Hernâni Cidade, Jacinto do Prado Coelho, David Mourão-Ferreira e Joana Morais Varela, sempre teve o cunho esmerado do bibliógrafo, tal como foi reconhecido, no número de Março de 1989, sob a pena de Morais Varela, ao assinalar-lhe a sua “excepcional capacidade de trabalho” e retratando-o como “tão minucioso e apaixonado nas tarefas mais humildes como na investigação mais especializada”.

O tempo da aposentação ocupou-o Luís Amaro nas tarefas de que sempre gostou — a pesquisa contínua, a organização de bibliografias, a disponibilidade para ajudar investigadores com eles partilhando o seu saber (tendo continuado como consultor editorial da Colóquio - Letras), a correspondência intensa com amigos. Tão grande abertura e atenção aos outros levou a que, em vários momentos, tenha havido reconhecimento público do valor e do serviço prestado por Luís Amaro à cultura portuguesa — se houve espaço para algumas acções de cariz social e cultural, houve também oportunidade para esse reconhecimento ser feito através daquilo que sempre orientou o trabalho deste investigador, o livro: em 2005, o poeta aljustrelense via ser publicada a obra Para Lá da Névoa - Homenagem a Luís Amaro (Caixotim Edições), conjunto de dezassete depoimentos, entre os quais se contam os de Eugénio Lisboa, Fernando J. B. Martinho e Fernando Venâncio, para só mencionar nomes recentemente desaparecidos, e, três anos depois, a Câmara Municipal de Aljustrel atribuía o nome de Luís Amaro à Biblioteca Municipal, decisão honrosa para quem dedicou a vida ao livro e aos autores. Um livro constituiria ainda um outro momento de homenagem, mas póstuma, quando, em 2020, saiu Evocar Luís Amaro (Cosmorama Edições), duas dúzias de testemunhos, organizado por António Cândido Franco, António José Queiroz, Francisca Bicho e Paulo Samuel.

Por este catálogo passam ainda citações de homenagem de catorze autores, todas constituindo prova do importantíssimo contributo que este bibliógrafo aljustrelense deu à cultura portuguesa, de que destaco duas: se Fernando Venâncio reconheceu que Amaro “fez tanto pela literatura portuguesa como departamentos de universidade inteiros” (ele, um homem que apenas passou por uma Universidade, a Portugália, como mencionou numa carta que me endereçou), Sofia Santos considerou “uma tarefa tantálica elencar todas as contribuições que Luís Amaro dedicou à literatura portuguesa e aos seus autores”.

Indiscutivelmente, a sua “dádiva”, resumindo a sua obra, encontra eco em dois títulos: no que foi dado à exposição e a este catálogo, organizados pela Associação Do Fundo à Superfície, e no que foi atribuído à tertúlia realizada em Aljustrel em 13 de Junho de 2024: “Luís Amaro: um homem que era a memória viva da literatura portuguesa”.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1544, 2025-06-04, pg. 10.


sábado, 22 de março de 2025

Joana Luísa da Gama: a mulher ao lado do Poeta (4)

 


A relação entre Joana Luísa e Sebastião da Gama foi construída também sobre as linhas da escrita e da leitura. Na entrevista concedida a Vladimiro Nunes em 2012 (reproduzida, em jeito de posfácio, a fechar o livro Estala de Saudade o Coração), referia a quantidade epistolar entre os dois durante o namoro: “O que nos salvava eram as cartas. Mantínhamos uma correspondência que era uma coisa extraordinária. (...) São mais de 800.” Desse lote, chegou Joana Luísa a publicar um primeiro volume das mensagens que Sebastião da Gama lhe enviou nos anos de 1943 e de 1944 (Cartas - I, de 1994), tendo deixado ainda seleccionadas as cartas que comporiam o segundo volume, datadas de 1945, obra que não chegou a publicar.

Mas as mensagens entre os dois trocavam-se também através dos livros e das leituras que partilhavam. Sendo ambos leitores fervorosos, as prendas que ofereciam um ao outro passavam muito pelos livros, vários deles com dedicatórias expressivas. Do primeiro título de Sebastião da Gama, Serra-Mãe, existem vários exemplares oferecidos a Joana Luísa: num, do dia em que o Poeta foi buscar os primeiros livros à tipografia, uma dedicatória que prova a partilha feita dos poemas, “Para o meu Amor, o livro da nossa Alegria. Sebastião Artur. 2.XII.1945, Lisboa”; noutro, como prenda natalícia, “Para ti, Amor, porque sabes ler os meus versos com uma voz que já se não distingue da minha. Sebastião Artur. Natal 1945”. O opúsculo Loas a Nossa Senhora da Arrábida mereceu também umas palavras para Joana Luísa, numa dedicatória escrita em jeito de quadra: “Isa, diz tu estes versos / que sabes melhor rezar... / pra que a Virgem seja sempre / visita do nosso Lar. Sebastião Artur. Arrábida, 19-VIII-1946” No ano seguinte, era publicado Cabo da Boa Esperança e, numa das páginas iniciais, Sebastião da Gama recebia uma oferta dedicada pela namorada: “Dou-te a minha Alegria que é um Poema teu, e o meu Amor que moldado por ti é também um Cabo da boa Esperança. Joana Luísa. 18-XII-1947”.

Estas declarações de afecto, primeiras memórias que um e outro foram construindo, passaram também por outros títulos que entusiasmaram o casal leitor — num exemplar de Os Lusíadas (edição de 1931): “Lembrança do Natal. Do primeiro Natal. E não é preciso pôr mais nada senão o teu nome, Joana Luísa, e o meu. Nós sabemos sonhar o resto. Sebastião Artur. 1944”; na antologia Poesia de Amor, organizada por José Régio e Alberto de Serpa (1945), no dia de aniversário de Joana Luísa, escrevia Sebastião: “Em 28.2.1945 - Aqui, Amor, só falta um poema: o que não precisamos escrever porque nos basta vivê-lo. E este dia 28 tem de ser feliz, porque o sabe de cor. Sebastião Artur”; na obra Dia Longo, de Ribeiro Couto: “Dedicatória para quê, Amor? Onde se vê o teu nome querido, Sebastião Artur, e o meu, vê-se tanta felicidade. Tua Joana Luísa.”; em A volta do Gato Preto, de Erico Veríssimo: “Este livro é para nós dois abrirmos — e cada um irá pensando mais no outro do que no livro. Sebastião Artur. 1948”; ainda em Música ao Longe, de Erico Veríssimo: “Para o Bastião: que o Menino Jesus ponha no teu sapatinho a companheira que tu mereces. Natal 1949. Joana Luísa”; na obra Palavras e Sangue, de Giovanni Papini: “Não é como nós queremos, Querido; é como Deus quer, faça-se a Sua Vontade. Mas não irás sozinho, está sempre contigo a tua Joana Luísa. 2-Outubro-1950”.

Joana Luísa foi a destinatária de vários poemas de Sebastião da Gama — “À Joana Luísa” (28.Fev.1942), “Caminho” (10.Abr.1944), “Ressurreição” (6.Mai.1944), “Dádiva” (23.Fev.1947) e “Hoje Deus é verdade” (8.Abr.1947) —, constou noutros com o seu nome sob forma anagramática — “A Olisa” (Abr.1941) e “Écloga Tarro” (Fev. e Mar.1942, em que aparece sob o nome de “Sávil”) — e foi a motivação de vários outros, de que se destacam “Madrigal” (7.Out.1946) e “Fé” (8.Dez.1951).

Ao longo dos tempos, Joana Luísa nunca deixou que a memória de Sebastião da Gama se esvaísse — prendas recorrentes suas tinham como objecto livros do Poeta, com dedicatória a propósito, como aconteceu quando, em 1972, ofereceu um exemplar de Pelo Sonho é que Vamos à sobrinha Ana Teresa, chamando a atenção para o poema “A uma rapariga”: “podia ser escrito para ti se o Primo te tivesse conhecido”; noutras circunstâncias, ofertava fotografias, como aconteceu com Acilda Fragoso, que fora aluna de Sebastião em Estremoz, a quem dedicou uma fotografia do professor sorridente: “Como Ele já não pode dizer nada, digo-te eu Acilda: perdeste um grande Amigo e um grande Professor”.

Nesta história que ligou os dois apaixonados, nunca a alegria podia ter faltado. Ou não tivesse ela começado por uma brincadeira com poemas carnavalescos no início da década de 1940: Sebastião da Gama escreveu, em verso, uma carta a uma prima de Joana Luísa, que, aflita por não saber quem era o autor, recorreu a Joana Luísa, que logo descodificou o anonimato e gizou uma resposta também em tom brincalhão. No dia seguinte, apareceu o próprio Sebastião, que, depois de ter sabido quem tinha construído a resposta, lhe disse, como lembrado na entrevista já mencionada: “Eu não sabia que tu fazias versos, que sabias fazê-los tão bem...” A partir dali, começou a troca de poemas entre os dois... e uma cumplicidade que os fez caminhar lado a lado.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1492, 2025.03-19, pg. 10.


quinta-feira, 13 de março de 2025

Joana Luísa da Gama: a mulher ao lado do Poeta (3)

 


Se há marca que ficou nesta relação entre Joana Luísa e Sebastião da Gama, essa foi a da dimensão da alegria, um traço fundamental na personalidade do poeta, como Joana Luísa fez sentir numa acção formativa para educadores em 1982, ao dizer que “a sua alegria transbordava”, cunho que ela também alimentava e que se lhes ajustava. Mesmo nos momentos mais dramáticos, marcados pela doença do marido, o papel que Joana desempenhou junto dele foi de lembrança dessa mesma alegria, valendo a pena relembrar a história a propósito do poema “Fé”, datado de finais de 1951, o último poema que ele escreveu: “Estávamos na Arrábida naquele 8 de Dezembro de 1951. O Sebastião tinha andado todo o dia um tanto misterioso: poucas falas, o olhar muito distante. Não se sentia muito bem de saúde mas não aludia ao facto. Depois do jantar, saímos (...) para ouvir o Mar, a Serra, o Vento... (...) Deitámo-nos cedo. (...) Sobre a madrugada, acordei com o soluçar do Sebastião, que me abraçava estremecendo com os fortes soluços que não conseguia conter. (...) Entre soluços e lágrimas, disse-me: ‘Se um de nós agora morrer, aquele que ficar vai sofrer muito, não vai, querida?’ Nunca soube explicar o que senti naquele momento, mas tive a ideia de que foi Nossa Senhora que me ensinou aquele recado tão bonito: ‘Ó filho, somos os dois tão novos! Quem vai pensar na morte com esta idade? Vamos dormir, sim?’ ‘Tens, razão, desculpa...’ Abraçou-me e não chorou mais. Passado pouco tempo, acordou o dia com o Sol brilhando sobre o Mar, lindo, luminoso. E, baixinho, com voz meiga como de costume quando me dizia um poema acabado de nascer, disse-me o poema ‘Fé’.”

Na véspera do Natal de 1955, Matilde Rosa Araújo recebeu carta de Joana Luísa, noticiando o seu regresso a Azeitão e o abandono da congregação religiosa a que se ligara após o falecimento de Sebastião da Gama, comunicação eivada de amor e de poesia: “Voltei, Tilde. (...) Não poderás calcular quanto me custou tomar esta resolução e até onde vai ou irá o sofrimento de sentir, mais que nunca, se é possível, a falta do Bastião, do meu querido Bastião que eu espero encontrar em todos os cantos da casa e nunca encontro.” Era o ponto de partida para uma viagem de absoluta preservação da memória, afinal o itinerário que assumiu.

O livro Estala de Saudade o Coração, de Joana Luísa da Gama, contém ainda mais duas partes: uma, constituída por crónicas versando memórias da infância em Azeitão, por onde passam situações e figuras familiares, pessoas que povoaram a terra com maior ou menor popularidade, eventos habituais no calendário local (a chegada do circo ou as marchas, por exemplo), personalidades e instituições que fizeram a história local (Frei Martinho ou o juiz de fora Machado de Faria, a quinta da Bacalhoa ou a Perpétua Azeitonense), havendo ainda espaço para momentos de reflexão, como o texto em que é valorizado o papel das mães e do esforço que lhes estava atribuído quando ainda não era celebrado o seu “dia”, por todos estes textos perpassando um sentimento de ternura e de afecto às experiências vividas ou testemunhadas.

O último grupo de textos alberga poemas de Joana Luísa da Gama produzidos entre Março de 1942 e Novembro de 1944, neles surgindo a dimensão religiosa, a expressão lírica de um “eu” dominado pela luta interior e por um certo sentimento nostálgico, imagens da infância e a influência da Natureza, em vários passos surgindo evidente alguma abordagem comum a Sebastião da Gama, como no poema “A Serra vestiu-se de noiva”, que é ao mesmo tempo um poema de amor, ou “Ouve, mar, que vens bramindo”, em que o sujeito poético, feminino, desabafa com o mar, perguntando-lhe pelo amado, seguindo a pista das cantigas de amigo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1487, 2025-03-12, pg. 9.

 

quinta-feira, 6 de março de 2025

Joana Luísa da Gama: a mulher ao lado do Poeta (2)

 


Em Estala de Saudade o Coração, assiste o leitor ao entusiasmo da jovem Joana Luísa, com 21 anos, a escrever a uma amiga, em Agosto de 1944, dando-lhe conta do início do namoro dos dois — “eu, a Luísa, e ele, o Sebastião, chegámos enfim a um acordo. Eu deixei de fingir que não gostava dele e ele viu enfim que não me dará o desgosto que temia, porque se julga muito barro, muito humano, muito tudo menos o que é. Para mim, é apenas aquele que eu sempre esperei para companheiro da minha vida, é aquele que eu amo, nada mais, não lhe ponham defeitos, porque cruzarei os braços ante os obstáculos e vencerei, se Deus quiser.” 

Se o namoro entre Joana e Sebastião foi o ponto de partida para tão longo percurso, as provas da fidelidade vão surgindo no decorrer das várias intervenções — em 18 de Maio de 1999, ao falar na cerimónia de entrega do Prémio de Poesia Sebastião da Gama, tendo sido pedido a Joana Luísa um discurso de cinco minutos, dirá perante a assistência: “Como posso eu meter o Sebastião em cinco minutos, estando ele presente 24 horas em cada dia dos 365 dias do ano?” A pergunta não seria apenas retórica, mas denotava toda a dedicação que continuava a existir — e quem estava presente ouviu mais uma história protagonizada pelo jovem Sebastião em 1945, quando terminou a Grande Guerra: “ele chegou de Lisboa e ouviam-se em toda a vila os gritos dele, desde que saiu da camioneta de passageiros até à minha porta: ‘Acabou a guerra! Acabou a guerra! Acabou a guerra!’ E foi assim aos gritos que ele manifestou a sua alegria.”

O entusiasmo dos dois aquando da publicação dos livros é também lembrado, seja na publicação do seu primeiro título, Serra-Mãe, no meio de dificuldades económicas e editoriais, das recomendações de amigos quanto à estrutura da obra, das idas sucessivas à tipografia, da revisão de provas, seja na preparação do segundo, Cabo da Boa Esperança, tarefa partilhada por ambos — “O caderno ia engrossando e chegou a altura de fazer a selecção. Bem difícil tarefa! Tinha a preocupação de não engrossar demasiado o livro e, vista agora, à distância, encontro uma ternura enorme recordando a cena dos dois diante do caderno, lendo poemas, trocando uns por outros, tirando mesmo alguns, para que o livro não fosse volumoso nem caro de mais."

Joana Luísa foi testemunha de momentos de poesia vividos com Sebastião da Gama. Se, no tempo que durava a finalização de um poema, ele queria estar sozinho, ela foi também, frequentemente, a primeira ouvinte e a primeira leitora de muita da produção poética, instantes que preservou quase cinematograficamente, como relembrou a propósito da escrita do poema “Nocturno”, de 1946: “Uma noite, o Sebastião saiu para a Serra como sempre. Quando voltou, trouxe um poema; nós estávamos na praia e, a caminho de casa, pela noite, de braço dado, ouvi-o murmurar esse poema. Foi tão linda aquela hora! O mar, o vento, o silêncio da noite e o poema dito por ele. (...) Quando volta assim da Serra, vem tão bonito! Os olhos muito abertos, os lábios vermelhos entreabertos, olha para longe, longe, para aonde não podemos olhar, e diz o poema.”

Joana Luísa acompanhou Sebastião da Gama nos sentimentos, ambos perfilhando a vivência de fortes emoções, muitas vezes surpreendentes.  Caso a que não falta essa intensidade, pela espontaneidade e naturalidade do acontecimento, é o do episódio acontecido no dia do casamento, em 4 de Maio de 1951, relembrado numa entrevista à Antena 1, em 1988: “No dia do nosso casamento, ele foi muito cedo para a Serra, casámos no Convento da Arrábida, e por lá andou. E, como fazia muitas vezes, apanhou um ramo de alecrim. Quando eu cheguei à porta da capela com o meu ramo de rosas, ele veio ter comigo, pediu-me as rosas, que deu a um convidado, e disse-me: ‘Leva antes estas!’ E eu casei-me de ramo de alecrim...”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1482, 2025-03-05, pg. 9.


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Joana Luísa da Gama: a mulher ao lado do Poeta (1)

 


Não tivessem sido a dedicação e a persistência de Joana Luísa da Gama (1923-2014) e os leitores pouco conheceriam da obra de Sebastião da Gama (1924-1952)! Talvez mesmo se tivesse perdido a maior parte da sua produção literária!... A obra do poeta poderia ter-se cingido aos títulos por si publicados — Serra-Mãe, em 1945, Cabo da Boa Esperança, em 1947, e Campo Aberto, em 1951, além dos textos que deixou dispersos por vários jornais e revistas, das quadras que foram integradas nas Loas a Nossa Senhora da Arrábida (em 1946), do texto A Região dos Três Castelos, de 1949, que cativava para as viagens turísticas nas imediações da Arrábida e, talvez, de Pelo Sonho é que Vamos (de 1953), a primeira obra póstuma, que Sebastião da Gama deixara orientada e com título escolhido. Todos os restantes títulos do poeta e professor azeitonense publicados resultaram do empenho posto por Joana Luísa da Gama, na tarefa de recolha, organização e preservação dos manuscritos e dactiloscritos do marido, e por um grupo de amigos do casal (David Mourão-Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Luís Amaro, Maria de Lourdes Belchior e Luís  Filipe Lindley Cintra, entre outros), que acompanharam as edições sucessivas.

Após o falecimento de Sebastião da Gama, o itinerário de Joana Luísa passou pela vida conventual (até final de 1955), tendo chegado a tomar o hábito nas Franciscanas Missionárias de Maria sob o nome de Maria Delfina de Jesus, pelos estudos na Escola João de Deus, pelo trabalho nas Misericórdias de Lisboa e de Azeitão e no Centro Regional de Segurança Social, pela dedicação ao apoio social e pela divulgação da obra do marido. A ideia de um novo casamento não se lhe voltou a pôr, pois, como disse em entrevista a Vladimiro Nunes, na revista Tabu (jornal Sol, 3.Fev.2012), “ia ser o mais infiel possível ao homem que casasse comigo, porque não me largava do Sebastião”. Este sentimento, explicava-o ela ao entrevistador nos seguintes termos: “Não sou capaz de pensar no Sebastião morto. Não o vejo, mas encontro-o. Ele está sempre comigo. (...) Sei que ele está vivo e ajuda-me. Pergunto-lhe muitas vezes o que hei-de fazer. Não sai livro nenhum sem eu ter a resposta do Sebastião. Todos os livros que têm saído, ele tem consentido. E tem ajudado.” Uma espécie de presença pressentida que foi publicamente confessada por Joana Luísa em diversas ocasiões, como, por exemplo, em 1985, quando, num encontro com jovens da Casa do Gaiato, onde contou a história do encontro entre Sebastião da Gama e o Padre Américo ocorrido em 1947, disse à assistência: “Não estou aqui por acaso, (...) estou em lugar do Sebastião, do nosso poeta Sebastião da Gama, porque se ele cá estivesse viria aqui fazer esta apresentação. Mas ele deixou um recado e eu venho trazê-lo.” Outro momento, para lembrar um outro reflexo desta união, aconteceu em 2007, ao falar para alunos e professores numa escola em Carnaxide: “Será desnecessário dizer o carinho que sinto pelos professores e quanto sofro e me alegro com eles. São colegas do meu marido. São, porque o Sebastião continua presente.”

Os períodos de vida dos dois quase se entrelaçaram no tempo — Sebastião da Gama nasceu em Abril e faleceu em Fevereiro, Joana Luísa nasceu em Fevereiro e faleceu em Abril. Nos 62 anos que sobreviveu ao marido, ela não deixou de testemunhar, de divulgar, de apresentar, de falar sobre a obra dele, fosse em sessões poéticas, fosse em eventos públicos para que era convidada, sobretudo em escolas, caracterizando-se sempre o seu testemunho pela leitura de alguns textos de Sebastião, por vezes recorrendo a inéditos, pelo contar de uma história relacionada com os textos lidos e por uma viagem nas memórias.

Foi da reunião de alguns desses textos que surgiu o livro Estala de Saudade o Coração (Associação Cultural Sebastião da Gama, 2013), em cuja apresentação Joana Luísa ainda esteve presente, apesar de já revelar alguma debilidade física. O passeio que, enquanto leitores, podemos fazer por essas páginas dominadas pela memória é um trajecto impressionante numa história de amor e de poesia, de saudade e de reconhecimento.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1478, 2025-02-26, pg. 10.


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (5)

 

 

A ligação de Sebastião da Gama a Estremoz seguiu um caminho de intensidade crescente, numa simpatia mútua e na construção de uma rede de afectos, como testemunha uma sua carta dirigida a Albano Ferreira, em 7 de Setembro de 1951: “Devo estar mais um ano, pelo menos, em Estremoz. A terra é agradável, a gente é boa.” Esta permuta afectiva revelou-a ele a quem o ouviu quando, em Abril de 1951, a convite de João Falcato, repetiu no Colégio Estremocense a conferência que fizera em Setúbal sobre Bocage — a concluir a palestra, disse, numa linguagem de empatia e com não menos dose de simplicidade, ter sido “o prazer de pagar aos estremocenses com leite do meu gado o puro azeite da simpatia e do bom acolhimento.”

Estremoz foi também o espaço e o tempo de transformação e de criação para Sebastião da Gama, visível até nos gestos mínimos, provas da satisfação e do prazer de sentir e de partilhar a alegria e a vida, tal como contou em carta de 13 de Janeiro de 1951 a Joana Luísa: “Alegre, alegre mesmo com a chuva, é o mercado aos sábados. Hoje comprei - pelo prazer de comprar: dois molhinhos de rabanetes, que trouxe na mão como violetas; meio quilo de peros; um prato de barro para os pôr: no fundo tem um passarinho.” Há lá maneira melhor do que recriar a vida ao atribuir significado e força àquilo que impressiona o olhar de um poeta!...

Na obra Uma Outra Voz, de Gabriela Ruivo Trindade (Leya, 2014), romance baseado na figura de João Francisco Carreço Simões e na sua acção em Estremoz, Sebastião da Gama, designado como “professor” e como “poeta” ocupa quase três páginas, num retrato traçado a partir das memórias que deixou na cidade alentejana. É através da personagem José Eduardo Serrão, com 15 anos em 1954, que o leitor recebe o eco das lembranças do poeta da Arrábida que permaneceu em quem com ele privou.

“Do professor de português, o poeta, é que nunca mais me esqueci.” — assim começa a evocação. E, no final da passagem: “Depois de o poeta abalar — não gosto de dizer que morreu —, parecia que me tinha passado a vontade de rir. Comecei a ler cada vez mais.” A memória exposta vale como um testemunho do que para quem o conheceu em Estremoz significou a figura de Sebastião da Gama: a leitura que ele fazia de poemas, que se tornava motivadora, enchendo-se-lhe, por vezes, os olhos de lágrimas ao longo do poema; o professor que “falava da beleza das pedras, das cores das folhas no Outono, do azul do mar, da imensidão dos céus e da magia das estrelas”; as sucessivas chamadas de atenção para a beleza do outro e da Natureza; a abertura para que os alunos interviessem nas aulas e o prazer que os estudantes tinham no tempo de uma lição com aquele professor; os ensinamentos de solidariedade recebidos, convidando os jovens à partilha e à dedicação aos mais necessitados; as suas idas ao mercado estremocense para comprar flores... enfim, um conjunto de marcas que identificaram Sebastião da Gama no seu relacionamento com a vida e com o local. Se dúvidas existissem quanto à identificação deste professor e poeta, elas seriam desvanecidas com a referência à Arrábida, com a indicação da sua morada, “no segundo andar de uma casita do Largo do Espírito Santo”, com a alusão a uma prenda que a personagem recebera — “Não era à toa que lhe chamávamos poeta, pois, além de tudo isto, escrevia versos. Ainda guardo um livro de poemas seus chamado Cabo da Boa Esperança que me ofereceu.”

Para esta personagem, que tinha 13 anos aquando do falecimento de Sebastião da Gama, o desaparecimento do poeta volveu um quase-mistério: “Nunca percebi bem que doença tinha, e depois de ter abalado as pessoas também preferiram não falar disso. Foi-se embora durante as férias do Carnaval e, apesar de tudo, ia feliz por regressar à sua Serra da Arrábida, como dizia. É um lugar muito longe daqui, explicou, ‘onde os ares são muito puros e curam algumas doenças’. Com ele, pelos vistos, não resultou. Ouvi algumas conversas e também li no jornal. Vinha uma fotografia e um poema dele, que começa assim: ‘Quando eu nasci / Ficou tudo como estava...’ E depois, em baixo, a cruz preta. Penso nele muitas vezes com saudade. Foi a primeira pessoa de quem gostava que morreu. Sem contar com o meu pai, claro.”

Muito embora sendo o testemunho de uma personagem de ficção, a intensidade desta caracterização corresponderá ao que a sociedade estremocense da época ficou a conhecer de Sebastião da Gama, fosse pelo retrato chegado (e mantido) por via dos seus alunos, fosse por quem com ele conviveu na escola e na rua, no café, nas tertúlias e no Rossio. Manter a imagem do poeta através de uma obra de ficção é também uma forma de resolver o mistério que envolve uma partida aos 27 anos, sobretudo quando sentida por uma população juvenil que neste professor encontrava momentos de felicidade... como sucessivamente muitos foram lembrando ao longo dos tempos.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1468, 2025-02-12, pg. 10.

 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (4)

 


Acilda Fragoso, a aluna, teve no professor-poeta um amigo e também ela foi motivo de apresentação a Joana Luísa através de carta, em 1951 — em 11 de Fevereiro: “Ontem, (...) encontrei a Acilda e a Maria Emília. Tão bonitas ambas, sob a chuva! Comprei-lhes violetas.”; em 7 de Março: “A Acilda faz anos na sexta. Disse-me o Banha. E eu combinei oferecer-lhe três ou quatro dos poemas deste ano dentro de uma capa feita pelo Banha. Na capa: somos assim aos 17.” Cerca de 60 anos depois da morte de Sebastião da Gama, em 13 de Abril de 2013, Acilda Fragoso evocava-o em Azeitão, mantendo viva a imagem, tal como a senhora que indicou ao visitante onde era o Largo do Espírito Santo: “O pedagogo, o professor amigo e poeta, deixou-nos em 7 de Fevereiro de 1952; no entanto, a sua presença persiste indelével na memória de todos os que tiveram o privilégio de com ele conviver, especialmente dos seus alunos. O Poeta-Professor ou Professor-Poeta, único no seu todo, sabia como nos fazer sentir únicos e como buscar o melhor de cada um dos seus alunos, deixando-nos perplexos com a descoberta de nós próprios. (...) Nesta cidade, de gente pacata, todos conheciam aquele homem barulhento, e que até era o novo professor, sempre de boina na cabeça, trazendo às vezes flores nas mãos, além de livros, porque, falando alto com a sua voz rouca, com todos metia conversa.”

Desde que chegou a Estremoz, Sebastião da Gama (a viver inicialmente na então Rua das Areias) insistiu na procura de casa para viver com Joana Luísa após o casamento (que se realizou em 4 de Maio de 1951). É numa carta de meados de Março, que, depois de ter desistido de várias propostas e de ter encontrado uma do seu agrado, escreve para Azeitão: “Estou doido com a casa. Vê-se toda a cidade e metade do Alentejo. A praça é engraçada — em frente de duas torres, de um chafariz, de uma capela. A cozinha, triangular, é grande e engraçada. Da janela vê-se quase tanto como do terraço, que é no terceiro andar (no telhado). É inclinado, não serve para lá comer ou trabalhar. Mas para o banho de sol é excelente.” Poucos dias depois, nova longa carta faz nova descrição da casa, terminando com uma promessa: “Vamos gostar tanto da nossa casa e do repouso que tenho cá que não nos apetecerá sair, pois não?” Estava escolhida a morada futura e os preparativos foram acontecendo com a ajuda de várias pessoas, entre as quais, Acilda Fragoso e Guiomar Ávila. Em vista, estava o segundo andar do número 2 do Largo do Espírito Santo, endereço que daria título a poema em 9 de Junho de 1951, registando como local de escrita “Nossa casa”, oito quadras que a apresentam a partir do sonho de quem a habita, do interior do lar e de um “nós” que alimenta todo o poema, talvez um dos mais belos poemas de amor. Publicado pela primeira vez na revista Árvore, o título suscitou divergências com a direcção, pois havia quem não aceitasse que uma morada figurasse como título de um poema... Foi preciso que Sebastião da Gama se impusesse e escrevesse ao seu amigo Luís Amaro a não deixar alternativas para o título ou, de outra forma, não aceitaria publicar na revista.

As imagens de Estremoz perpassam também na correspondência que Sebastião da Gama vai trocando com amigos como Virgílio Couto (o seu professor metodólogo), Cristovam Pavia e Luís Amaro (ambos alentejanos, ambos poetas), António Manuel Couto Viana (poeta), Matilde Rosa Araújo e Lindley Cintra (colegas da Faculdade e professores), José Régio (escritor), António Sampaio (pintor), Pedro Lisboa (médico) ou Albano Ferreira (que fora seu aluno em Lisboa). Nestas missivas, há frequentemente notas sobre a vida em Estremoz, em pequenos apontamentos que constituem recortes interessantes sobre o quotidiano, como se pode verificar na carta enviada a Matilde Rosa Araújo em 13 de Outubro de 1951, relatando um episódio vivido num sábado: “Hoje, logo pela manhã, uma coisa de nada cheia de ternura: no lugar do mercado onde se vende loiça de barro, um prato (não é bem um prato: é fundo e ondulado na beira) com este nome no fundo: MATILDES ROSA! Ó Matilde: o que nós rimos e nos comovemos ao mesmo tempo! Matildes Rosa! Que lindo vai no ‘seu erro de ortografia’ - diria o António Nobre. Comprámo-lo, está à tua espera. Se aparecer outro ficará entre os que têm (esses encomendados) os nomes dos nossos sobrinhos. Para te lembrarmos e eu te lembrar um pouco mais ainda.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1463, 2025-02-105, pg. 10.

 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (2)

 

"A Companheira", primeira colaboração de Sebastião da Gama em Brados de Estremoz,
e fac-símile do manuscrito de "Janelas de Estremoz", primeiro poema que Sebastião da Gama escreveu naquela cidade


Dos 27 poemas que Sebastião da Gama escreveu entre a sua chegada ao Alentejo e o falecimento, apenas oito têm como registo de local de escrita o espaço de Estremoz, o que não admira, pela quantidade de trabalho que tinha, a saúde precária (que o levou a algumas temporadas na Arrábida), a preparação em curso de Campo Aberto (saído em Janeiro de 1951) e os preparativos do casamento (que ocorreu em Maio de 1951). O mais antigo poema aqui escrito, “Janelas de Estremoz”, datado de 21 de Janeiro de 1951, dedicado ao amigo António Bento — figura que Sebastião apresenta em carta dirigida à ainda noiva, Joana Luísa (1923-2014), dizendo ser “um rapaz de Nisa de quem já sou amigo e com quem falo, o meu maior companheiro” —, resulta do seu olhar e vaguear pela cidade, espantado por não ver rostos, por assistir a um desfile de janelas cerradas, situação que o levará a um desabafo em carta para a namorada nesse Janeiro de 1951: “Ouve: fiz os primeiros versos. Sofri-os. Sofro-os desde o princípio — e já tinham estado quase a acontecer. Sabes lá o que é, para um homem da nossa terra, ver dezenas de janelas, centenas de janelas, fechadas! Pois aqui é assim. Até as madeiras. Até, por vezes, as gelosias.”

Desejoso de se ligar ao local e às suas gentes, Sebastião da Gama rapidamente enceta colaboração no jornal local Brados do Alentejo, aí tendo a sua primeira publicação em 28 de Janeiro de 1951 com o poema “A Companheira”, seguindo-se-lhe “Janelas de Estremoz” na edição de 4 de Fevereiro, duas semanas depois de ter sido escrito. O jornal estremocense teria ainda mais três textos do jovem professor, crónicas intituladas “Entre quem é!” (na edição de 11 de Março de 1951), “Sábado em Estremoz” (saída em 22 de Julho de 1951) e “Encarcerar a asa” (publicada em 3 de Fevereiro de 1952). Esta última prosa, um gesto de louvor à vida através de um episódio em que é protagonista uma idosa que protesta por ver um pintassilgo ao frio dentro de uma gaiola, foi o último texto que Sebastião da Gama escreveu, datado de 25 de Janeiro de 1952 e publicado quatro dias antes do seu falecimento.

A cidade que o recebeu foi ainda o espaço para uma série de crónicas vindas a lume no Jornal do Barreiro (seis, no total), colaboração que Sebastião da Gama assim apresentou a Hipácio Dias Alves, director do jornal, em carta de 7 de Fevereiro de 1951: “pequena crónica em que diga da vida da cidade, no que ela possa interessar-me”. Resultam, pois, estas crónicas de um olhar de recém-chegado, ávido de entender e conhecer o meio no que ele tem de mais genuíno e participado, aspecto que não passou ao lado do Brados do Alentejo, que não hesitou em republicar a crónica “Sábado em Estremoz” (na edição de 22 de Julho de 1951), inicialmente saída no Jornal do Barreiro (de 15 de Março), com a seguinte explicação: “O poeta Sebastião da Gama, chegado a Estremoz para professor do Ensino Técnico, em pouco tempo se enamorou dos encantos da nossa terra, mesmo sem ter provado a água do Gadanha. Em pouco tempo se familiarizou até à intimidade com a nossa gente, que sem receio lhe abriu os braços, dado o seu carácter franco e lhano e o seu modo comunicativo de tratar. Hoje, Estremoz distingue sempre com um sorriso, um curvar de cabeça, um aceno de braço, o poeta do Campo Aberto, à janela, na rua, em qualquer parte onde ele apareça. Ele está com a cidade e a cidade está com ele. Estremoz passou a fazer parte das suas conversas, a ser motivo de alguns dos seus poemas e assunto de pequenas crónicas (...) em prosa simples, despretensiosa, límpida como o seu espírito de poeta, reflectindo a alta e rara sensibilidade de artista. É uma dessas ‘Cartas de Estremoz’ que (...) transcrevemos, em homenagem à sua admiração pela nossa terra e pela sua gente.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1453, 2025-01-22, pg. 10.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (1)


Homenagem a Sebastião da Gama em Estremoz, em 15 de Junho de 1953


Em Abril de 2006, o visitante estava no Museu de Arte Sacra de Estremoz e, no final do percurso, perguntou a uma senhora qual o trajecto para chegar ao Largo do Espírito Santo. Com ela, estava uma outra senhora que logo opinou: “Mas o senhor quer ver o Largo? Aquilo não tem nada de jeito, só montes de carros estacionados...” O visitante justificou que gostava de lá ir para ver a casa onde vivera Sebastião da Gama. “Mas conheceu-o?”, quis logo saber a senhora. Que não, que não o tinha conhecido, pois, quando nasceu, já Sebastião da Gama falecera havia meia dúzia de anos. “Mas eu conheci-o... Ainda o estou a ver. Com a boina, livros debaixo do braço, a sorrir, flores na mão, com a sua Joaninha...” E os olhos da senhora sentiam o prazer da memória, riam, viviam, poetavam o momento de recuo no tempo... e lá acabou por indicar o itinerário para o Largo do Espírito Santo. Impressionado com este efeito avassalador da memória, em que parecia que a senhora tinha visto Sebastião da Gama no dia anterior — quando, na verdade, já tinham passado 54 anos sobre a sua partida —, lá se encaminhou o viajante para o Largo, com uma história para contar.

Por isso, quando, dias depois, recordei este momento com Joana Luísa, mulher de Sebastião da Gama, ela sorriu enternecida e comoveu-se, lembrando vários alunos e diversas pessoas que conheceu em Estremoz no curto tempo de oito meses em que lá viveu. Cheguei, pois, ao Largo do Espírito Santo. E lá estava a casa, lápide na parede, em cenário que, mesmo com os automóveis estacionados a esmo, evocou a fotografia de 1953, protagonizada por vasto grupo de estremocenses que assinalou a colocação da lápide, gesto intenso de culto da memória. “Batei à minha porta, Irmãos, / entrai, / que eu tenho Amor para vos dar”, reza a inscrição, conjunto de três versos saídos do poema “A meus irmãos”, escrito na Arrábida em 30 de Agosto de 1944 e publicado no primeiro livro, Serra-Mãe, no ano seguinte. E, depois, o registo para a memória: “Sebastião da Gama viveu nesta casa de 11-5-1951 a 5-2-1952”.

Sebastião da Gama tinha 26 anos em 9 de Outubro de 1950, quando foi colocado na Escola Industrial e Comercial de Estremoz (actual Escola Secundária Rainha Santa Isabel), sendo seu director Irondino Teixeira de Aguilar (1914-1969), professor e autor de manuais escolares. Acabado o estágio e realizados os exames da parte pedagógica, Estremoz passou a ser o espaço de Sebastião da Gama, repartido com a Arrábida e com as lembranças de Lisboa, terra onde fez amigos, compôs poemas, leccionou, terra que deu a conhecer nas suas descobertas que partilhou em crónicas jornalísticas, semeando, talvez, alguns dos mais interessantes textos que sobre a vida da cidade se escreveram.

Chegado à Escola, Sebastião da Gama teve intenção de dar continuidade ao Diário que compusera nos dois anos lectivos anteriores. No entanto, poucas páginas nos legou, talvez por falta de tempo, como nos confessa no registo do dia 11 — “Está claro que não pode este diário ter a exacta feição dos dois primeiros volumes. Pôr aqui todas as aulas? Era preciso que eu fosse um professor extraordinário; o professor que eles quase pensam que sou. Pois se eu estou atrapalhado!... Não sei por onde, não sei como começar. Ou me está a faltar a genica ou me está a faltar a imaginação. O diário vai então servir, como há dois anos em Setúbal, para guardar o melhor do que me for acontecendo. E já não há-de ser pouco, que não tenho apenas, como em Lisboa, uma turmazinha.” Os registos diarísticos acabarão por respeitar apenas os primeiros dez dias, com observações que mais nos vão dizendo sobre o conhecimento que vai tendo dos novos alunos: o Francisco Graça, que “vem de bicicleta, todos os dias, de a dez quilómetros de Estremoz”; a Luciana, “uma carinha de riso”, em quem “até as tranças riem”; o Mário, que “trouxe flores de Vila Viçosa” e vários outros... enfim, alunos de diversas idades e ciclos, que  o levarão a escrever, ainda no dia 10, sobre uma turma: “Gente boa. Gente minha. Não há rapazes maus. Vou gostar destes e destas seis raparigas.” E sobre outra, numa apreciação global: “São uma porção de rapazes e cinco raparigas que vêm para aqui, parece-me, com a ansiedade de rapazinhos. Mas eu, sinto-o com tristeza, vou ficar muito aquém das suas esperanças. Delicados. Estremoz é boa terra. Ou então é defeito meu.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1448, 2025-01-15, pg. 10.


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Sebastião da Gama - A inquietação pela palavra essencial (4)

 


Pelos poemas de Sebastião da Gama passa também o reflexo do conhecimento da história literária portuguesa e de muitos dos seus autores, uns invocados, imitados outros — por um lado, na escolha de formas e tipologias, como “vilancete”, “soneto”, “cantar de amor”, “epigrama”, “cantiga de amigo”, “écloga”, “elegia”, “ode”, “madrigal”, “cantilena” ou no recurso a formas populares como a quadra ou no uso de referências advindas da literatura oral, como as lendas; por outro, na menção de referências à lírica trovadoresca e a nomes como Alexandre Herculano, António Botto, António Feijó, António Nobre, Bernardim Ribeiro, Bocage, Camilo, Camões, David Mourão-Ferreira, Diogo Bernardes, Eça, Fernando Pessoa (e nos heterónimos Campos e Caeiro), Guerra Junqueiro, João de Deus, José Duro, José Régio, Júlio Dantas e Nicolau Tolentino. Mas passa também a voz popular, quer por lhe dar lugar de motivo em epígrafe (“Roma”), quer pelo reconhecimento do que deve às origens (“Nasci pra ser ignorante”) ou por ir buscar a imagem do povo e de figuras que constituem a sua paisagem, impregnados do seu saber, para muitos dos seus poemas. Este conjunto possibilita-lhe que na sua obra corram o tom sério e o humor, os temas mais frequentes da literatura (como o amor, a morte, a alegria de viver, a espiritualidade, a contemplação, o espírito do local, o seu tempo, a Grande Guerra — de que foi contemporâneo—, entre outros) e o traçar de um caminho em que o lirismo se impõe, tal como legou registado num dos últimos textos que escreveu, não concluído, que seria para uma futura conferência sobre António Sardinha (incluído em O Segredo É Amar), iniciado em guisa de manifesto: “Cabe aos poetas mostrar a grandeza da Vida” — e, de imediato, lembramos o fulgor dos versos de 1944, vindos em Serra-Mãe: “A cada verso nasço… / É cada verso o meu primeiro grito / à Vida…” Dois parágrafos adiante, na mesma conferência, explica: “A nobreza da Poesia (…) está (…) nisso de se procurar e se encontrar em todos os lugares em que está; nisso de não querer saber da convenção que faz de uns temas poéticos, de outros apoéticos. Que a verdade é que não há temas poéticos e temas que o não são; nem há temas sequer: há sentimentos, há momentos da alma e momentos da paisagem, há acontecimentos, há coisas – e há Poetas em face de tudo isso.”

Esta observação sobre a Poesia e os Poetas (termos que grafava com maiúscula frequentemente) praticou-a Sebastião da Gama, como demonstrou nos versos de “O Poeta” (em Cabo da Boa Esperança): “Tudo ganhou sentido num momento… / (…) / E a poesia das coisas sem Poesia, / que no olhar do Poeta dormitava, / de súbito nas coisas acordava / — tão natural, tão íntima, tão própria, / como se fora delas que nascera…”

Figura importante da geração de 50, Sebastião da Gama foi, como referiu Vasco Graça Moura (em Diário de Notícias, 18.Set.2005), um poeta “muito menos preocupado com a problemática social, tão do gosto dos neo-realistas, do que com a expressão de uma autenticidade pessoal”, reconhecendo-lhe “grande à-vontade nas formas a que recorre”, uma “arte do verso só aparentemente instintiva e espontânea” e uma vivência da poesia “como uma espécie de alimento quotidiano”, caracterizando-se a sua obra “pela subjectividade de um lirismo de intensa e por vezes quase ingénua ternura, de comunhão e partilha sentimental, de grande e romântica generosidade de sentimentos e identificação com a natureza”.

O título escolhido para esta “poesia reunida”, O Inquieto Verbo do Mar, resulta da opção por um verso do poeta e justifica-se por uma simultaneidade de linhas de leitura em Sebastião da Gama — o desassossego do poeta na escuta e na procura, a força da palavra essencial, o mar como um dos signos de eleição e de inspiração —, aqui se encontrando os seus nove títulos de poesia até hoje publicados (entre Serra-Mãe, em 1945, e Lenda de Nossa Senhora da Arrábida, em 2014), um grupo de “Poemas Dispersos”, que integra cerca de 80 poemas escritos entre 1939 e 1950, surgidos dispersamente por variadas edições (publicações periódicas, livros de curso, antologias) e o conjunto de “Poemas Inéditos”, quase 280 textos só agora publicados, datados do período entre 1939 e 1950, maioritariamente provenientes de um caderno a que o poeta deu o título de “Saudosas Recordações” e de um primeiro conjunto de poemas que constituiriam a obra Serra-Mãe, compilação de 1943, que o autor acabaria por substituir por completo.

Se a maior parte destes textos chegou até hoje, sendo possível a sua divulgação, tal é devido ao esforço de Joana Luísa da Gama (1923-2014), que juntou e preservou o que conseguiu para a reconstituição da produção literária e epistolar de Sebastião da Gama, seu marido. O Inquieto Verbo do Mar é também a obra que ela gostaria de ter visto e faz todo o sentido que seja publicado quando se assinalam duas datas “redondas” — os 10 anos sobre o falecimento de Joana Luísa e os 100 anos sobre o nascimento de Sebastião da Gama.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1388, 2024-10-09, pg. 10.

OBS: Este texto constitui parte do posfácio ao livro O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama (Assírio & Alvim, 2024).


terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Nos 100 anos de Joana Luísa da Gama

 


Há 100 anos, o mês de Fevereiro terminou numa quarta-feira. Nesse dia 28, em Azeitão, o casal José Rodrigues Júnior e Maria da Conceição Oliveira Rodrigues via nascer a filha que recebeu o nome Joana Luísa, por certo um momento de promessas e de risos ao futuro.

A referência que ela viria a ser, só a vida a diria. E, de facto, no trajecto longo dos 91 anos de Joana Luísa, a marca foi a da fidelidade, uma enorme fidelidade, ao seu grande amor, à poesia e aos valores que a formaram. Não fora ela e, hoje, pouco saberíamos e pouco conheceríamos sobre Sebastião da Gama, o poeta eternamente jovem que faleceu aos 27 anos. Não fora ela e a história deste amor e admiração acabaria nesse momento...

Terá sido por 1944 que Joana Luísa e Sebastião da Gama encetaram o namoro, algo que já era adivinhado vir a acontecer, tão assíduo era o convívio e tão antiga a relação de vizinhança. Isso contava Joana a uma amiga, Gabriela de Jesus da Silva, em carta de 18 de Julho desse ano (inserta no livro Estala de saudade o coração, que reúne memórias de Joana Luísa da Gama, publicado em 2013): “Eu, a Luísa, e ele, o Sebastião, chegámos enfim a um acordo. Eu deixei de fingir que não gostava dele e ele viu, enfim, que não me dará o desgosto que temia. (...) Para mim, é apenas aquele que eu sempre esperei para companheiro da minha vida, é aquele que eu amo, nada mais, não lhe ponham defeitos, porque cruzarei os braços ante os obstáculos e vencerei, se Deus quiser.”

Este compromisso confessado a Gabriela, levou-o Joana até ao fim. A partir desse 1944, ainda em tempo de guerra mundial, o namoro foi-se construindo e o casamento aconteceu em 4 de Maio de 1951, no Convento da Arrábida (terá sido o primeiro casamento que ali se celebrou), no aconchego da Serra que Sebastião cantou e conheceu como ninguém. No mesmo local decorreu a lua de mel do casal, tempo que também foi de poesia.

Contudo, o tempo de casamento seria curto - nove meses quase exactos (metade deles passados em Estremoz, onde Sebastião fora colocado como professor), pois, em 7 de Fevereiro do ano seguinte, acontecia o falecimento de Sebastião da Gama. Com facilidade se imagina a dor que assaltou Joana Luísa, a mulher que reunia uma série longa de predicados, que fora também referência e inspiração para o jovem poeta, que trocou com ele afectos feitos de poesia e de dedicação e que... teve tão curto calendário para partilhar a construção dessa vida comum!...

Na tentativa de encontrar soluções para a sua vida (que passaram por uma entrada na vida religiosa por curto período de quase três anos, pelo estudo na área da Didáctica Pré-Primária, pelo acompanhamento de crianças como educadora, pelo exercício do voluntariado, pela ligação à paróquia azeitonense), Joana Luísa assumiu a continuidade da divulgação da obra de Sebastião da Gama, gesto inigualável de altruísmo e de consciência cultural, apesar de alguma contestação da parte do pai, como confessou em entrevista publicada na revista “Tabu” (saída com o jornal Sol em 3 de Fevereiro de 2012): “Voltei com todo o material que veio de Estremoz. Trouxe tudo quanto eram papéis do Sebastião e comecei a pô-los em ordem. O meu pai resmungava: ‘Deixa esses papéis’. Eu nem sabia como é que vivia...” Foi da junção e ordenação desses “papéis” e de outros que foi obtendo, recolhidos entre os amigos de Sebastião, que se foi compondo a obra do poeta azeitonense que hoje conhecemos, publicada postumamente. Não fora este trabalho dedicado e só conheceríamos os três títulos que Sebastião deu à estampa - Serra-Mãe (de 1945), Cabo da Boa Esperança (de 1947) e Campo Aberto (de 1951). Graças a Joana Luísa, à relação que ela conseguiu manter com o grupo de amigos do casal (entre os quais constavam David Mourão-Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Maria de Lurdes Belchior, Luís Amaro, António Manuel Couto Viana e Luís Filipe Lindley Cintra) e ao seu entendimento e proximidade com Sérgio Gama (irmão de Sebastião) e sua esposa Aurora, a divulgação da obra do poeta que amou a Arrábida tanto como amou Joana Luísa prosseguiu com a publicação de Pelo sonho é que vamos (1953), Diário (1958), Itinerário paralelo (1967), O segredo é amar (1969), Cartas (1994), Não morri porque cantei (2003), Estevas (2004) e A minha arca de Noé (2006). Não fora a persistência e o amor de Joana Luísa e estas obras póstumas nunca chegariam ao nosso conhecimento ou viriam em termos deficitários... E mais: a quantidade de testemunhos que deu em favor da memória do seu marido, a questão que fez em estar presente em todas as acções que dissessem respeito à obra do poeta, as portas que abriu a investigadores e autores que quiseram conhecer como se fez o poeta Sebastião da Gama, a opção de pôr esta divulgação como projecto de vida e como dever. Impressionante, verdadeiramente impressionante!

As vidas dos dois cruzaram-se, mesmo no calendário - ele nasceu em Abril e faleceu em Fevereiro; ela nasceu em Fevereiro e faleceu em Abril. As vidas dos dois fizeram uma história de amor e de poesia. É por isso que não será excessivo dizer que a obra de Sebastião acaba por ser obra dos dois, embora em responsabilidades diferentes, mas que se completam. É por isso que a celebração do centenário de ambos vai decorrer em conjunto, entre 28 de Fevereiro de 2023 (nos 100 anos de Joana) e 10 de Abril de 2024 (nos 100 anos de Sebastião), um caminho de evocação, de aprofundamento de pluralidades de leituras e de contributo para a memória.

* João Reis Ribeiro. O Setubalense: nº 1022, 2023-02-28, pg. 5


sábado, 10 de abril de 2021

Sebastião da Gama: a música (das palavras) e a memória



Hoje, Sebastião da Gama faz 97 anos. Digo “faz” intencionalmente. É que temos de saber viver com quem nos pode sempre acompanhar, seja pelas suas ideias, pelos seus sentires, pelas suas visões da vida e do mundo. E Sebastião da Gama, apesar de ter partido com 27 anos em 1952, teve uma leitura do universo que se mantém inovadora e cheia de lições.

Na sua poesia, foi sensível à música, aparecesse ela como “canto”, “hino”, “som” ou “música” mesmo. São vários os poemas que publicou em que a arte musical se manifesta – recorde-se, por ordem de publicação, um poema de cada um dos três livros que o poeta editou:“Vida” (Hoje, cá dentro, houve festa... / E, se houve festa e veludos, / e música azul, e tudo / quanto digo, / foi somente porque a Graça / desceu hoje a visitar-me.”), em Serra-Mãe (1945); “As Fontes” ("De todas as aldeias / vieram, cantando, as moças / encher as bilhas. // E eu fui também cantando ao som das águas… / Cantava as minhas mãos, cantava as fontes.”), em Cabo da boa esperança (1947);“Manhã no Sado” (Ali, à beira-rio, / de olhos só para o rio, de ouvidos surdos / ao que não é a música das águas, / um sossego alegórico persiste.”), em Campo aberto (1951).

No próprio Diário, ao refletir sobre a poesia e sobre a palavra, várias vezes o professor Sebastião da Gama se referiu à música.Vale a pena determo-nos sobre estes dois curtos excertos: “ser Poeta, tinha eu pensado dizer-lhes, é estar encantado ou desencantado e contá-lo com palavras que pareçam música” (9 de Março de 1949) e “A palavra, para os gramaticómanos, é um cadáver numa mesa de anatomia; quem pode amar um cadáver? Depois da dissecação do estilo, a beleza, a música, a personalidade de cada palavra já não pode ser gostada pela criança, receosa de errar o género, o número, a forma da palavra que tem em frente; e receosa do oito, do sete, do seis da tabela; e receosa do ponteiro com que certos professores ensinam, impõem a gramática.” (16 de Março de 1949).

Mas Sebastião da Gama tinha também a preocupação pedagógica de passar esta mensagem musical para o leitor, por mais simples que ele fosse, explicando-lhe a relação da arte musical com a palavra e com o som. E foi assim que, numa crónica publicada no Jornal do Barreiro, em 24 de Agosto de 1950, intitulada “Sobre a Poesia”, se preocupou em simplificar esse casamento entre a poesia e o canto: “No povo inculto e na criança é que a verdade acerca da Poesia está guardada; é que o conceito de Poesia se mantém ingénuo. Pois não começou a Poesia por ser o puro canto?” Esta abordagem de Sebastião da Gama torna-se radical, subscrevendo o que um amigo seu dissera – os poemas deviam ser gravados em discos em vez de ser em papel… porque os versos são “para serem ouvidos, não para serem lidos”. Esta atitude “revolucionária” não é isenta de riscos, como Sebastião da Gama o nota – é que, logo a seguir, distingue os versos ditos pelo poeta dos versos ditos por outrem, porque, acima de tudo, só os poetas saberiam dizer os seus poemas “em intimidade”, isto é, “em plena comunhão com a palavra, com a perfeita compreensão dos mínimos pormenores”.

A música, vinda pela palavra, serviu-lhe para cantar a Serra, a Vida, o Amor, a Paz. Sempre numa dimensão muito próxima do real - a paisagem e os momentos constituíram frequentemente pretextos para os seus poemas -, mas com a capacidade de se deixar inebriar pela espiritualidade, numa relação com tudo que nos comove e nos convida à partilha. Sabia Sebastião da Gama que a poesia brotava da Natureza e das Pessoas e de tudo o que faz as suas circunstâncias - a questão era descobri-la, ouvi-la e dela fazer eco.

Muitas razões poderíamos invocar para justificar a importância deste poeta. Determinantes são o contributo que deu à cultura portuguesa da sua geração, a escola que formou, o legado que deixou. É um privilégio que ele ainda se mantenha entre nós através da sua palavra e do seu relato.

Em Azeitão, hoje, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em sua honra e de Joana Luísa, a mulher que sempre lutou pela divulgação da obra do poeta e que anteviu a importância do legado do marido, inaugurou a Casa-Memória Joana Luísa e Sebastião da Gama. Uma forma de reconhecer que os merecemos!

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Sebastião da Gama e o diário de um professor feliz



Em 11 de Janeiro de 1949, na Escola Veiga Beirão, o metodólogo Virgílio Couto (1901-1972) reuniu com os seus professores estagiários durante uma hora, passando-lhes algumas das suas convicções e princípios profissionais, verdadeiros alicerces da pedagogia e da educação: as aulas deviam ser “um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente”; a partir dessa convivência, “como quem brinca ou como quem se lembra de uma coisa que sabe e vem a propósito, ir ensinando”; finalmente, “aceitar os rapazes como rapazes” e “deixá-los ser”, porque “até o barulho é uma coisa agradável, quando é feito de boa-fé”. A concluir, uma intenção quanto aos alunos: “o que eu quero principalmente é que vivam felizes.”

Um dos presentes na reunião foi Sebastião da Gama (1924-1952), que decidiu registar estes princípios no início do seu diário, nesse mesmo dia, comentando: “vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam”. Estava assim delineado um programa pedagógico bem simples, mas fundamental, que logo conquistou o jovem professor.

Ao longo de cerca de um ano, Sebastião da Gama lidou com os seus 30 alunos, nascidos entre 1933 e 1935, construindo o diário (ideia do metodólogo) como espaço e tempo de reflexão sobre a prática pedagógica, não escamoteando confidências que bem configurariam um quase diário íntimo. Por ali passam princípios que se mantêm válidos e pertinentes nos domínios da pedagogia, da didáctica da literatura, da formação de leitores, da inclusão, da formação cívica, num testemunho “em que se regista o que está bem que se faça e o que está bem que se não torne a fazer”.

Em 28 de Janeiro de 1950, relatava o último dia de aulas com a turma e, ao olhar para o percurso feito, lamentava ter “de deixar os moços” - “os rapazes trabalham, interessam-se, disciplinaram-se, e isto foi-se gradualmente acentuando até chegar hoje a um ponto de afinação que era o grande começo que eu ansiava.” A comoção dominou os alunos e o professor, disso dando conta o diarista.

Em 1958, este documento seria publicado sob o título de Diário (Ática), preparado por Hernâni Cidade, que fora professor de Sebastião da Gama. Contudo, a edição completa e anotada desta obra só surgiu em 2011, através da Editorial Presença (como declaração de interesses, registo que preparei esta edição). Entre 1958 e 2011, o livro teve mais doze edições - pela Ática, até à 11ª, em 1999; pelas Edições Arrábida, em 2003 e 2005. Creio ter sido Maria de Lourdes Belchior quem disse que, se esta obra tivesse a assinatura de um autor do mundo anglófono, seria de leitura quase obrigatória em todo o mundo. Contudo, a única tradução da obra que existe é de alguns excertos, em italiano - Frammenti di 'Diário' - Sebastião da Gama e la lingua portoghese, devida a Maria Antonietta Rossi (Viterbo: Sette Città, 2010).

O acesso dos leitores ao Diário do professor azeitonense fica a dever-se também a Joana Luísa da Gama (1923-2014), esposa do autor - depois do estágio, Sebastião da Gama quis oferecer o manuscrito ao metodólogo, mas Joana Luísa opôs-se e disponibilizou-se para copiar o texto, tendo sido essa cópia a ofertada. Se assim não tivesse acontecido, talvez nunca chegássemos a conhecer esta obra, cuja leitura deveria ser indispensável na formação de professores e por todos aqueles que se dedicam à educação, independentemente do grau em que lidam com ela, tal é a sua actualidade.

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 536, 2021-01-13, pg. 14